quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Divulgação: Novidade Guerra e Paz

Angola, poucos anos depois da independência. Estamos mais precisamente em Luanda, em anos de esquemas de sobrevivência. Um pai de família desencanta um porco e leva-o para o seu apartamento, no sétimo andar de um prédio. Os filhos, Zeca e Ruca, apaixonam-se perdidamente pelo porquinho.
Com uma escrita límpida, Manuel Rui escreve um romance que é, ao mesmo tempo, delirantemente divertido e luminosamente redentor. Sim, vivemos num mundo de esquemas, de falsas aparências, de escusos interesses. O que pode, contra essa realidade crua e dura, a crença verdadeira e ingénua? Podemos ainda acreditar que o sonho, como uma vaga, vai limpar o mundo? Quem Me Dera Ser Onda é um romance genuinamente angolano. Um romance que trata a língua portuguesa de forma magistral e criativa.

Manuel Rui. Nasceu no Huambo, a 4 de Novembro de 1941. Licenciado em Direito, em Coimbra, foi ministro no governo de transição, em 1975, integrando a representação de Angola em organismos internacionais como a OUA e a ONU. É poeta, contista, dramaturgo, romancista e cronista. Escreveu a letra do Hino nacional angolano e letras de canções. Participou em filmes, como figurante e declamando poemas, mas também escrevendo diálogos. Do espanhol ao mandarim, os seus livros estão traduzidos em mais de doze línguas. Publicou, em 1977, Sim Camarada!, o primeiro livro de ficção angolana pós-independência. Quem Me Dera Ser Onda converteu-se num clássico da literatura escrita em português e A Acácia e os Pássaros é o seu mais recente romance. Mas os seus pulmões precisavam ainda de mais calor. Viajou, por isso, em 1888, para os Mares do Sul. Ficou a morar em Samoa. Os nativos gostaram dele. Sabia contar uma história e eles gostavam de o ouvir.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

A Terapeuta (Gaspar Hernàndez)

Desde que presenciou um homicídio no parque de estacionamento, Hèctor Amat começou a ter ataques de ansiedade. Ataques esse que trouxeram ao de cima as suas inseguranças mais profundas. Agora, sente que precisa de ter a sua psicóloga na primeira fila do teatro para continuar a desempenhar o seu papel na peça em que é o protagonista. Quanto ao crime, lembra-se de muito pouco e também essa falta de memória o atormenta. Entretanto, vai conversando com a sua terapeuta, imaginando que, tal como a sua personagem em Terna é a Noite, talvez possa vir a apaixonar-se por essa mulher. Mas não é estranho que a sua psicóloga pareça ter todo o tempo do mundo para ele, ao ponto de o receber todos os dias e de ir todas as noites vê-lo ao teatro?
Apesar de ter como ponto de partida um crime, este é um livro onde os mistérios são de uma natureza diferente. Não importa quem matou ou porquê, sendo essas, aliás, as respostas mais fáceis, mas antes de que forma o sucedido moldou a vida e o estado mental do protagonista. Assim, a grande pergunta não é quem matou, mas antes, o que foi que aconteceu que fez com que Hèctor não conseguisse lembrar? E é a partir daí que todo o enredo se desenvolve.
O que acontece, portanto, é que os sentimentos, pensamentos e demónios interiores de Hèctor (e não só) acabam por ser tão relevantes como os verdadeiros acontecimentos. As conversas que tem com Eugènia, o que descobre, mas também o que pensa que está a acontecer, e a forma como avalia o seu papel de actor, a sua ligação às pessoas, o próprio raciocínio que o move a decisões inesperadas... Há, em todos estes elementos, um percurso mental que acaba por ser tão ou mais importante do que as coisas que de facto faz - no palco, na rua ou num quarto de hotel. 
E depois, subitamente, a história muda. Passa a ser Eugènia o centro da narrativa e a tal estranheza do seu comportamento começa a ser, então, explicada. Explicada de uma forma que complementa o ponto de vista de Hèctor, traçando um retrato diferente da terapeuta, que, além de, por vezes, contradizer as opiniões de Hèctor, levanta uma questão muito interessante, de como a doença se entranha também nos que deviam ser os cuidadores.
Ora, tudo isto converge para um ponto em que todas as possibilidades se insinuam. Hèctor toma uma medida que, à partida, deveria ter consequências. Eugènia tem os seus motivos para se ter posto na posição em que está. E, a partir daqui, tudo pode acontecer. É neste ponto que muito fica em aberto, pois o autor escolhe encerrar a história deixando à imaginação do leitor todas estas possibilidades. Fica, por isso, uma sensação de curiosidade insatisfeita por, depois de uma tão detalhada viagem aos meandros da mente das personagens, o que acontece a seguir ser deixado por dizer. Ainda assim, não deixa de fazer um certo sentido. Criou-se, de certa forma, um equilíbrio. A partir daí, todos os caminhos são possíveis.
Não é propriamente uma leitura compulsiva. Não o poderia ser, com tão intrincadas teias a formar-se na mente das personagens. Mas é, ainda assim, estranhamente envolvente. E, na forma como mergulha nas profundezas do pensamento, partindo do que poderia ser um mistério para explorar um tipo diferente de revelação, não deixa de ser uma boa e interessante surpresa. E uma boa leitura.

Título: A Terapeuta
Autor: Gaspar Hernàndez
Origem: Recebido para crítica

domingo, 28 de agosto de 2016

Filipa de Lencastre (Isabel Stilwell)

