domingo, 29 de novembro de 2020

O Menino, a Toupeira, a Raposa e o Cavalo (Charlie Mackesy)

Um menino que aspira a chegar a casa. Uma toupeira que gosta de bolo. Uma raposa que acha que tem pouco para dizer. E um cavalo surpreendentemente sábio. Quatro amigos improváveis partem para explorar o mundo, partilhando afectos e dúvidas, perguntas surpreendentemente profundas e segredos tão impossíveis que se tornam naturais. E, por entre descobertas e tempestades, procuram descobrir a amizade e a esperança. E que casa não é apenas um lugar. É amor.
Há algo de absurdamente belo e fascinante na forma como este livro consegue ser ao mesmo tempo simples e indescritível. Simples na linguagem, na brevidade, na forma como ilustrações e imagens se conjugam para dizer em poucas palavras o que é verdadeiramente essencial. (E já em O Principezinho, com que este livro é acertadamente comparado, se dizia que o essencial é invisível aos olhos.) Indescritível precisamente por isso: porque o essencial está lá e é tão profundo e tão belo que, mais do que à mente racional, fala ao coração - e a parte de nós, sobretudo, que aspira a ser amada.
É também uma espécie de força profunda, pois todas as questões são certeiras. E é por isso que, embora à primeira vista possa parecer um livro infantil, não o é. É mais do que isso. É o tipo de livro que facilmente se entranha nos pensamentos e emoções de leitores de todas as idades. E isto é ainda mais impressionante porque - mais uma vez - tudo parece muito simples. Nem há sequer uma história, pelo menos no sentido linear da palavra. Há uma passagem pelo mundo - e o que é a vida senão isso? - com todas as descobertas que isso implica. E tempestades, voos, armadilhas, momentos de solidão, amizade e amor. Porque, mais uma vez, o que é a vida senão isso?
Parece composto sobretudo por impressões. Impressões de um pensamento que se forma, e que é partilhado com os amigos. De um gesto que se torna natural ao ser também dividido. De uma contemplação interior feita de coisas simples que se tornam vastas. É inocente, sobretudo, na sua improbabilidade. Mas lembra ao mesmo tempo que tudo é possível e que a vida é difícil ("...mas és amado") e também as tempestades passarão.
Simples, mas indescritível: indescritivelmente belo, sobretudo. E feito de impressões certeiras, de emoções profundas, de uma proximidade que não se sabe bem de onde vem, mas que fica connosco bem depois de terminada a breve leitura. Para ler e reler, por e a gente de todas as idades. E reflectir também um pouco nesse tão inefável - e invisível - essencial.

sábado, 28 de novembro de 2020

Dylan Dog - Após um Longo Silêncio (Tiziano Sclavi e Giampiero Casertano)

Dylan Dog é um eterno apaixonado e o amor que está a viver significa que está invulgarmente feliz. Mas também a felicidade pode esconder perigos na sombra de velhos vícios. Ao receber a visita de um alcoólico que sente a presença - e o silêncio - da mulher morta, Dylan espera, talvez, encontrar algo em que se concentrar. Mas os seus próprios fantasmas estão mais presentes do que nunca e o silêncio que Owen sente é também palpável para Dylan. O caminho para o fundo é demasiado fácil de percorrer... mas Dylan sabe que tem de lá chegar para depois tentar recomeçar.
A primeira coisa que importa dizer sobre este livro é que, apesar da premissa e do que a capa possa insinuar, esta não é a habitual história de fantasmas. É possível que os haja, sim, mas há algo de absurdamente poderoso em como, apesar do ponto de partida que serve de base a todo este caminho - o silencioso fantasma de Edith - são os fantasmas dos vivos... da própria vida, talvez... os que movem a verdadeira intensidade desta história. E intensidade profunda, de ficar de lágrimas nos olhos, de sentir no fundo da alma o impacto de uma palavra, de atravessar, talvez, um pouco da luta porque as personagens passam e querer compreendê-las. Intensidade do tipo que se grava no âmago do ser.
Claro que ler Dylan Dog é também sempre sentir um pouco o eterno fraquinho pela personagem absurdamente romântica, mas de amores passageiros, um tanto ou quanto bizarra com o seu Judas Dançarino e com uma visão do mundo sempre na fronteira entre o normal e o sobrenatural. Mas o Dylan Dog deste livro é simultaneamente o mais irascível e o mais vulnerável, o mais revoltante e o mais atormentado. E esta história de fantasmas e de silêncio não é só a do seu cliente, pois silêncio e fantasmas são também o que o move.
E, explorado todo este absurdo impacto emocional, importa também falar um pouco da parte visual, em que, mais uma vez, sobressaem os cenários (e particularmente as igrejas) e a expressividade. E é mais do que nunca esta que se destaca: a expressividade de um rosto onde a destruição é visível em contraponto à inocência. Crystal e Edith, Owen e Dylan, são opostos complementares... num longo silêncio. E a expressividade dos rostos transborda da emotividade das coisas. E o caminho do luto e do vício torna-se... vivo, no fundo.
De ficar de lágrimas nos olhos, de sentir no fundo da alma o impacto de uma palavra, de atravessar, talvez, um pouco da luta porque as personagens passam e querer compreendê-las. Repito-me para resumir a essência. Porque é esta a marca que fica deste breve, mas tão fascinante livro: que, após um longo silêncio, vai direito ao coração.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Animais Ameaçados (Martin Jenkins e Tom Frost)

