quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Os Filhos de Salazar (António Breda Carvalho)

Tudo começa com um mistério, na noite em que o avião do major Reinaldo Varela se despenha no rio. Por acidente ou propositadamente? Ninguém sabe ao certo, ainda que haja quem tenha as suas teorias. Pouco depois, o país muda com o golpe que dá origem ao Estado Novo, e as regras da moral e dos bons costumes tornam-se ainda mais estritas. E, enquanto uns as aceitam sem hesitar, outros há que insistem em revoltar-se, da maneira que lhes for possível. É neste ambiente que crescem Mariana e Mariano, em tudo opostos. Ela, teimosa e rebelde, decidida a afirmar o seu direito à independência. Ele, piedoso e bem comportado, pronto a dedicar a vida a Deus. Só que a vida nunca é só o que planeamos e as escolhas de Mariana e Mariano levá-los por caminhos inesperados... mudando tudo o que julgavam ter como certo. 
Centrado, até certo ponto, no percurso de vida dos dois protagonistas, mas, acima de tudo, no retrato de um tempo e das mentalidades então vigentes, este é um livro que, mais que por grandes acontecimentos, cativa principalmente pelas pequenas coisas. Sim, há grandes pontos de viragem na história, momentos dramáticos de graves consequências, mas, no fundo, são as pequenas mudanças e as percepções graduais que ditam o rumo da história. E isto é interessante precisamente porque, além de Mariano e Mariana, fica-se com uma ideia muito clara do que poderia ter sido viver naquele tempo.
Nem sempre é fácil gostar das personagens. Não parece sequer que seja esse o objectivo. Isto porque reflectem em grande medida o espírito da época e, assim sendo, é difícil simpatizar com certos pontos de vista que, por estarem associados a personagens relevantes, vão sendo vincados ao longo do enredo. Mas estes pontos de vista servem um objectivo, pois permitem ver a progressiva mudança de mentalidades. O pensamento de Leandro de Albuquerque não é bem o mesmo de Mariano e, quanto a este, a evolução é claríssima. 
Quanto ao percurso dos protagonistas, sobressaem dois aspectos: primeiro, a forma como, através deles, é possível ver as duas formas de encarar o regime, com submissão ou rebeldia. E depois, a forma como a vida e os acontecimentos mudam a firmeza das suas convicções, levando-os a seguir caminhos diferentes e até mesmo opostos às ideias iniciais. Nem sempre é fácil compreender estas mudanças e, na fase final, fica a sensação de uma passagem algo apressada, principalmente no caso de Mariana. Ainda assim, não deixa de ficar uma ideia em mente: nem sempre as certezas absolutas são assim tão absolutas.
Cativante, bem escrita e sempre agradável de ler, trata-se, portanto, de uma história que é, ao mesmo tempo, a do crescimento dos seus protagonistas e o retrato da época em que estes se movimentam. Uma boa história, em suma, e uma boa leitura.

Autor: António Breda Carvalho
Origem: Recebido para crítica

2 comentários:

  1. Amigo, sou brasileiro admirador do povo português, conterrâneos de meus ancestrais, principalmente pela cultura esmerada e bem diferente da do povo brasileiro. É um prazer enorme ler um texto como o seu, que me levou ao livro em escopo, sem que eu o tivesse lido. Colocou-me dentro da História ou trouxe-me a história para dentro de mim. Sei que se trata de um português, professor e crítico a se distinguir de outros, porém o seu texto é de um primor, para mim, que deixou-me boquiaberto a deleitar-me com forma e conteúdo. Parabéns! Votarei aqui mais vezes. Abraço fraterno. Laerte (Silo).

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  2. Estou a lê-lo e estou a gostar! O seu texto deixou-me ainda mais curiosa! Estou na fase dos meninos pequenos.

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