Aos dez anos, Otto Dov Kulka e a mãe foram enviados para Auschwitz a partir do gueto de Theresienstadt. Aí, foram incluídos no chamado "campo das famílias", um sistema à parte dentro do sistema de Auschwitz. Sobrevivente ao campo e à marcha da morte, a experiência de Otto permaneceu parte essencial da sua memória, nos factos concretos e na presença em sonhos. É essa memória - essa fusão entre o que aconteceu, o que foi esquecido e o que nunca se pôde esquecer - a essência deste livro.
Relato de uma viagem à memória - e não às memórias - de uma infância vivida em Auschwitz, Paisagens da Metrópole da Morte é, ao mesmo tempo, testemunho de certas circunstâncias e análise de uma memória peculiar. Assim, enquanto relato de um sobrevivente, distancia-se de muitos outros, e o mesmo faz enquanto análise da memória e do imaginário. É diferente, porque não descreve o percurso do autor, ou pelo menos não o faz de forma linear, explorando antes os episódios que ficaram retidos na memória e perpetuados em sonho, e também pelo tom mais introspectivo, de consideração sobre o sucedido enquanto "paisagem" de uma perspectiva pessoal. E é diferente, também, porque a memória considerada - Auschwitz - surge como perene e inevitável, tornando mais precisas e mais intensas as considerações do autor sobre a sua história.
Este registo muito próprio é parte do que torna a leitura tão marcante. Mas há mais. Há os factos em si, sempre impressionantes e perturbadores, e a forma como o autor os recorda, com a inevitável selectividade da memória, mas também com o impacto acrescido de se tratarem de memórias de infância. E há a análise particular que o autor construiu para a sua memória: todo o sistema da Metrópole da Morte, com a sua lei inevitável, confere às recordações uma perspectiva diferente, mais forte, mais impressionante.
Para além de tudo isto, há ainda dois aspectos importantes. Um deles diz respeito às várias imagens que acompanham o texto e que tornam o que é narrado mais próximo e mais real, reforçando um pouco mais o seu impacto. O outro é o estilo particular do autor na forma como escreve, com um tom que ora se distancia, colocando-se como o observador que contempla o passado, ora se aproxima, regressando ao tempo dos sonhos e das recordações. Introspectivo e pessoal, sem dúvida, mas também com um intenso contraste entre laivos de quase poesia e a clara dureza da exposição dos factos.
Este é, pois, um relato diferente de uma história que nunca será demasiado repetida. Impressionante pelos factos e pela forma como são contados, Paisagens da Metrópole da Morte visita memórias sombrias, num tom que se entranha também na memória de quem lê. E é essa evocação tão clara, tão própria, tão impressionante que faz com que o impacto seja tão forte. Sem dúvida que vale a pena ler este livro. Vale mesmo a pena.
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