O mundo animal é vasto e fascinante, repleto de todo o tipo de criaturas, mais ou menos estranhas, mais ou menos visíveis, mais ou menos abundantes. Há um equilíbrio. Mas esse equilíbrio tem sido, em muitos casos, ameaçado e muitas destas espécies podem deixar de existir em resultado dessas mudanças. Este livro apresenta um vasto conjunto de espécies ameaçadas, dando a conhecer as suas características e condições - e retratando-as de forma muito interessante.
Não é propriamente uma surpresa que o primeiro aspecto a sobressair neste livro seja a componente visual. Além de grande e colorido - perfeito para uma leitura conjunta com os mais novos, mas também para uma leitura leve e interessante por parte dos... menos novos - as ilustrações de cada uma das espécies, em curiosa forma de selo, são também muito bonitas. É, pois, um livro que, mesmo antes da leitura propriamente dita, dá gosto folhear e fica imediatamente na memória.
Quanto ao texto propriamente dito, importa salientar dois aspectos: concisão e envolvência. É um livro infantil, pelo que é apenas natural que a informação se cinja ao essencial, embora não faltem pontos de interesse ao longo deste livro. Mas sobressai sobretudo a forma como esta relativa brevidade permite realçar a importância da mensagem. Às características de cada espécie juntam-se os esforços feitos ou que é preciso fazer para evitar a extinção, o que é uma bela forma de despertar consciências.
E importa realçar, por último, a diversidade, tanto de espécie como de habitats. Há peixes, mamíferos, insectos e aves, dos mais remotos lugares e também do nosso rectângulo. Também isto realça a importância da biodiversidade e da conservação das espécies - além de recordar a sempre importante verdade de que o mundo é muito mais vasto do que parece.
Breve, mas belíssimo e sobretudo muito relevante, trata-se, pois, de uma bela e pertinente descoberta para leitores de todas as idades, capaz de fascinar pela estranheza dos seus singulares protagonistas e de alertar para a importância de preservar essa singularidade. Perfeito para os mais novos? Sem dúvida. Mas não só para eles.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

O Último Voo (Julie Clark)

Aos olhos do público, Claire tem a relação perfeita. Em privado, as coisas são diferentes. O marido é violento, cruel e jamais a deixará partir sabendo que isso comprometerá a imagem perfeita que criou. Mas Claire não aguenta mais e fez planos para partir. O que não espera é que também esses planos sofram um revés inesperado. Sem saber para onde se virar, cruza-se subitamente no aeroporto com uma outra mulher em fuga. E é aí que surge uma ideia tão absurda que pode efectivamente resultar. E se trocassem de voo?
História de duas mulheres a lidar com um passado difícil e decisões erradas, é no percurso individual das duas protagonistas e na forma como este evoca realidades duras que está a grande força deste livro. Não é o plano de fuga nem a sucessão de reviravoltas o que mais fica na memória - ainda que estes dois aspectos contribuam em muito para tornar a leitura empolgante. É a intensidade e a profundidade das emoções, a situação insustentável de Claire, a forma como uma decisão errada mergulhou toda a vida de Eva num caos que só um contacto próximo a fez assimilar. É a vulnerabilidade das personagens, e a forma como as torna reais e memoráveis.
Não deixa, ainda assim, de haver mistério e perigo e tensão. São, aliás, elementos que não faltam. E, se tudo gira em torno do voo trocado, a forma como a história de Eva é desenvolvida, mergulhando de cabeça no seu passado ao mesmo tempo que a possibilidade de um futuro vai sendo deixada em aberto, cria também uma espécie de tensão. Além, claro, de um final poderoso, pois tudo parecia encaminhar-se para uma verdade que se manifesta, afinal, como algo diferente.
E surge aqui um último ponto de destaque: a forma como a própria escrita se adapta às diferentes emoções que pretende evocar. As introspecções de Eva e os planos desesperados de Claire. O medo constante em cada gesto e a descoberta da coragem nos momentos mais improváveis. Tudo isto surge não só de forma fluida e natural, mas acompanhado de várias frases particularmente notáveis, capazes de reforçar, por si só, o impacto de cada instante.
Repleto de frases marcantes e de personagens reais, além de inesperadamente poderoso na construção das protagonistas, trata-se, pois, de um livro que prende do início ao fim. Cativante, intenso e cheio de surpresas, um livro memorável.