Casou tarde para os padrões da época, mas viria a ser a mãe da que ficaria conhecida como Ínclita Geração. Piedosa, séria, decidida a conter as emoções a todo o custo, muitos a julgariam como fria e indiferente. Mas não. Primogénita de John of Gaunt e destinada a grandes voos, viria a mudar a corte para onde se mudou como rainha, deixando às gerações futuras um legado de grandes obras e de novos costumes. Esta é a sua história.
Centrado, acima de tudo, na vida da sua protagonista e dividido nas duas partes essenciais do seu percurso - a de filha de John of Gaunt e a de rainha de Portugal - este é um livro em que o contexto e a forma são tão importantes como os acontecimentos em si. O contexto, porque os hábitos da época em que a narrativa decorre definem em muito a forma como Filipa rege a sua vida e as diferenças entre Inglaterra e Portugal são também uma influência essencial nas mudanças por ela operadas. A forma, porque são tantas as personagens relevantes que é importante a perspectiva pessoal, seja das dores contidas ou dos grandes entusiasmos, para contrapor à distância das movimentações políticas e intrigas de corte. 
Há, assim, um aspecto que sobressai: a capacidade da autora de realçar o retrato de uma mulher complexa e humana, ao mesmo tempo que enfatiza o seu papel enquanto rainha. As obras, os hábitos, a intriga palaciana convivem de perto com as saudades da família, a dor da perda de um filho e as aspirações e medos que tem por todos os outros. Há, assim, diferentes impactos para diferentes momentos. Curiosidade, sobre os elementos de política do reino (guerras, negociações, casamentos...), emoção, nos momentos de grande alegria ou grande perda, surpresa, ante a ocasional revelação inesperada e até um leve toque de humor, muitas vezes protagonizado pelos mais novos. E a soma de tudo é uma narrativa equilibrada, não propriamente de leitura compulsiva (ou não fosse tão vasta e relevante a componente descritiva), mas que nunca deixa de cativar.
Claro que, sendo Filipa a protagonista, é inevitável que algumas das outras personagens acabem por passar para segundo plano. E é aqui que fica uma certa curiosidade insatisfeita, pois é sabido que a história continua e fica sempre a vontade de saber mais sobre os outros intervenientes da narrativa. Mas também é certo que faz todo o sentido que, num livro sobre a vida da rainha, a história termine precisamente no ponto em que termina. E, quanto ao resto, há sempre outras formas de saber mais.
Muito interessante e sempre cativante, eis, pois, uma boa viagem à História de Portugal. E também à história de uma mulher que foi rainha e mãe sem nunca perder nada das raízes que a definiam. Uma boa leitura, portanto. Gostei.

Título: Filipa de Lencastre
Autora: Isabel Stilwell
Origem: Recebido para crítica

sábado, 27 de agosto de 2016

Harry Potter - Livro de Colorir

E se à sempre interessante ideia dos livros de colorir para adultos se juntasse a história com que muita gente cresceu e aprendeu a sonhar? Um mundo cheio de magia, feiticeiros, escolas extraordinárias, terrores mais negros que a morte e uma amizade a toda a prova... Promissor, não é? Sem dúvida. E a verdade é que o resultado não desilude. Misturando elementos dos filmes e dos livros, este é um livro que tem tudo para fazer as delícias dos fãs dos livros de colorir para adultos e do universo Harry Potter.


Um dos primeiros aspectos a que presto atenção neste tipo de livros é, inevitavelmente, o grau de dificuldade. Como não me canso de dizer, não sou propriamente um talento das artes visuais, por isso tenho sempre tendência a procurar algumas páginas mais fáceis para contrabalançar o desafio das mais difíceis. E, neste aspecto, o livro é bastante equilibrado. Há imagens mais desafiantes (principalmente, as que envolvem cenas dos filmes) e outras mais simples, como os brasões e os objectos. 


Claro que, se quisermos seguir as linhas da história original, é preciso ter presentes algumas das características essenciais de contexto e personagens. Mas, se a leitura da série até já foi há muito tempo e há pequenas coisas que já fugiram da memória, também não há grande problema. É que, na parte final, este livro tem um conjunto de imagens a cores, que permitem recordar as características originais de muitos elementos. Depois, é só decidir: seguir o original... ou recriar.


E assim, temos um livro cheio de possibilidades. Cheio de imagens bonitas para colorir ao ritmo da imaginação, ou regressar a uma história que a tantos fez sonhar ao longo dos anos, para reviver ou reconstruir ao nosso próprio critério. Bonito, desafiante, muito interessante na escolha dos elementos. E muito bom, pois claro.


Título: Harry Potter - Livro de Colorir
Autores: Warner Bros
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Viver Depois de Ti (Jojo Moyes)

Lou Clark está habituada a uma vida calma e completamente livre de aventuras. Está com o namorado há sete anos, vive com os pais e a irmã, contribuindo para o sustento da família, e nunca saiu da vila onde sempre viveu. Mas tudo muda quando, de um dia para o outro, fica sem emprego e se vê obrigada a aceitar uma vaga de prestadora de cuidados. Aí, conhece Will Traynor, o seu novo patrão. Um acidente de mota deixou-o tetraplégico e precisa de ajuda até para as coisas mais simples. Perdeu a alegria e a infelicidade tornou-o cruel. Já Lou, apesar da simplicidade da sua vida, transborda de energia. Mas será a sua boa influência o suficiente para devolver a Will a vontade de viver? E não terá ele também algo de valioso a ensinar a Lou?
Uma das características mais interessantes deste livro é a forma como a autora, partindo de um início aparentemente leve e até um pouco caricato, cria, desde muito cedo, um ambiente cativante, para depois ir aprofundado, ao mesmo tempo, o tema e as questões emocionais associadas à história. Sendo Will tetraplégico, há todo um conjunto de elementos pertinentes na sua história: as dificuldades, a forma como a sociedade lida com a condição, a dependência total e a liberdade - e necessidade - de escolha. E, claro, o direito a uma vida digna - ou nenhuma vida. A forma como a autora aborda estas questões, numa história em que é sempre a relação entre os protagonistas o foco central, mas em que tudo o resto vai sendo vincado por via da acção, torna a história não só envolvente, mas muitíssimo relevante. Faz pensar. Faz questionar. E, na fortíssima fase final, que, não sendo propriamente imprevisível, é, ainda assim, devastadora, grava na memória uma nova perspectiva sobre o que é a vida e o que ela vale realmente.
Além de um cerne fortíssimo para todas estas questões, Will é também a personagem mais marcante de toda esta história. Intenso, sarcástico, com um sentido de humor fascinante e uma percepção da vida em todos os seus tons de cinzento, é uma personagem que vive muito para lá das suas circunstâncias. É interessante a forma como facilmente se torna admirável, na forma como influencia a vida de Lou, na sua maneira de lidar com as coisas (desde a mais pequena discussão à mais importante de todas as decisões), na sua própria personalidade. E é também o contraponto perfeito para Lou, em tudo (ou quase) oposto, mas em tudo complementar.
O que me leva às outras personagens. É certo que, nesta história, ninguém é perfeito e é precisamente isso que os humaniza. Mas há personagens (principalmente no que diz respeito ao lado de Lou) em que não são propriamente as qualidades a sobressair. Ora, curiosamente, isto não tira nada à envolvência da história. Pelo contrário. Desperta sentimentos mais fortes de empatia para com os protagonistas, seja por uma certa sensação de injustiça para com eles, seja pela forma como fazem sobressair as suas melhores qualidades. No fim, são Will e Lou quem mais importam. E os que os rodeiam reforçam também as dificuldades da luta de ambos.
Tudo isto se entrelaça numa história equilibrada, sempre cativante, comovente em todos os momentos certos e que realça em pleno as verdadeiras dificuldades da vida e das decisões dos seus protagonistas. Capaz de despertar lágrimas e risos e, acima de tudo, questões importantes, um livro tão envolvente como memorável. E muito bom. 

