Abril de 1506. Despoletado por uma questão menor, desencadeia-se em Lisboa o caos que, durante dias, levará à morte de milhares de cristãos-novos, acusados pelo povo e pelos frades de serem os causadores da peste e da fome. No mesmo dia, numa cave secreta, o cadáver de um mestre cabalista é encontrado pelo seu sobrinho e aprendiz. Começa aí a jornada de Berequias Zarco, um caminho de vingança que não se concluirá senão com a descoberta do assassino, mas também uma jornada de percepção e de descoberta de uma missão. É que Lisboa deixou de ser segura para os judeus e a tragédia que se vive é a precisa confirmação desse facto.
Cativante desde as primeiras páginas e marcante em inúmeros aspectos, há muito de bom a dizer sobre O Último Cabalista de Lisboa. E o primeiro de muitos pontos fortes a destacar-se é o equilíbrio entre o desenvolvimento do contexto e os acontecimentos centrais do enredo. Há, aliás, um equilíbrio mais profundo que a fusão entre elementos de mistério e de romance histórico. O percurso individual de Berequias e da sua busca por vingança está intimamente associado à história dos judeus secretos em Lisboa, e isto não se aplica apenas ao facto de tudo ocorrer em simultâneo, mas também à perspectiva que o próprio protagonista tem do contexto global, analisando tanto o comportamento dos homens como as questões de fé.
Há, por isso, muito material para reflexão ao longo deste livro e este é o ponto de partida para outra das suas grandes forças. É que todas estas questões e reflexões são desenvolvidas de forma equilibrada e gradual ao longo da evolução do enredo. A leitura nunca deixa de ser cativante e até viciante, já que o mistério da morte do mestre Zarco é um assunto sempre presente, mas todas as questões importantes estão lá, presentes e concretas, mas sem qualquer quebra na fluidez do enredo.
Ainda um outro ponto forte que é inevitável referir diz respeito à escrita. Fluída e harmoniosa, com um toque de poesia e frases absolutamente belíssimas, a forma de contar a história é tão marcante como a história em si. Tudo é construído com mestria, espelhando da melhor forma a tensão de diálogos e acções, a introspecção ou o desespero dos sentimentos, o que caracteriza um lugar, um indivíduo ou um estado de alma. O resultado é um equilíbrio praticamente perfeito, tanto no desenvolvimento da história como no uso da palavra.
E falta mencionar ainda um outro aspecto que contribui em muito para fazer deste livro uma leitura memorável. É, claro, a capacidade de transmitir emoção. Isto surge, em primeiro lugar, no desenvolvimento das personagens, com Berequias a surgir como um protagonista carismático, mas com a tragédia circundante a realçar os traços mais humanos dos que o rodeiam, mas é também realçado pelos acontecimentos, já que tanto os momentos dramáticos como a simples suspeita que, por vezes, se torna ela própria protagonista, conferem a algumas situações uma intensidade devastadora.
Envolvente e surpreendente, este é, pois, um livro que dificilmente poderia deixar melhor impressão. Com personagens fortes, um enredo muitíssimo bem construído e uma escrita belíssima, não posso deixar de recomendar este livro brilhante.
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