Divulgação: Novidades Saída de Emergência

Uma obra‑prima banida. Duas espias. Um livro que transformou a História.
1956. Boris Pasternak está a escrever Doutor Jivago, um livro controverso capaz de provocar dissensão na União Soviética. Com medo do seu poder subversivo, os soviéticos censuram‑no e proíbem a sua publicação. Mas isso não impede que no resto do mundo a obra se transforme num bestseller… e numa possível sentença de morte para o autor.
A CIA está atenta aos acontecimentos e planeia utilizar o livro para influenciar a Guerra Fria a seu favor. Contudo, os agentes destinados a esta missão não são os espiões tradicionais. Duas secretárias — a charmosa e experiente Sally e a talentosa e novata Irina — são encarregadas da missão das suas vidas: devolver clandestinamente Doutor Jivago à URSS e utilizá‑lo como arma de propaganda.
No entanto, esta não será uma missão fácil. Há pessoas dispostas a morrer por este livro — e agentes prontos a matar por ele. De Moscovo a Washington, de Paris a Milão, Isto Nunca Aconteceu retrata um momento único na história da literatura — contado com emoção e detalhes históricos cativantes. E no coração deste romance inesquecível está a poderosa convicção de que o poder da palavra escrita pode transformar o mundo.

LARA PRESCOTT estudou Ciências Políticas em Washington e trabalhou com consultora em campanhas políticas antes de se dedicar à escrita. Vive em Austin, Texas. O seu romance de estreia, Isto Nunca Aconteceu, foi traduzido para mais de 30 línguas.
Pode consultar a página da autora em http://www.laraprescott.com/.

Com as reservas petrolíferas mundiais em risco, a equipa NUMA é chamada para evitar uma catástrofe iminente.
Depois de uma explosão no Golfo do México destruir três plataformas de extração de petróleo, Kurt Austin e a equipa NUMA são destacados pelo presidente dos Estados Unidos para descobrir o que está a acontecer. As pistas levam-nos até Tessa Franco, uma milionária brilhante na área da energia alternativa. O seu objetivo é acabar com a era do petróleo – a sua empresa gastou milhões a desenvolver o mais avançado sistema de células de combustível do mundo. Mas será ela, de facto, uma heroína ambiental? A equipa NUMA descobre que os campos petrolíferos estão infetados com uma bactéria que está a consumir o petróleo antes de este ser extraído da terra – uma bactéria que se perdeu há muitos anos, quando dois submarinos desapareceram no Mediterrâneo sem deixar qualquer rasto. Com o preço do petróleo a disparar e a economia mundial a colapsar, Kurt terá de encontrar um dos submarinos desaparecidos para poder travar a ameaça biológica que se avizinha. Mas esta não é uma tarefa fácil, e com dinheiro e um exército de assassinos aos seu dispor, Tessa Franco fará tudo o que estiver ao seu alcance para o travar.

CLIVE CUSSLER (1931-2020) cresceu em Alhambra, Califórnia. Alistou-se na Força Aérea durante a Guerra da Coreia, onde cumpriu serviço como mecânico, engenheiro e técnico de voo.
Quando regressou tornou-se diretor criativo em duas agências de publicidade multinacionais, onde ganhou vários prémios. Começou a escrever em 1965 e fundou a NUMA (National Underwater & Marine Agency), uma organização não lucrativa para investigação da História Marítima e Naval.

GRAHAM BROWN cresceu em Illinois, Connecticut e Pensilvânia e já foi piloto, advogado e empresário, tendo decidido optar por uma carreira de escritor. Um grande fã de Clive Cussler, é coautor dos livros da série Arquivos NUMA.
 