Autora: Jojo Moyes
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Divulgação: Quando a Paixão Não Acaba, de Militza Fangueiro

Carolina, uma jovem magistrada, determinada e independente, sempre evitou envolver-se em relacionamentos amorosos, por atribuir a estes emoções demasiado inconsequentes que apenas contribuíam para distanciar uma mulher do objectivo de conquistar uma carreira de sucesso.
John Hunter, de trinta e dois anos, presidente de uma multinacional farmacêutica americana com sucursal em Portugal, é um homem poderoso e arrogante, habituado a ser respeitado e bajulado, principalmente pelas muitas e belas mulheres que o rodeiam.
O confronto dos dois em pleno tribunal desperta sentimentos demasiado fortes e contraditórios, convencendo-se ambos que a petulância e arrogância do outro os levam a odiarem-se.
Porém, em pouco tempo vêm-se obrigados a aceitar a paixão que os apanha desprevenidos, levando-os a enfrentar o pior dos obstáculos, a independência dela perante o domínio e possessão dele, tornando esta obsessão no maior dos tormentos.
Determinado a tê-la só para si, John propõe um casamento milionário que Carolina recusa, negando abdicar da profissão que adora, perante o espanto e incompreensão das suas três amigas.
Decidida a lutar contra a necessidade de domínio e controlo que John teima em exercer sobre ela e devido à irresistível paixão que sente por aquele americano lindo,
Carolina tenta impor as regras, num convívio intenso, carregado de erotismo e sensualidade, acompanhado de momentos hilariantes e de divertidos confrontos quase catastróficos, proporcionados por esta portuguesa atrevida e provocadora.
Dominado pelo amor obsessivo que nutre por esta jovem endiabrada, John sente-se um fraco a ponto de decidir afastar-se dela, por não admitir depender assim do amor de uma mulher.
Todavia, o destino que não aceita separar o que ajudou a unir, traz Rafael numa gravidez inesperada que Carolina assume como mãe solteira, omitindo a John que é pai de um lindo rapaz de olhos azuis.
Este bebé vem precisamente voltar a aproximá-los, desencadeando uma série de acontecimentos que os obriga a mudanças radicais nas suas prioridades. 
Nesta união tão atribulada, em que o amor prevalece mais forte e consistente que nunca, John e Carolina debatem-se constantemente com o confronto das suas personalidades demasiado fortes e autoritárias, cabendo a ela ser mais astuta na forma subtil de o envolver e convencer.
Destemida e teimosa, esta jovem de vinte e quatro anos que vive e trabalha em Lisboa, procura com muito esforço e sacrifício ser bem-sucedida na sua carreira de advogada. Tal objectivo leva-a durante o seu controverso relacionamento com este americano prepotente, a ponderar se valerá realmente a pena deixar tudo por amor.
Depois de sete anos de casamento e três filhos lindos, Carolina chega à conclusão que sim. Tudo vale a pena por amor quando se tem a sorte de o encontrar.
Contudo o mais importante é poder afirmar que a mulher tem sempre o poder, mesmo que para isso tenha de fazer o seu amado acreditar que é ele quem manda.

Militza Maria Gonçalves Fangueiro nasceu a 18 de Fevereiro de 1965, na Venezuela. Em 1971 veio para Portugal, onde vive até hoje, com residência em Vila do Conde.
Casada e com três filhos, formada em educação social, prescindiu de uma carreira nessa área para se dedicar inteiramente à família.
Desde jovem nutre uma grande paixão pela literatura, tal como, pela escrita. No entanto, apenas agora conseguiu finalizar o seu primeiro romance, que terá todo o gosto de ver publicado.

Disponível na Amazon.

domingo, 21 de agosto de 2016

Confissões (Kanae Minato)

Dois dos seus alunos mataram-lhe a filha. Agora, Yuko Moriguchi quer vingança. E, tal como o ódio que sente pelos assassinos da filha, os seus ardis não têm limites. Antes de se retirar do ensino, no seu discurso de final de ano lectivo, Moriguchi anuncia aos alunos que sabe o que realmente aconteceu. E, com a revelação de algo que ela própria fez, põe em marcha os primeiros passos da sua vingança. Uma vingança tão silenciosa como brutal e prolongada, para que os assassinos tenham tempo de ponderar nas consequências dos seus actos. Mas foi um único gesto? Talvez não. E, agora que todos os seus alunos sabem, e que cabe aos dois assassinos viver com o conhecimento do que Moriguchi lhes fez, as consequências começam a manifestar-se, revelando toda a impiedosa dimensão do plano da professora.
Narrado do ponto de vista dos vários intervenientes centrais nesta história, este é um livro que surpreende, acima de tudo, por dois aspectos: primeiro, a real complexidade do mistério, que vão sendo revelada à medida que cada nova perspectiva acrescenta novas informações. E segundo, a forma como, de um relato quase sereno, emerge uma sequência de acções tão sinistra e brutal como a de qualquer policial dos mais sangrentos.
Parte do que torna a vingança de Moriguchi tão impressionante é a forma equilibrada, tranquila e racional com que o plano é levado a cabo. Pois estas mesmas características podem aplicar-se também à construção do livro. Ao seguir as várias personagens nas suas perspectivas do sucedido, a autora vai acrescentado novas camadas de complexidade, aparentes contradições que afinal não o são, personagens que revelam diferentes facetas a pessoas diferentes. E tudo isto se entrelaça numa teia cada vez mais complexa, em que o crime parece ser o cerne de todo o enredo, mas em que há uma estranha calma na forma como tudo é experimentado. Fala-se de morte, de medo, de vingança - e, contudo, quase tudo parece acontecer de forma muito limpa. Ora, isto é, desde logo, uma surpresa. E, além disso, realça o impacto do momento em que os episódios mais sinistros surgem na história. Quando importam. Quando são realmente relevantes.
E tudo isto é escrito na primeira pessoa, o que permite entrar directamente na cabeça das várias personagens. Também aí há muito de perturbador, pois é nos pensamentos dos vários intervenientes que é realçada a verdadeira disfuncionalidade das suas vidas. Claro que, neste aspecto, é a visão dos assassinos o que mais impressiona. Mas de todos se retira algo em que pensar, pois, se há tanto de frio e ponderado como de disfuncional na cabeça destas personagens, então tudo é possível e permitido. E é precisamente essa ideia a orientar a teia de acções de todo o enredo.
Trata-se, pois, de um livro perturbador, onde a suposta inocência dos mais jovens dá lugar a um retrato do mais disfuncional que se pode conceber sobre a natureza humana. Intrigante, intenso, surpreendente, prende desde as primeiras linhas e não larga até ao fim. E, com tanto de fascinante como de sinistro, fica na memória bem depois de terminada a leitura. Muito bom.

