Quando o abrandamento foi anunciado, uns pensaram que o mundo ia acabar, outros que não tardaria a regressar a normalidade. No princípio, poucos se aperceberam do que estava a acontecer, mas, com a passagem dos dias, os efeitos viriam a tornar-se evidentes. Agora, todos entendem. A rotação da Terra alterou-se e os dias deixaram de ter vinte e quatro horas, cada dia surgindo como um pouco mais longo. As consequências não se fazem esperar. Mas para Julia, o abrandamento não é o único problema com que tem de lidar. Aos onze anos, tem pela frente também as mudanças do fim da infância e as amizades, separações e primeiros amores tornar-se-ão mais intensos pelas circunstâncias em que decorrem. Entre as constantes mudanças do abrandamento e a catástrofe que, cada vez mais, se afigura inevitável, Julia encontrará amor e perda e verá o mundo com outros olhos - mesmo se esse mundo parece aproximar-se do fim.
Apesar de ter por base uma situação de potencial catástrofe global, a forma como a história é desenvolvida marca principalmente pelos aspectos pessoais. Ao narrar os acontecimentos do ponto de vista de uma rapariga que teria onze anos na altura em que os viveu, a autora cria uma perspectiva da história que é bastante mais centrada no que a protagonista vê e entende sobre as circunstâncias e que completa os poucos dados conhecidos sobre o abrandamento com uma história pessoal marcada por todos os dilemas e tomadas de consciência característicos da idade de Julia. Para Julia, as consequências do abrandamento e as mudanças por este provocadas são tão importantes como as que estão a acontecer na sua vida pessoal: as amizades quebradas, a pouca convivência social, o rapaz que a fascina e, principalmente, os segredos e os conflitos da vida familiar. Tudo decorre em função do abrandamento, mas também é o abrandamento que intensifica as mudanças nas relações, e Julia vê essas mudanças ainda com relativa inocência. Inocência essa que se altera com o seu percurso do crescimento e que fortalece o que de mais cativante há na personagem de Julia.
Mas nem tudo é pessoal e as circunstâncias do abrandamento servem também como base para explorar alguns aspectos interessantes. Tudo é visto do ponto de vista de Julia e, portanto, apresentado com a simplicidade com que ela assimila as situações, mas há vários aspectos relevantes na forma como o abrandamento é relacionado com questões ecológicas, como a escolha entre seguir o Tempo de Relógio e o tempo real gera preconceitos e actos de sabotagem, cavando linhas de separação, na forma, ainda, como diferentes pessoas reagem à possível calamidade. Há, também, muitas perguntas deixadas sem resposta, quer sobre o abrandamento, quer sobre personagens importantes para Julia, mas essa ambiguidade acaba por ser estranhamente adequada, já que, em circunstâncias como as que são apresentadas, dificilmente seria possível saber tudo sobre todos.
História de um possível apocalipse, mas principalmente do crescimento de uma criança em tempos de profundas mudanças (globais e pessoais), O Tempo dos Milagres conjuga uma escrita fluída e acessível, mas com toques de poesia, com um enredo em que o lado global e o lado pessoal das circunstâncias se relacionam no equilíbrio mais adequado. Cativante desde o início e com vários momentos comoventes, deixa em aberto várias possibilidades por explicar. Ainda assim, tudo o que mais importa está lá e isso basta para que a leitura valha a pena.
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