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Dylan Dog - Trevas Profundas (Dario Argento, Stefano Piani e Corrado Roi)

Inesperadamente apeado devido a uma apreensão inexplicável do seu carro, Dylan Dog vê-se involuntariamente diante de uma exposição fotográfica sobre sadomasoquismo. Mas, mais do que as fotografias ou a própria artista, é a figura furtiva da modelo que lhe desperta a atenção. Só que ela nunca esteve lá, ainda que Dylan a tenha visto. E é essa presença que lhe inunda as obsessões e os sonhos. A enigmática Laís tem um passado que é preciso desvendar. E, inexplicável como é, só um detective do paranormal pode trazê-lo à superfície...
Tendo em conta o ofício de eleição do protagonista destes livros, não é propriamente uma surpresa a presença de elemento sobrenaturais. E, ainda assim, nunca deixa de ser fascinante a forma como, em cada novo livro, estes assumem novas facetas. Aqui, mantém-se a presença onírica dos sonhos como meio de transmissão de respostas e de concretização dos fantasmas, mas o elemento sobrenatural assume também uma forma mais tangível. Além disso, a ligação entre o elemento BDSM, com os inevitáveis laivos de erotismo, cria um poderoso contraste com outras formas de domínio - e até brutalidade - que vão sendo reveladas. O resultado é simultaneamente fascinante, desconcertante e ligeiramente obsessivo, quase como se as obsessões de Dylan Dog passassem para a cabeça de quem lhe acompanha as aventuras.
Outro aspecto interessante é que, sendo uma aventura mais recente, mostra-nos um Dylan Dog mais velho, o que é realçado não só por uma ou outra observação das personagens, mas pela presença relutante (bem, pelo menos para Dylan) de elementos mais tecnológicos. Os próprios traços do rosto mostram uma figura mais madura, sem lhe retirar nenhuma da sua aura de encanto. Ora, o efeito desta passagem do tempo tem dois benefícios óbvios: primeiro, torna a história mais actual; segundo, enfatiza a intemporalidade do protagonista.
E importa ainda voltar ao elemento onírico para salientar uma impressão visual que é, talvez um pouco difícil de descrever. É uma constante em todos os livros que a arte a preto e branco salienta os jogos de sombra e de profundidade, mas, neste livro específico, há algo mais a emergir. Há como que um tom global mais carregado que parece reflectir o peso das circunstâncias. Das fotografias da exposição aos sonhos reveladores de Dylan, passando, claro, pelos momentos de confronto, é como se uma sombra maior pairasse sobre toda a história, o que, tendo em conta o título do livro, faz especial sentido.
Fascinante, sombrio, absurdamente intenso - e com a mesma aura de amor e de sombra que parece caracterizar todas as aventuras de Dylan Dog. Assim é este Trevas Profundas, leitura breve, mas marcante e transbordante de momentos poderosos. Brilhante, em suma.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Diário de Uma Miúda como Tu: Tique Taque Toque (Maria Inês Almeida e Manel Cruz)

Ter a perna engessada não é nada agradável, principalmente para alguém com tantos passatempos como a Francisca. Mas as limitações físicas não significam necessariamente que ela não tenha outras coisas a que se dedicar. Além da necessidade imperiosa de ter positiva a matemática, a Francisca tem o seu canal, as suas amigas e... bem, um mistério. A descoberta de um esconderijo secreto põe-lhe nas mãos uma cápsula do tempo e a Francisca quer saber a quem pertenceram esses objectos. Entretanto, a vida e a escola continuam, e, para cada desilusão, há novas descobertas. E talvez... novas emoções.
Parte do que torna estes livros tão divertidos, mesmo a um olhar adulto, é a forma como a sua leveza e fluidez nos transportam para a nossa própria infância. Acompanhar a Francisca é lembrar também os primeiros sonhos, as primeiras desilusões, as pequenas grandes frustrações com as notas, com os amigos, com as trapalhadas da vida, em suma. E, assim, embora seja a história singular da sua protagonista, cada um destes livros leva-nos também à nostalgia. Além, claro, de abordar temas importantes que nunca deixam de ser pertinentes, independentemente da idade do leitor.
Parte do que caracteriza a Francisca é a sua consciência ambientalista, havendo, por isso, sempre uma mensagem a este respeito em cada uma das suas aventuras. Neste caso, surge também o tema das desigualdades, o que acrescenta mais material para reflexão. E, tendo sempre em vista o público preferencial a que estes livros se destina, importa sempre destacar a leveza e a clareza com que estas questões são abordadas, de forma muito simples, mas salientando sempre a sua importância.
Temas sérios à parte, continuam a manter-se as mesmas características dos volumes anteriores: leveza, simplicidade, um sentido de humor muito cativante e uma história que, feita sobretudo de coisas normais, se destaca também por isso mesmo: por a Francisca ser, parafraseando o título, uma miúda como nós, perfeitamente normal. Claro que é, como sempre, uma história relativamente breve, mas, livro a livro, aventura a aventura, a personagem vai sempre ganhando mais vida, tornando-se assim mais próxima e mais completa.
Simples, cativante e com uma forma muito eficaz de falar de coisas sérias de forma leve e divertida, trata-se, pois, de mais uma leitura rápida, mais muito envolvente. É sempre um prazer reencontrar a Francisca - e ver em que aventuras se vai meter a seguir.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Encontrar-me, Encontrar-te, Encontrá-lo (Maria Cunha e Silva)