Título: Confissões
Autora: Kanae Minato
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Síndrome de Antuérpia (João Felgar)

Quando se vive num meio pequeno, preservar um segredo implica um equilíbrio delicado, em que sabem aqueles que precisam de saber e os que podem comprometer o secretismo são cuidadosamente mantidos na ignorância. Mas Antuérpia ainda não conhece essa verdade. Só sabe que Castiça, a tola da aldeia, foi encontrada morta e que o pai, Justo, foi levado como principal suspeito. E o pior é que não parece haver ninguém disposto a falar em sua defesa. Na aldeia, primeiro veio o choque, depois a indiferença. E as respostas, sabe-se lá quem as tem. Caberá a Antuérpia descobrir a verdade e dar voz ao segredo que todos parecem calar. Mas será realmente essa a escolha certa?
Há tanto de fascinante e de relevante neste livro e, contudo, uma tão mágica simplicidade na sua construção, que se torna difícil saber por onde começar para falar sobre este Síndrome de Antuérpia. Escrita, personagens, enredo, contexto... tudo se conjuga num equilíbrio tão perfeito que a linha que separa as partes do todo é muito ténue, ao ponto de quase se poder definir este livro numa só palavra: brilhante. Mas tentemos ir por partes.
Um dos primeiros aspectos a cativar é a escrita, fluída e envolvente, descritiva quanto baste, mas com um ritmo tão natural que tudo parece encaixar na medida certa, sejam os pensamentos das personagens, a memória dos seus respectivos passados ou o desvendar de um mistério cuja teia é bastante mais complexa do que à primeira vista poderia parecer.
O que me leva ao enredo. O momento crucial que define tudo o resto parece ser a morte de Castiça e é para aí que todos os ramos convergem. Mas a forma como o autor constrói a história, revisitando o passado das várias personagens e até mesmo regressando a um mesmo momento pelos olhos de diferentes personagens, revela toda uma sequência de acontecimentos igualmente relevantes. O que parecia ser um caso simples transformar-se numa teia complexa, em que amores e desamores, folias e depressões e até mesmo o conflito entre classes sociais e a preservação do futuro têm papéis preponderantes a desempenhar.
O que me leva ao contexto que, mesmo sem se afirmar num tempo específico, parece retratar na perfeição as características da vida num meio pequeno. A forma como todos sabem de muito, ou pretendem saber, como olham para o lado quando lhes é mais conveniente e como aplicam segundo o preceito que entendem mais adequado diferentes pesos e diferentes medidas... Tudo isto é bem possível na realidade e a forma como tudo converge para um percurso quase que bíblico de paixão e morte (não necessariamente por esta ordem, talvez...) é algo de incrivelmente impressionante.
E aqui entra o destaque das personagens. Antuérpia, claro, tão diferente de todos os outros e, por isso, no cerne de todas as esperanças e de todos os medos. Mas também Justo, com o muito particular papel que lhe cabe nos acontecimentos, a própria Castiça, com o seu passado tão conturbado, e Cassilda e Silvana, tão diferentes, mas com um inegável ponto em comum. Todos com as suas histórias e os seus traços, todos interessantes, todos surpreendentes... e todos, ao mesmo tempo, uma roda na engrenagem da comunidade e um possível foco de divergência.
Tudo cativa. Tudo surpreende. E há, nesta caminhada em direcção à verdade, nesta história de um crime que é, afinal, muito mais do que isto, tanto de belo e de profundo e de real, que tudo aqui se torna memorável e intenso e impressionante. Brilhante, em suma.

Título: Síndrome de Antuérpia
Autor: João Felgar
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Somos Todos Artistas (Will Gompertz)

Temos, por vezes, tendência a imaginar o trabalho de um artista como fruto de uma mente inspirada, movida, talvez, por rasgos de genialidade nascidos de demónios interiores ou de uma musa tão instável como invisível. Mas e se não for bem assim? Afinal, a criatividade não está presente apenas nas grandes obras de arte e, no dia a dia, acaba por ser tão necessária como o próprio trabalho árduo. E, sendo assim, não é verdade que está ao alcance de todos? Mas, para pensar como um artista, há, ainda assim, um conjunto de elementos a ter em conta. E são esses mesmos elementos que dão forma a este livro.
Centrado em grande parte nas artes visuais, mas com conceitos e ideias facilmente aplicáveis a outras áreas criativas, este é um livro que parte do percurso de vários artistas para apresentar um conjunto de linhas para pensar - e criar - como um. E parte dessas mesmas linhas é também um desfazer de mitos, o que acaba por ser, talvez, o ponto mais interessante desta leitura. A musa, os rasgos de inspiração, a vida boémia, a mente atormentada... podem ser factores de peso na acção criativa, mas não são a base. Ou, pelo menos, não para muitos dos artistas mais bem sucedidos. E assim, ao analisar a carreira de vários artistas, desfaz-se esse mito da arte enquanto coisa quase etérea, conferindo-lhe uma visão mais realista.
Claro que tudo isto são visões gerais, pelo que fica a sensação de que haveria também algo a dizer sobre as excepções (as tais que se movem segundo a inspiração e tudo o mais). Ainda assim, e tendo em conta o que parece ser a mensagem do livro, de aplicar a criatividade a tudo na vida e a fazer da vida artística uma realidade objectiva, o facto de o autor se concentrar nos aspectos práticos faz realmente todo o sentido. Aliás, a perspectiva da criação como negócio e a componente financeira podem ser desconfortáveis de considerar, mas não deixam de ser muitíssimo relevantes para a construção de uma vida através da criatividade.
Há, ainda, um outro ponto a destacar nesta leitura. Sendo um livro em que muitos dos exemplos utilizados são retirados das artes visuais, torna-se particularmente relevante ver efectivamente as obras que são dadas como exemplo. E, assim, a presença das muitas fotografias a cor e a preto e branco ao longo do livro, permitem uma percepção mais clara das ideias, ao mesmo tempo que tornam também o livro bastante mais bonito. E há ainda outra vantagem: é que fica também a curiosidade em conhecer mais da obra dos artistas citados ao longo do texto.
A soma de tudo isto é uma boa leitura, que abre portas a uma perspectiva diferente sobre as artes e a forma de usar a criatividade e, ao mesmo tempo, permite conhecer melhor o que já se fez - e como se fez - no mundo das artes. Muito interessante, portanto, um livro que vale a pena ler.

