Traumas e descobertas parecem, à primeira vista, ter ficado para trás, como um pesadelo que lentamente se esbate, enquanto, num outro local de identidade semelhante, há quem procure explicações e, quem sabe, até uma reconstrução. Tudo converge para o mistério do Celeiro Negro, o mesmo que, a cada aparição, deixa morte e caos à sua passagem e parece apelar de formas similares à consciência de um padre e de um jovem mentalmente instável. Tudo é loucura - mas nada é fruto da imaginação. E, se o Celeiro existe, o que é e quem o habita? E qual será o preço de o reencontrar?
Sendo certo que uma das grandes forças deste livro é a intensidade e a vastidão do mistério que contém, não é, ainda assim, este mistério o que mais se destaca ao embarcar nesta leitura. É uma das suas facetas, claro, e parte do que lhe confere intensidade, mas, mais do que a história e as possíveis perguntas e respostas, há algo de tão singularmente especial na arte desta série - e deste volume em particular - que é impossível não ficar de olhos presos às imagens, ao encadeamento que não podia estar mais longe dos quadros lineares e sucessivos, ao contraste de luz e escuridão nas cores, ao vermelho que parece reflectir na perfeição a perigosidade do Celeiro e, sobretudo, aos enquadramentos singulares em que os momentos fulcrais são apresentados. Espirais de ADN, imagens que se estilhaçam em minúsculas partículas, círculos convergentes para uma única resposta - tudo isto vem imediatamente à memória ao primeiro olhar. E, tendo em conta a peculiaridade da história propriamente dita, não há dúvidas de que esta construção singular reforça infinitamente o seu impacto.
Olhemos então para a história e para as personagens que a povoam. Tudo parece assentar numa sucessão de reflexos, em que as histórias dos dois protagonistas se vão aproximando cada vez mais a cada revelação. O que é o Celeiro e que tipo de influência exerce continua a ser um grande enigma, mas desenvolvimentos e revelações não faltam e tudo culmina, aliás, num final particularmente poderoso. Que deixa tudo em aberto, é certo, mas que abre portas a uma fase seguinte que não pode ser senão absolutamente nova.
E há o grande mistério, claro, e a forma como se equilibra com os fantasmas interiores das personagens. A influência do Celeiro é incognoscível, ainda que seja óbvio que não é propriamente benéfica. Mas, para além deste mistério central, e da forma como a sua teia se estende para as personagens principais, há ainda os percursos pessoais de cada um: a difícil relação de Norton com a sua pretensa loucura; o passado do padre, que o leva a mudar constantemente de lugar; e as improváveis alianças que se vão formando, movidas pela própria percepção do inexplicável e do que parece ser, afinal, uma loucura comum. Porque é verdade que tudo fica em aberto, mas há já uma certeza: nada disto corresponde propriamente à definição de normal.
O que fica é, pois, a imagem de um livro feito todo ele de sombras memoráveis. Visualmente poderosíssimo, intrigante no mistério e marcante no delicado equilíbrio de forças entre as vulnerabilidades pessoais e a imperiosa necessidade de respostas, é tão sombrio como singular e fascinante. E é precisamente isso que o torna tão bom.
Título: Gideon Falls, Vol. 2: Pecados Originais
Autores: Jeff Lemire, Andrea Sorrentino e Dave Stewart
Origem: Recebido para crítica
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