A perda da mãe e o peso das responsabilidades levaram Júlia a abandonar quaisquer expectativas e a viver a sua vida de acordo com o que dela era esperado. Mas o tempo passou, a dor só se tornou mais pesada e a única âncora que manteve - o namorado - parece-lhe agora mais uma limitação. Para amar o mundo, precisa de se amar a si mesma, e não o está a fazer. É, pois, por impulso e necessidade de se encontrar que Júlia compra um bilhete para a Tailândia, na esperança de que, durante as suas viagens, encontre a sua verdadeira identidade. O que nem sequer imagina é que vai encontrar muito mais além disso...
Provavelmente o grande ponto forte deste livro é a sua capacidade introspectiva e a forma como, alongando-se nos pensamentos, dúvidas, paixões, certezas, valores e mudanças da protagonista, a autora consegue evocar bocadinhos da vida de qualquer um de nós. Todos conhecemos perdas, (des)ilusões, esperanças que falharam, abismos aparentemente infinitos e bases de superação improváveis. E, assim, ainda que nem sempre seja fácil compreender estas personagens, existem sempre pontos de proximidade, frases que falam à nossa própria identidade e nos fazem querer saber mais sobre este grupo de pessoas.
A maior surpresa vem também deste percurso, já que as escolhas das personagens são muitas vezes moralmente ambíguas, o que significa que ninguém é absolutamente admirável nem um absoluto vilão. Bem... quase ninguém. Ora, isto tem dois impactos: o primeiro é a percepção das imperfeições humanas, pois escolhas erradas acontecem a todos e as perspectivas mudam consoante o conhecimento. O segundo é que nem tudo é justificável, daí que haja um ponto em que os tons de cinzento têm de dar lugar a uma percepção mais clara.
E é isto que me leva a outra ambiguidade: a sensação de que ficam nesta história algumas pontas soltas. O percurso de Jacob e a história familiar de Rafael passam para segundo plano face à história de amor dos protagonistas, o que deixa vários assuntos por resolver. E, sendo certo que assumem uma posição secundária, é impossível não ficar com uma certa curiosidade insatisfeita, num dos casos por falta de consequências, no outro pela grande revelação final.
Tendo tudo isto em conta, sobressaem dois pontos na impressão final: a força emotiva do que é, acima de tudo, uma história de amor e o crescimento da protagonista, que, ambiguidades à parte, chega ao fim do seu caminho como uma pessoa melhor e com uma voz própria muito mais firme. Juntemos a isto as várias frases memoráveis e os pontos de proximidade e o resultado é muito simples: uma história que não é perfeita, mas não deixa, ainda assim, de ser uma boa leitura.

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Divulgação: Novidades Desassossego e Saída de Emergência

Nascida em Praga em 1929 no seio de uma família judaica, Dita Kraus viveu durante um dos períodos mais turbulentos do século xx. Neste livro ela relata com impressionante clareza os horrores e as alegrias de uma vida adiada pelo Holocausto: das suas primeiras memórias e amigos de infância em Praga antes da guerra, à ocupação nazi que a enviou a ela e à sua família para o gueto judaico de Terezín, ao medo inimaginável da sua detenção em Auschwitz e Bergen-Belsen, e à vida depois da libertação. Dita escreve com rigor sobre as difíceis condições dos campos, sobre o seu papel como guardiã da mais pequena biblioteca do mundo e sobre o papel fundamental que os livros tiveram como escape da realidade. E vai além do Holocausto, apresentando a vida que reconstruiu depois da guerra: o seu casamento com o sobrevivente Otto B. Kraus, a nova vida em Israel e a maternidade.
Esta é a verdadeira história da bibliotecária de Auschwitz contada pela sua protagonista.

DITA KRAUS
Nasceu em Praga em 1929. É uma das poucas sobreviventes cujos desenhos de infância foram miraculosamente resgatados e estão em exibição no Museu Judeu de Praga.
Em 1942, quando tinha 13 anos, ela e os seus pais foram deportados para Theresienstadt e depois para Auschwitz. Posteriormente, elae a mãe foram enviadas para trabalhos forçados na Alemanha e depois para o campo de concentração de Bergen-Belsen. Depois da guerra, Dita casou com Otto B. Kraus. Ambos emigraram para Israel em 1949, onde trabalharam como professores. Tiveram três filhos.

