Ana tem dez anos e uma vida normal para o seu tempo. Até ao dia em que a guerra chega a Zagreb. A partir daí, as limitações começam a tornar-se maiores, o medo uma constante, a dúvida sobre o que poderá acontecer cada vez mais terrível. E, com uma irmã doente, Ana sabe que a família tem de correr riscos - riscos que podem implicar consequências fatais. Sobreviverá, porém. E, dez anos depois, em Nova Iorque, um reencontro com o medo fá-la questionar todo o passado que tão cuidadosamente escondeu. Sabe, então, que tem de regressar a casa, se é que tem uma casa a que voltar. E, em Zagreb, esperam-na todas as memórias e as verdades mais difíceis de aceitar. É que sobreviver é uma coisa. Viver com isso é outra completamente diferente.
Narrado do ponto de vista da protagonista e oscilando entre diferentes pontos no tempo, este é um livro que cria impressões divergentes. Por um lado, a Ana de dez anos traça o retrato da guerra vista por olhos inocentes - até que a inocência deixa de existir. Por outro, a Ana adulta sabe o que viveu, mas questiona a fiabilidade da memória e as escolhas que deixou para trás. E, assim, o mundo ganha perspectivas diferentes - o mundo em que Ana se move, as mudanças globais que a guerra (e o pós-guerra) despertam, a superação (ou não) dos traumas vividos. A ideia que fica é, pois, a de um enredo multifacetado: história de crescimento, memória de guerra, análise pessoal sobre o trauma e a culpa de sobrevivente.
E todas estas facetas se conjugam num equilíbrio delicado, que a autora vai tecendo ao que parece ser o ritmo das memórias da protagonista. O passado e o presente de Ana, diferentes como parecem ser, estão, apesar de tudo, muito próximos, pois não há como fugir das sombras. E a forma como a autora constrói e reforça esta impressão constante - a de uma personagem em busca de respostas e, ao mesmo tempo, em fuga de si mesma - cria uma estranha proximidade, mesmo quando as escolhas e os pensamentos são difíceis de assimilar.
Há também vários aspectos impressionantes na forma como a autora relata a guerra. Grandes momentos, como a situação da barricada, a Casa Segura, a fuga, e também coisas que se transformam em rotina, como a partilha da bicicleta do gerador. Memórias que se insinuam aos poucos ou que surgem quando menos se espera, com toda a dura crueldade que reflectem, e que impressionam pela sua própria natureza e também pelo duro contraste com a estranha normalidade relativa de tudo o resto.
No fim, fica uma grande questão: e os outros? O que lhes aconteceu? É que toda a história de Ana converge para um ponto de viragem, de maior compreensão, e esse ponto acaba por abrir novas perguntas. Perguntas que nem sempre são respondidas e, ainda que isso faça todo o sentido - pois toda a guerra deixa os seus desaparecidos - fica sempre aquela vaga vontade de saber mais. De ver o futuro das personagens que ficaram para trás, e também o da própria Ana para lá daquele ponto de entendimento.
Não é uma leitura fácil, mas impressiona. E, no seu estranho equilíbrio entre o cruel e o rotineiro, com linhas nem sempre claras, mas marcas que se propagam muito para lá do momento, é um livro cuja relevância parece ser inesgotável. Marcante, complexo, impressionante, talvez não deixe todas as respostas. Mas, neste caso, são mesmo as perguntas o que mais importa.
Título: Rapariga em Guerra
Autora: Sara Nović
Origem: Recebido para crítica
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