Título: Somos Todos Artistas
Autor: Will Gompertz
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Entre Irmãs (Kristin Hannah)

São irmãs, mas não podiam ser mais diferentes. Meghann Dontess é uma advogada de sucesso, mas leva uma vida solitária e sem tempo para qualquer tipo de afecto. Claire Cavenaugh é uma mãe solteira que acaba de se apaixonar novamente e está prestes a casar por impulso. Em comum, têm apenas o laço de sangue e uma infância terrível que culminou numa mudança que as separou. Irremediavelmente? Talvez não, pois o casamento de Claire leva Meghann a uma reaproximação, ainda que motivada inicialmente pela vontade de dissuadir a irmã de cometer o que considera o maior erro da sua vida. Mas a vida nunca é eterna e o tempo pode esgotar-se quando menos se espera. E o que as irmãs têm no passado para resolver pode muito bem precisar de mais tempo do que aquele que dura uma vida.
Feita tanto de conflitos intensos como de ligações fortes, esta é uma história que desperta, muitas vezes, emoções contraditórias. Talvez porque o melhor das personagens se vai revelando aos poucos, é difícil, de início, sentir uma grande empatia para com algumas personagens. Mas esta distância inicial é também a base de um dos aspectos mais cativantes desta história: é que esses melhores traços que se vão revelando aos poucos abrem caminho a todo um percurso de redenção que, ao mesmo tempo que revela a verdadeira complexidade de algumas personagens, proporciona também momentos de uma incrível intensidade emocional.
Centrada na relação entre as duas irmãs, mas também na de um homem com as sombras do seu passado, esta é uma história em que a emoção acaba por assumir o papel preponderante. Meghann, a advogada fria e solitária, revela-se no seu melhor, e também no mais vulnerável, na forma como volta a entrar na vida da irmã. Claire, vista por Meghann (e não só) como a que precisa de ser protegida, afirma a sua força nos momentos mais difíceis. Joe é um homem dominado pelos seus demónios, mas descobre uma estrada de regresso à vida. E tudo isto é cativante, mesmo quando as personagens nem sempre são propriamente um poço de bondade. Há muitos momentos bonitos nesta história. E o final, esse, é algo de muito forte.
Nem tudo é fácil de assimilar na forma como as coisas acontecem e é difícil compreender a forma como algumas personagens, como a mãe de Meghann e Claire, reagem aos grandes momentos, bons e maus, das pessoas que lhe estão próximas. Ainda assim, a autora consegue desenvolver esta peculiaridade - de uma personagem quase despida de características redentoras - realçando-lhe os traços de humanidade sem lhe desculpar as falhas. E isso, nas circunstâncias em que acontece, é também algo de bastante impressionante.
Trata-se, pois, de uma história que se revela aos poucos, partindo de uma certa distância para depois abrir caminho a um crescendo de emoções que, entre os pequenos toques de humor e os grandes momentos de ternura, culmina num final intenso e impressionante. Uma história de passados e futuros, em que a emoção se afirma por completo. Gostei.

Título: Entre Irmãs
Autora: Kristin Hannah
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

A Gravitação do Amor (Sara Stridsberg)

Quando foi levado para o hospital psiquiátrico Beckomberga, Jim tinha acabado de ser encontrado na neve depois de ter engolido uma dose massiva de comprimidos. Havia nele uma escuridão, uma sombra que nunca se dissipou. Mas ali parece ser finalmente feliz - apenas ali. Como visitas, tem a mulher que deixou de o amar e a filha que nunca deixou de o querer. Como amigos, um médico que tem o estranho hábito de levar pacientes a festas no exterior e uma outra paciente que se transformou no amor da sua vida. E o tempo vai passando, como que ao ritmo das memórias. Jimmie e a filha Jackie têm uma relação como nenhuma outra. Mas a passagem das trevas para a luz pode muito bem ser impossível... e a verdade é que tudo termina, um dia.
Uma das primeiras coisas que importa referir sobre este livro é que, ao longo de toda a narrativa, as perguntas são tão importantes como as respostas. Isso significa que a sensação de confusão que por vezes emerge dos avanços e recuos nas memórias das personagens nem sempre é totalmente dissipada e que há futuros e acções que nunca ficam totalmente claros. Alguns insinuam-se nas entrelinhas. Outros há que desaparecem simplesmente. E, assim, muito é deixado à imaginação, o que acaba por deixar alguma curiosidade insatisfeita, ainda que também a sensação de que o que fica em aberto faz sentido.
E faz sentido porque a história vive tanto de acontecimentos como de memórias e pensamentos das personagens. Jim, Jackie e aqueles com quem interagem têm em comum uma única faceta: a imensa dualidade entre as trevas e a luz com que todos se debatem dia após dia. E isso nem sempre se faz de actos visíveis, o que significa também que não há uma vitória derradeira. Há pequenas coisas - no hospital e fora dele - a manter suspenso o equilíbrio entre luz e sombra, vida e morte. Vícios, emoções, pensamentos passatempos... e relações. E de tudo isto se faz esta história, em que também a sanidade é uma linha ténue e, por vezes, difícil de vislumbrar.
A própria escrita é um reflexo deste delicado equilíbrio. Belíssima, sempre, mas num registo quase que fragmentário, como que evocando pedaços de um sonho muito estranho. Às vezes, um diálogo simples, de frases curtas, mas em que há algo de transcendente a insinuar-se nas sombras. Às vezes, uma introspecção profunda, da qual emerge apenas um acto que fica por pronunciar. Tudo isto numa sucessão de momentos, de fragmentos de vida, um pouco vagos, mas dando forma a uma imagem de tristeza e de fragilidade que fica na memória bem depois de terminada a leitura.
E, assim, a imagem que fica é como que a de um mergulho nas profundezas da mente. Uma viagem em que as partes mais importantes da história acontecem no interior e em que, por isso, nem tudo é visível, apesar de estar lá. O resto fica nas asas da imaginação... que continua a trabalhar muito depois do fim do livro. 