Veronica tem 17 anos e é uma aluna excelente com um futuro promissor… até ter nas suas mãos um teste de gravidez com duas linhas cor‑de‑rosa. Com todos os seus planos a desmoronarem, equaciona algo impensável: fazer um aborto. Mas há um problema: a clínica mais próxima fica a 1500 quilómetros e Veronica não tem carro. Desesperada, recorre à única pessoa que sabe que não a vai julgar: Bailey Butler, a rebelde da escola e a sua ex‑melhor amiga. O plano é simples: catorze horas de viagem até à clínica, três horas para a intervenção e catorze horas de regresso. O que poderá correr mal? Tudo, se pensarmos em três dias de carros roubados, caçadeiras e ex‑namorados histéricos. Pior: a dor de uma amizade desfeita está demasiado presente e quando uma discussão leva a um brutal momento de verdade entre elas, Bailey abandona Veronica.
E então a jovem terá de arriscar tudo — a sua hipótese de fazer o aborto, as suas esperanças e sonhos para o futuro — para reparar a dor que causou. É que ela já percebeu que o caminho para a vida adulta é duro… mas bem mais fácil quando se tem uma amiga ao lado.

Jenni Hendroks foi durante vários anos argumentista da série Foi Assim que Aconteceu. É também cartoonista e os seus trabalhos são publicados na revista Ms.
Ted Caplan trabalha como escritor e editor musical na área do cinema há mais de vinte anos. Esteve envolvido na criação da banda sonora dos filmes Maze Runner — Correr ou Morrer, Logan, Deadpool e O Ódio Que Semeias. É também o argumentista de Love Sonia, um filme sobre o tráfico sexual internacional, dos mesmos produtores de A Vida de Pi e Quem Quer Ser Bilionário?.

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Dylan Dog - O Imenso Adeus (Mauro Marcheselli, Tiziano Sclavi e Carlo Ambrosini)

Enquanto reputado detective do paranormal, Dylan Dog está habituado a fenómenos estranhos. O que não lhe parece vulgar é que o seu fiel amigo e assistente esteja a comportar-se de forma... normal. Mas tudo ganha outra perspectiva com a entrada em cena de Marina, a sua paixão de juventude que, sem saber como, foi parar à porta de Dylan e precisa que ele a acompanhe a casa. Dylan não sabe bem o que se passa, mas a força das memórias não lhe permite hesitar. E a viagem de regresso ao passado, cheia de estranhezas e de memórias, esconde já uma verdade difícil... mas que é preciso aceitar.
Há algo de absurdamente fascinante na forma como a história de um protagonista que dedica grande parte da vida a investigar monstros e fenómenos bizarros consegue ser tão natural e familiar. Mais do que a estranheza dos acontecimentos - que são estranhos, entenda-se, mas que fluem também com uma naturalidade incrível -, marca a profundidade dos sentimentos e a complexidade de emoções e laços que ficaram no passado, mas prevalecem. Além disso, esta intensidade emocional cria um curioso contraste com a leveza dedicada aos momentos da juventude, um contraste que é também visual, mas que é, acima de tudo, emotivo.
Estranheza não falta, como é óbvio, desde a estrada deserta ao singular parque de diversões, passando pela arma vinda do nada e pelo omnipresente galeão. E há dois pontos a destacar acerca deste aspecto: primeiro, a intensidade das imagens que, moldadas sobretudo em contrastes de luz e sombra, dão a esta viagem... no tempo... um tom onírico que se lhe adequa na perfeição. Depois, os laços discretos, mas sempre tangíveis, que vão unindo as diferentes histórias. Cada episódio é um todo independente, mas a personagem é mais do que isso, e estes elos de ligação realçam fortemente a magia de cada reencontro.
E Dylan Dog... bem, Dylan Dog é apaixonante, com o seu passado cheio de mistérios, a melancolia que, a cada nova revelação, se vai tornando mais compreensível e uma expressividade absurda no olhar. É uma personagem enigmática, mas capaz de despertar profunda empatia, e é precisamente isso que o torna tão especial.
Um Imenso Adeus ao passado... e um belíssimo reencontro com as memórias. É essa a imagem que fica deste livro, melancólico e belo, mas com deliciosos rasgos de leveza a contrapor às sombras que nele se agitam. E um enigma, sempre... da matéria do improvável, mas delicioso de decifrar.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Lucky Luke Muda de Sela (Mawil)

