Aurora é o tipo de pessoa com quem todos se sentem à vontade para falar. Foi, aliás, assim que conheceu o marido e, por acréscimo, toda a sua estranha e disfuncional família. Mas a súbita ideia de Gabriel de organizar uma festa para celebrar os oitenta anos da mãe vem desequilibrar repentinamente o delicado equilíbrio em que conviveram nos últimos anos. Gabriel, a mãe e as irmãs guardam rancores profundos e versões de uma verdade que, embora discordantes, se tornaram demasiado profundas para ser esclarecidas. E Aurora lá vai ouvindo, à medida que a paz podre se vai dissipando... e o seu coração está cada vez mais cansado...
Provavelmente o aspecto mais impressionante neste livro vem das profundezas de ambiguidade moral que pautam todas as relações entre as personagens. Cada personalidade é vista e traçada por diferentes olhares, que lhes atribuem diferentes características. Cada incidente tem múltiplas versões, ao ponto de parecer impossível descobrir ao certo quem diz a verdade em cada instante. E, por entre tudo isto, há uma única certeza: aquela não é uma família feliz, e é muito particular na sua disfuncionalidade. Entre ressentimentos profundos, segredos guardados durante uma vida inteira e a certeza cada vez mais firme de que ninguém é apenas aquilo que demonstra, tudo neste livro é uma grande surpresa embrulhada em meias verdades.
Também a própria escrita tem o seu quê de fascinante, com o encadeamento das vozes das várias personagens a conferir à narrativa um registo de longa discussão por interposta pessoa. Aurora é sobretudo a ouvinte, mas é também o elo de ligação entre todas estas bizarras personalidades e é através dela que os ressentimentos vêm à tona. E, claro, numa história onde há uma dúvida constante entre o que é verdade e o que é mentira - salvo alguns objectos que se tornam deveras esclarecedores - a forma como Aurora acompanha as diferentes versões faz com que cada uma delas adquira um impacto diferente. Com ênfase especial, claro, nas revelações finais.
Importa ainda regressar a Aurora e ao seu papel aparentemente neutro. É, sobretudo, o receptáculo das queixas, lamentos e histórias da família do marido. Mas é também, provavelmente, a figura que mais intensamente sente. Sobressai, por isso, em dois aspectos: primeiro, no contraste entre a sua calma serenidade e as intervenções exaltadas das outras personagens; depois, na forma como tudo se encaminha para as suas próprias descobertas e consequente resolução final. Aurora é a surpresa maior de uma história cheia de surpresas. E, discreta em tudo, torna-se a mais memorável de todas as personagens.
Começa como um labirinto de versões contraditórias, para depois se gravar na memória com a poderosíssima revelação das verdades possíveis. E é, no fundo, a história de uma ouvinte, da guardiã de todos os segredos, contada com toda a profundidade e intensidade de quem sente mais do que dá a entender. Pausado, complexo, mas brilhante na sua construção, é um livro que exige o seu tempo... mas vale - e muito - cada segundo.
Título: Chuva Miúda
Autor: Luis Landero
Origem: Recebido para crítica
Sem comentários:
Enviar um comentário