Título: A Gravitação do Amor
Autora: Sara Stridsberg
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Masha e o Urso - Brincadeiras no Bosque (O. Kuzovkov)

Desde que Masha o descobriu que o urso nunca mais teve sossego. Nem no Inverno. Irrequieta e infinitamente curiosa, Masha quer sempre brincar e descobrir coisas. E é precisamente isso que acontece nas duas histórias deste livro, em que o urso descobre o valor da amizade e Masha desvenda o mistério de umas pegadas invulgares. Tudo com a brincadeira sempre em mente e a traquinice como ponto principal.
Em tudo semelhante aos dois livros anteriores, também deste livro sobressaem duas características: uma história simples, directa e engraçada direccionada para um público jovem e um muito agradável equilíbrio entre o texto e as imagens. Mais uma vez, Masha e o urso são levados em aventuras engraçadas que, sem grandes acontecimentos ou surpresas de maior, conseguem, apesar disso, ser muito cativantes e agradáveis. E, mais uma vez também, as ilustrações complementam o texto na perfeição, dando forma a um livro visualmente apelativo e que facilmente cativará para a leitura.
Ao contrário dos anteriores Como Tudo Começou e Brinca Comigo!, este livro reúne duas histórias, histórias essas que são perfeitamente independentes entre si, tendo em comum apenas os protagonistas. Mas é curioso ver estas duas histórias juntas, porque, uma vez que uma se passa no Inverno e outra na Primavera, cria-se um contraste interessante entre as duas. Aqui, destaca-se mais uma vez o aspecto visual que, com os verdes da primeira história e os brancos da segunda, realça esse tal contraste entre as duas partes.
E, claro, é uma história para crianças, por isso a já esperada medida de inocência está sempre muito presente. Masha tem como preocupação essencial encontrar o seu companheiro de brincadeiras, enquanto que o urso, resignado a não ter sossego com a sua nova amiga por perto, acaba por alinhar em todo esse divertimento. E, assim, é tudo muito simples e muito terno, o que acaba por ser refrescante num mundo tão mais complexo e sombrio.
Trata-se, pois, de mais uma boa leitura para os mais novos. E, para os que já não são assim tão novos, de um bom regresso aos tempos da inocência, em que a mais simples das histórias era mais do que suficiente para ver a imagem de um mundo melhor. Gostei.

Título: Masha e o Urso - Brincadeiras no Bosque
Autor: O. Kuzovkov
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Ready Player One - Jogador 1 (Ernest Cline)

Ano 2044. O mundo não é um lugar risonho onde se viver. Os recursos são escassos, a pobreza abundante. Há quem viva em atrelados empilhados uns em cima dos outros. Muitos são, pois, os que fogem para a realidade virtual para encontrar uma vida melhor. No OASIS, o simulador que ganhou o lugar de destaque na vida das pessoas, é mais fácil conseguir uma boa vida. Mas há uma batalha há espera de acontecer. O criador do OASIS morreu e deixou a sua fortuna em herança ao primeiro que conseguir seguir as suas pistas e encontrar o ovo que ele deixou escondido na sua vasta simulação. E, quando há tanto dinheiro e recursos em jogo, e uma empresa disposta a tudo para os adquirir, a Caçada do ovo nunca poderá ser apenas um videojogo. E as consequências de travar esse combate podem muito bem estender-se à vida real.
Imaginem um livro que é ao mesmo tempo uma visão de um futuro possível e um regresso ao passado, capaz de questionar valores e prioridades, pessoais e corporativas, ao mesmo tempo que constrói todo um enredo centrado no mundo dos videojogos. Assim é este Ready Player One, história de uma caçada virtual com consequências no mundo real e, acima de tudo, da descoberta de valores e prioridades num mundo em que as simulações ganham uma importância vital. 
Não é muito difícil apontar as razões que tornam este livro fascinante: tudo nele o faz. Mas um dos primeiros elementos a destacar-se é, sem dúvida, a forma como o autor transpõe para um mundo futurista um vastíssimo conjunto de referências e elementos da cultura dos anos 80. Jogos, bandas, filmes de culto... Tudo está presente e tudo tem um papel importante a desempenhar no enredo. Ora, isto só tem vantagens: por um lado, permite descobrir coisas novas, acompanhando as personagens na sua jornada. Por outro, é uma boa forma de relembrar filmes icónicos, jogos que marcaram a infância de muita gente, músicas que - adorando ou odiando - ainda hoje permanecem bem presentes. Há todo um mundo a (re)descobrir e isso basta para que a jornada valha a pena.
Mas há muito mais. A própria construção das personagens e dos códigos por que se movem é fascinante. Por um lado, os gunters, inteiramente dedicados à caçada, tão concentrados no destino como no caminho que os levará até lá. Por outro, a IOI, disposta a tudo, inclusive a matar, para conseguir deitar as mãos ao prémio final. Tudo isto, levanta questões importantes: sobre até que ponto os fins justificam os meios, sobre a justeza de um combate em que alguns têm todas as formas de fazer batota, sobre matérias de privacidade e valores diferentes na base de empresas diferentes. E, a um nível mais pessoal, sobre honra no combate, respeito pelos rivais, capacidade de cooperação, amizade e afecto. Parzival, Aech, Art3mis, Shoto e Daito são em tudo um contraponto perfeito aos Seizes. E a forma como estes dois lados se enfrentam abre caminho a todo um conjunto de momentos impressionantes.
É um livro bastante descritivo, com a multiplicidade de elementos na base da caçada a exigirem apresentações e as bases estratégicas dos vários intervenientes a conferirem ao enredo uma certa complexidade. Mas é interessante que, apesar deste ritmo mais pausado, a história nunca deixa de cativar. É que a informação vai sendo apresentada ao ritmo a que as personagens precisam dela e, ao ser narrada pela voz do Wade, surge na medida em que é necessária e com a importância que o seu papel no enredo justifica. Além disso, a esta vasta quantidade de informação acresce uma igualmente vasta medida da acção, o que confere à narrativa um equilíbrio perfeito entre as partes que a constituem.
E, por fim, o ambiente, tão intenso e imersivo como o de um videojogo, mas deixando espaço à imaginação do leitor para visualizar os passos das personagens, tanto no mundo virtual como no real. Os lugares, as personagens, os vários elementos do jogo em que se movem, mas também a realidade para lá do OASIS, tudo é construído na perfeição. E, assim, é fácil entrar nesta história. E, se é certo que é preciso tempo para assimilar todos os pormenores, também o é que nunca esmorece a vontade de descobrir mais.
Tudo isto converge num todo vastíssimo e imensamente impressionante. Enredo, cenários, personagens - tudo se molda num equilíbrio perfeito. E nesta viagem ao futuro que é, ao mesmo tempo, o tal regresso ao passado, tudo se encaixa na medida certa para proporcionar uma leitura impressionante. Que recomendo sem reservas.