Mais rápido do que a própria sombra e astucioso como muito poucos, nem mesmo cheio de sono Lucky Luke consegue deixar de ir em auxílio de quem precisa. Mas o seu encontro com o inventor Albert Overman trar-lhe-á aventuras como nunca viu. A caminho de uma corrida de bicicletas, o inventor leva consigo um novo e revolucionário modelo, com que espera bater a concorrência. Só que a concorrência tem outros planos... e Luke acabará por se ver obrigado a experimentar em primeira mão essa nova - e pouco expressiva - montada.
Como personagem intemporal que é, Lucky Luke dispensa apresentações, mas um dos pontos a sobressair desta nova aventura é o cativante equilíbrio entre familiaridade e inovação. Não é propriamente fácil imaginar um cowboy sem o seu cavalo, certo? E é esta mudança, com todas as peripécias divertidas que a acompanham, que torna esta história tão diferente, sendo, porém, em simultâneo perfeitamente evocativa do Lucky Luke tradicional (disparos rapidíssimos incluídos).
Embora as características e a personagem sejam sobejamente conhecidas, há, ainda assim, uma certa singularidade. Se o compararmos, por exemplo, com O Homem que Matou Lucky Luke, vemos não só um traço muito diferente, aparentemente um pouco mais... rotundo (e não vou explicar o porquê desta palavra, porque estaria a revelar a surpresa final), mas também um registo global mais leve. As atrapalhações de Luke com a bicicleta e toda a situação em torno do seu cavalo são simplesmente deliciosas, tal como a relação entre o casal de bandidos. E assim, mais do que os tiros e a perspicácia (não querendo, ainda assim, dizer que os não haja) sobressai um humor verdadeiramente brilhante.
Quanto aos bandidos e à história principal, fica, por vezes, a sensação de um avanço ligeiramente apressado, em que talvez a parte dos vilões pudesse ter sido um pouco mais desenvolvida. Mas faz um certo sentido este ritmo alucinante, reflectindo um pouco a imagem da correria de Lucky Luke no seu novo... burro de ferro.
Leve, cativante e, acima de tudo, com um sentido de humor delicioso, eis, pois, uma leitura breve, mas absolutamente empolgante. Um Lucky Luke diferente, talvez, mas tão irresistivelmente familiar que deixa saudades.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Estou Zangado (Aurélie Chien Chow Chine)

No que diz respeito às emoções, a crina mágica do Gastão nunca o deixa mentir. E, desta vez, o Gastão está muito, muito zangado. Mas porquê? Ora, porque... porque as coisas nem sempre correm como ele quer. E, como todas as outras emoções, também sentir-se zangado é normal, desde que temporariamente. Por isso, o Gastão tem um exercício para lidar com a nuvem negra que, às vezes, aparece na sua cabeça. E, assim, pode voltar a sorrir!
Se, mesmo para os adultos, nem sempre é fácil compreender as emoções e lidar com elas, para os mais novos será ainda mais difícil. E é este o primeiro aspecto que importa salientar sobre este conjunto de pequenos livrinhos: a capacidade de transmitir uma mensagem de normalidade, que todas as emoções fazem parte da vida, incluindo as negativas, e é preciso lidar com elas. Junte-se a isso a simplicidade, a leveza e a cor e o resultado é, além de uma mensagem positiva, um livro muito bonito para ler aos mais pequenos.
Provavelmente, é também devido a esta mensagem que, apesar de todos os livros seguirem basicamente a mesma estrutura - explicação, história, exercício - a leitura nunca se torna repetitiva. Cada livro tem um percurso a transmitir para cada emoção e, embora as linhas gerais sejam as mesmas, a emoção tem impactos muito diferentes. Daí que, apesar da relativa brevidade e da fórmula comum, sejam perfeitamente distinguíveis - além de sempre cativantes.
Simples, breve e muito ternurento, trata-se, em suma, de uma leitura muito rápida, mas perfeitamente capaz de explicar, com um toque de magia, o funcionamento de uma emoção que, apesar de desagradável, não deixa de ser normal. E que não são só os mais novos que precisam de entender.

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Proezas de Unicórnio (Dana Simpson)

