quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Machu Picchu (Tony Bellotto)

Chica e Zé Roberto fazem dezoito anos de casados e estão parados no trânsito, bem no centro de um dos maiores engarrafamentos de sempre, a pensar em como se desviaram daquilo que julgavam ser. Zé Roberto partilha uma relação virtual nada platónica com uma jovem que se esconde sob o código W19. Chica percorre motéis com Helinho, um colega de trabalho por quem sente uma sempre crescente paixão. Mas as suas relações secretas não são tão secretas como julgam e o fim do dia - daquele dia - pode bem corresponder aos presságios anunciados por um gordinho algures no meio do engarrafamento. Ou então, ser o princípio de algo de novo, mas não necessariamente tão diferente.
Apesar das suas pouco mais de cem páginas e da limitação temporal da linha narrativa (quase todo o enredo decorre num único dia) este é um livro que surpreende pela forma como, partindo da banalidade do quotidiano, constrói uma perspectiva ampla sobre a verdadeira complexidade dos hábitos e das relações das pessoas. Chica e Zé Roberto parecem estar no centro de uma crise de meia idade, com todas as ideias que esta estão associadas, desde os casos amorosos às mudanças de comportamento. Mas, apesar disso, o que o autor faz neste livro é pegar nestes elementos conhecidos e dar-lhes uma forma diferente. O resultado é uma história em que tudo é surpreendente, das personagens, ao enredo e à própria forma de escrita.
E, falando da escrita. Ao alternar entre os pontos de vista dos dois protagonistas e, ocasionalmente, do filho de ambos, o retrato da vida familiar é traçado de uma forma bem mais completa. Mas, mais que isto, há um tom diferente associado a cada uma das personagens, a partir do qual estas são facilmente reconhecíveis. Assim, a caracterização das personagens estende-se à própria forma como o autor escreve nas suas vozes, tornando-as, de certa forma, mais próximas.
Isto é particularmente interessante tendo em conta um outro ponto surpreendente neste livro. É que, apesar de uma certa amargura na forma como reflecte a vida familiar (rotinas, traições e revelações desagradáveis incluídas), há, ao longo de toda a narrativa, uma estranha espécie de humor, um pouco negro, talvez, mas muitíssimo cativante, que, ao dar à história um toque de improbabilidade, torna mais fácil a assimilação do seu retrato (não muito abonatório) da realidade.
Escusado será dizer que a impressão que fica de tudo isto é muito positiva. Com tudo o que tem de invulgar, mas também com o que tem de muito real, Machu Picchu apresenta uma história cativante e surpreendente, com personagens complexas, muitíssimo bem construídas e com vozes assustadoramente reais. A soma de tudo é, claro, um livro muito bom. Recomendo.

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