Autor: Ernest Cline
Origem: Recebido para crítica

Para mais informações sobre o livro Ready Player One - Jogador 1, clique aqui.

domingo, 7 de agosto de 2016

Água - Uma Novela Rural (João Paulo Borges Coelho)

A água está a acabar. Na aldeia, muitos são os que pensam que nunca mais voltará e que o que se avizinha é o fim de todos. Outros pensam diferente. O Engenheiro Waasser, que veio para construir pontes, não tem agora respostas para o que está ali a fazer. Ryo e Laama, os áugures, discutem a natureza da seca que a todos fustiga. Maara e Ervio, estranhos namorados, usam um dos raros telefones que ali existem para trocar pensamentos comuns e perguntas. E um recém-chegado com intenções duvidosas põe em marcha um plano para extravasar um ódio que nem ele compreende. Entretanto, a água continua sem vir. E ninguém sabe ao certo o que fazer, como viver ou... quem ser.
História de um tempo difícil e das gentes que o atravessam, este é um livro que surpreende, em primeiro lugar, pela voz muito própria com que tudo é contado. Em capítulos curtos e com um estilo de escrita aparentemente simples, dá voz à quase inocência das gentes da aldeia, para depois, numa inesperada reviravolta, questionar os mais profundos dos pensamentos e razões. Traça um amor quase inocente - para depois o abalar pelo ciúme e pela dúvida. E uma visão de um povo onde tudo o que acontece é encarado com as mesmas medidas de naturalidade e de revolta - assim surpreendendo tanto pela paz aparente, como pelos arroubos de violência que dela brotam.
Assim se cria uma história de contrastes. E são, no fundo, estes contrastes o que fica na memória, terminada a leitura, pois, do que parece, de início, ser a história de um amor em tempos difíceis, emerge, afinal, uma visão mais ampla. Da história de Maara e Ervio, passa-se para as tribulações de toda a aldeia e, daí, para a própria natureza. Tudo num registo ora inocente, ora cruel, ora até ligeiramente mágico. E assim, é quase tudo inesperado. Principalmente o final.
Fica, desta passagem do pessoal ao global, uma sensação de curiosidade insatisfeita. É que, na fase final, algumas das personagens, já com o seu papel desempenhado, parecem ficar para trás no meio da confusão. O que faz sentido, tendo em conta a forma como tudo termina. Mas fica, ainda assim, insatisfeita a vontade de saber um pouco mais sobre o que o destino teria reservado para estas tão estranhas e cativantes personagens.
Reduzida ao mais simples e inocente - ou, talvez, à sua base essencial - , esta é, portanto, a história de uma aldeia e das gentes que nela vivem em tempos de total escassez. Simples, na aparência, mas surpreendente em quase tudo, um livro que se lê de uma assentada e que, do primeiro ao último capítulo, não deixa nunca de cativar.

Autor: João Paulo Borges Coelho
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Odd e os Gigantes de Gelo (Neil Gaiman)

Odd é um rapaz estranho. Tem um sorriso capaz de irritar muita gente e, como se não bastasse, um acidente a cortar uma árvore fez com que tivesse de usar uma muleta para andar. A mãe, essa, casou com outro homem uns anos depois de o pai de Odd ter morrido, e esse homem, ele próprio pai de muitos filhos, não tem tempo para dar atenção ao enteado. Até que um dia, quando o Inverno devia dar lugar à Primavera... continua a ser Inverno. E o frio e as dificuldades fazem com que pequenos atritos se tornem grandes conflitos. É então que Odd decide fugir, sem sequer imaginar que tem um papel a desempenhar no possível regresso da Primavera. E tudo começa com uma águia, uma raposa e um urso...
História de coragem e aventura, vocacionada para um público jovem, mas igualmente cativante para leitores adultos, este é um livro que cativa principalmente pela simplicidade. É uma história bastante curta e em que tudo se resume aos acontecimentos iniciais, o que faz com que, do primeiro ao último capítulo, haja sempre algo a acontecer, sem paragens nem tempos mortos. Além disso, a história de Odd (criança numa aldeia víquingue) e da forma como se encontra com os deuses torna-se especialmente cativante por essa mesma simplicidade. É que, para quem está diante de Thor, Odin e Loki - ainda que numa forma... diferente - há em todas as interacções uma invulgar - mas deliciosa - informalidade. E assim, tudo acontece de forma muito simples e natural. O que não deixa de ser um pouco inesperado.
Quanto à história em si, não se pode dizer que tenha uma base particularmente surpreendente - é fácil adivinhar como tudo termina. Mas já não é tão fácil assim imaginar de que forma se chegará a esse final. É, pois, nas pequenas coisas que estão as surpresas. Na forma como Odd conversa com o Gigante de Gelo, no mistério por detrás da situação em que os deuses se encontram, nas pequenas peculiaridades com que algumas situações são resolvidas... Se a linha geral dos acontecimentos é fácil de prever, já os pequenos detalhes, os momentos divertidos, o toque de inesperado que tudo define, desde o que as personagens fazem àquilo que as caracterizam, esses conseguem sempre surpreender.
E, assim, basta uma história simples para cativar. Breve, de leitura agradável, com um enredo interessante e um ritmo leve e divertido, uma boa história e uma boa leitura. Para miúdos e graúdos.