Ter amigos é bom. Ter uma amiga que é um unicórnio é... cintilante! E a Bia já não passa sem a sua amiga Pureza. Parceira de bowling, boleia constante, tema dos seus trabalhos de escola, musa mais ou menos inspiradora para as suas composições no piano e companheira de todos os momentos, a Pureza é uma parte essencial da vida da Bia. E, diga-se de passagem, além de lhe acrescentar brilho, acrescenta também diversão... muita diversão.
Parte de uma série já relativamente longa, mas em que a grande maioria dos episódios são basicamente independentes (até porque grande parte dos livros são compostos mais por momentos da vida da Bia do que propriamente por uma história sequencial), uma das primeiras coisas que importa dizer sobre este livro é que se lê de forma perfeitamente independente. Não é preciso ter lido todos os volumes anteriores, ou sequer alguns, para apreciar estas pequenas aventuras. Ainda assim, não deixa de ser verdade que, terminada a leitura, fica sempre a vontade de ler mais sobre estas duas personagens.
Claro que, para quem já leu alguns dos outros livros, as características essenciais mantêm-se iguais: cor, simplicidade, brilho (porque, afinal, a Pureza é um unicórnio...) e humor, conjugados numa sucessão de pequenas aventuras e episódios divertidos que proporcionam uma leitura leve e sempre cativante. E é interessante notar que, mantendo embora as mesmas características de livro para livro, a leitura nunca se torna repetitiva. Talvez a simplicidade contribua para isso, mas o mais marcante é, ainda e sempre, a amizade que une estas duas personagens. E, assim, o reencontro é sempre agradável.
Um último ponto constante, mas que importa sempre mencionar, é a capacidade de falar de coisas sérias - e até de apelar à reflexão - sem nunca perder de vista a leveza. O valor da amizade, os possíveis preconceitos, as diferenças entre gerações e até a luta contra o sistema (das convenções instituídas) marcam presença ao longo deste livro - sempre de forma leve e concisa, mas nem por isso menos relevante. E, sendo um livro para os mais novos, talvez seja mesmo esta a melhor forma de começar a abordar questões mais profundas.
Leve, colorido e, acima de tudo, muito divertido: assim é este novo livro da Bia e do seu Unicórnio. Um conjunto de episódios caricatos e cativantes - com temas sérios a pairar - e uma leitura que, embora relativamente breve, facilmente nos arranca múltiplos sorrisos. Perfeito para descontrair, em suma.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Berserker: Exilado (Jeff Lemire e Mike Deodato Jr.)

Anos de luta constante, de violência e de guerra valeram-lhe uma reputação indescritível. O Berserker. O Rei Mestiço. Há até quem lhe chame morte. Agora, porém, finalmente de regresso a casa, descobre que a morte chegou primeiro, não para o levar, mas àquelas que mais amava. O que lhe resta então, depois de tudo perdido? Lutar? Morrer? Ou... fugir? Não sabe o que o move a, pela primeira vez, fugir do perigo... tal como não sabe o que o espera. Uma misteriosa caverna transporta-o para um outro mundo, onde não compreende os modos nem a linguagem, mas onde os seus inimigos o perseguem. Ainda assim, talvez não esteja tão só como julga... e a amizade possa vir dos lugares mais improváveis.
Ao começar a ler uma história de bárbaros, esperam-se, talvez, muitas coisas, mas emotividade não será certamente uma delas. E é este magnífico ponto de partida que, desde as primeiras páginas, se entranha na memória com toda a força de um choque, conduzindo-nos depois numa jornada que tem, sim, também tudo aquilo que esperaríamos de uma história de bárbaros - grandes lutas, sangue quanto baste e uma certa e inevitável implacabilidade - mas também uma profunda humanidade. Das dúvidas interiores do protagonista aos laços familiares destroçados, passando pela estranha e encantadora amizade que se vai formando ao longo do livro, a verdade é que as páginas transbordam de sentimento, o que, além de inesperado, é qualquer coisa de genial.
Outro aspecto que é impossível não notar, após uns quantos livros com o nome de Jeff Lemire, é a forma como cada história assume uma identidade própria - salientada, naturalmente, por um estilo de arte sempre distinto - sem nunca perder de vista a já tão enfatizada emoção. Cada mundo é um mundo diferente e todos têm o seu quê de brilhante. Este tem uma voz poderosíssima na figura do seu protagonista e um equilíbrio fascinante entre o improvável e o universal.
Mas voltemos ainda ao Berserker para salientar que, embora seja a emoção a grande surpresa, a história está muito longe de se esgotar aí. As cenas de combate estão cheias de movimento, a caraterização dos inimigos cheia de peculiaridades (há, aliás, uma expressão na fase final que fica na retina bem depois de fechar o livro) e existem mútliplos mistérios para desvendar. Escusado será dizer que ficam perguntas sem resposta - é apenas expectável num mundo como este. Mas é tão forte o impacto dos grandes momentos e tão estranhamente fascinante a empatia que esta história desperta que tudo o resto se torna secundário. Além disso, dado o envolvimento da névoa... bem, é adequado que certos aspectos permaneçam nebulosos.
Surpreendentemente emotivo, visualmente belíssimo e com um equilíbrio notável entre a fúria do guerreiro e o desamparo do pai, trata-se, pois, de uma história tão marcante quanto surpreendente. Intensa, memorável e, a espaços, absurdamente comovente, uma magnífica surpresa.