Dois casais juntam-se para jantar num restaurante luxuoso. Falam de filmes, das férias, de tudo o que faz uma boa conversa de circunstância. Tudo para adiar o mais possível a razão que os levou até ali - discutir o futuro dos filhos. Mas, à medida que o jantar se prolonga e as razões daquele encontro se tornam claras, vai-se tornando cada vez mais difícil ignorar os factos. E, entre a escolha nobre ou a que protege os interesses dos envolvidos, surge a necessidade de resolver - de uma vez por todas - a situação em família. O problema é que nem todos querem o mesmo. E talvez não haja limites para o que estão dispostos a fazer para proteger as suas vidas tal como as conhecem.
Há algo de profundamente assustador neste livro. E, sim, esta é, provavelmente, a impressão que mais se destaca ao longo desta leitura. Assustador pela situação que, no fundo, serve de base à narrativa, mas, acima de tudo, pelas questões que evoca na forma como os protagonistas lidam com a situação. Há actos de violência escondidos sob o esplendor luxuoso que levou os protagonistas àquela reunião. E há uma necessidade de proteger. Mas de proteger o quê? Os filhos? Ou a estabilidade da vida que têm? Esta é apenas uma das várias perguntas que vão surgindo ao longo desta leitura, em que a brutalidade da violência se opõe à quase absurda serenidade com que os factos são encarados. Onde estão os limites para o que pode ser tolerado? Até onde vai a capacidade de negação?
Porque é, no fundo, de negação que vive grande parte desta história. E é tendo isto em conta que a construção da narrativa se revela no que tem de mais impressionante. O autor, dando a um dos seus protagonistas a voz que conta a história, permite às suas personagens ignorar durante o máximo de tempo possível aquilo que não pode ser ignorado. Esconde verdades sob a aparência de uma suposta felicidade, abrindo caminho para as revelar precisamente no momento em que mais impacto têm. E, realçando nos seus protagonistas a individualidade das famílias infelizes que várias vezes refere, constrói um cenário que, profundamente perturbador, contrasta com a aparente leveza com que tudo - ou quase tudo - é contado.
É certo que há em tudo isto algo de quase surreal. Nas conversas que parecem esconder tanto como aquilo que dizem, na forma como o narrador esconde deliberadamente partes da sua própria história, na solução que, em última análise, acaba por ser a mais inesperada de todas para o problema... Mas o mais estranho é que tudo parece, ao mesmo tempo, absurdo e absurdamente plausível. É fácil imaginar os dois casais à mesa, sabendo que têm de falar sobre o assunto, mas tentando evitá-lo. Fácil imaginar um dos elementos a tentar - talvez - fazer a coisa certa, encontrando apenas mais oposição. E fácil, ainda que perturbador, acreditar na facilidade com que as personagens encontram argumentos para justificar as suas posições - por mais revoltantes que elas possam ser.
De tudo isto, surge uma história que facilmente cativa, e que precisamente por isso intensifica a crescente escuridão que apresenta a quem a lê. Uma história que, na forma como se constrói, quase parece leve, ao mesmo tempo que abre portas para alguns dos recantos mais sombrios da natureza humana. E tudo isto - fluidez e quase leveza da escrita, complexidade das questões que evoca, revelação atrás de revelação perturbadora - dá forma a uma narrativa que, nem sempre fácil de compreender, mas sempre intensa e surpreendente, acaba por se instalar na memória. E é isso mesmo que faz deste livro uma obra impressionante.
Título: O Jantar
Autor: Herman Koch
Origem: Recebido para crítica
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