Autor: Neil Gaiman
Origem: Aquisição pessoal

Para mais informações sobre o livro Odd e os Gigantes de Gelo, clique aqui.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Moonlight Mile - A Última Causa (Dennis Lehane)

Passaram doze anos desde o famoso (ou infame) caso Amanda McCready e a vida de Patrick Kenzie mudou em muitos aspectos. Mas o passado está prestes a bater-lhe à porta. Primeiro, uma chamada telefónica a meio da noite exige-lhe que volte a encontrar. No dia seguinte, a tia de Amanda aparece para lhe dizer que a agora adolescente voltou a desaparecer. Patrick não se pode dar ao luxo de perder tempo com casos que não lhe trazem qualquer proveito. Mas a sensação de ter feito algo de mal no passado puxa-o de volta ao mistério do desaparecimento de Amanda. E tudo indica que, desta vez, Amanda está longe de ser uma criança inocente.
Sendo este livro o último volume de uma série, e estando directamente relacionado com o caso central de um dos outros livros, é natural que haja ligações e referências a acontecimentos passados ao longo do enredo. Mas uma das primeiras coisas a sobressair nesta leitura é que todos os factos essenciais são referidos. Seja no que diz respeito ao caso de Amanda, seja na relação entre Patrick e Angie, os elementos essenciais vão sendo relembrados ao longo da história, o que faz com que, apesar da curiosidade que fica em saber as origens de certas ligações, não há nenhuma pergunta essencial que fique sem resposta. E, assim, o livro lê-se facilmente sem qualquer conhecimento prévio, até porque o caso que Patrick tem agora em mãos é, tanto quanto se pode perceber, completamente diferente do que envolveu a Amanda de quatro anos.
Outro aspecto que se destaca é que a associação deste caso concreto ao da criança desaparecida doze anos antes cria algumas expectativas quanto ao que se poderá estar a passar. Ora, isto consegue ser bastante enganador, pois permite ao autor conduzir gradualmente o leitor a uma realidade bem mais negra - e bem menos inocente - da qual Amanda é o centro racional e em que tudo é planeado com vista a um fim muito preciso.
Ora, é neste aspecto que fica alguma incerteza, pois, tendo Amanda dezasseis anos, e por mais culta que seja, há nas complexidades dos seus actos tantas possibilidades de algo correr mal que parece um pouco improvável que tudo aconteça como de facto acontece. Isto não retira envolvência à história nem lhe diminui a aura de mistério... mas fica, por vezes, a sensação de um ligeiro excesso de sorte.
Quanto às personagens, sobressaem as interacções invulgares (particularmente entre Patrick e Yefim, mas não só) e a forma como o passado influencia muitas das escolhas que acabam por fazer. Não são propriamente figuras do género de despertar empatia. Ainda assim, as circunstâncias em que se encontram tornam-nas interessantes e adequadas aos papéis que têm para desempenhar.
A impressão que fica é, portanto, a de uma história intrigante, que, apesar de recuperar um caso antigo do protagonista, o transforma em algo completamente novo. E, assim, uma leitura cativante e surpreendente, em que tudo se assimila na perfeição, mesmo sem conhecer o resto da série. Gostei.

Autor: Dennis Lehane
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Gennaro Clean - Mafioso sem Mácula (Romeu Cunha Reis)

Criado numa zona pobre e dominada pela máfia, em que a violência é praticamente rotineira e a única forma de viver é jurando lealdade à 'Ndrangheta, Gennaro é um rapaz ambicioso. Educado pela avó para se dedicar aos estudos e aspirar a uma vida melhor, cedo começa a questionar-se sobre a existência de formas de ganhar dinheiro sem recorrer à violência. Mas as respostas que procura não estão ali e, para ser bem sucedido, vai ter de elevar a sua pequena (e não muito legal) ocupação a algo de mais vasto. Parte, portanto, para Roma, onde espera tirar o curso de economia e arranjar um emprego que o ajude a pagar as contas e a ganhar experiência. Mas a sua mente não se contenta com pouco... E o seu jogo da vermelhinha pode muito bem transformar-se na raiz de todo o sucesso.
Um dos primeiros aspectos a destacar-se neste livro é a forma como o autor conjuga a história pessoal do protagonista com várias questões relevantes da sociedade, começando pelo poder do crime organizado e a terminar nas parcerias público-privadas, percorrendo, ao longo do caminho, todo um conjunto que interessantes questões económicas e sociais. E o mais interessante em tudo isto é a forma como o autor as aborda, pois, ao desenvolvê-las do ponto de vista do protagonista, torna mais visível o efectivo impacto dessas questões que são, afinal, mais do que simplesmente coisas de números. Ora, isto dá muito em que pensar e só isso já é motivo suficiente para fazer com que a leitura valha a pena.
Quanto à história em si, é também bastante interessante, ainda que as extensas elaborações teóricas criem, por vezes, uma sensação de distância. Apesar das suas circunstâncias iniciais, nem sempre é fácil simpatizar com Gennaro e as suas escolhas, o que acaba por tornar o tom da narrativa um pouco mais distante. Além disso, a sua evolução no mundo dos negócios acontece, por vezes, de forma bastante abrupta, deixando em aberto várias questões (principalmente relativamente à máfia, mas também ao que aconteceu à família de Gennaro, antes e depois da sua ascensão social).
Há, ainda assim, uma agradável envolvência ao longo de todo enredo, em parte devido à fluidez da escrita e em parte ao rumo dos próprios acontecimentos. Mesmo não se gostando das escolhas de Gennaro, é fácil entendê-las. E, além disso, há no seu percurso uma jornada de crescimento que, apesar de algumas perguntas em aberto, é muito clara na sua base essencial: da pobreza à ambição desmedida e desta a uma percepção um pouco mais equilibrada das coisas. Nem tudo é perfeito, porque o próprio Gennaro (humano como é) também não o consegue ser. Mas as suas peripécias e aventuras nunca deixam de cativar, mesmo assim.
A soma de tudo isto é uma história interessante e de leitura agradável. Com algumas perguntas sem resposta, é certo, mas com um tema muitíssimo relevante e um protagonista cheio de surpresas no seu empreendedorismo. Uma boa leitura, portanto.

Título: Gennaro Clean - Mafioso sem Mácula
Autor: Romeu Cunha Reis
Origem: Recebido para crítica