domingo, 18 de abril de 2021

Tristia [um díptico e meio] (António Cabrita)

Nasce numa conjugação de tempos, de extremos históricos - presente próximo e passado longínquo - unidos por fios cuja descrição se afigura, por vezes, impossível. Heitor e Andrómaca deambulam por paisagens actuais, sem estarem verdadeiramente presentes, mas parecendo afirmar-se em cada pensamentos. E também as imagens se confundem entre o palpável e o onírico, entre o estranhamente real e o absurdamente impossível. Tal como as palavras, ora insondáveis, ora brutais, ao ritmo de uma evocação longa e livre, mas onde parece existir uma cadência subjacente.
Não é propriamente fácil descrever este livro. Há características bastante vincadas - os poemas maioritariamente longos, a liberdade de uma poesia sem rima e em que o ritmo parece ser o da consciência, o contraste entre cenários directos e percepções maioritariamente imaginárias - mas a verdade é que o todo parece formar algo de diferente que se sobrepõe a tudo isto. Ao longo da leitura, as imagens vão-se entranhando no pensamento, as referências vão-se dando a conhecer. E, ainda assim, a impressão que fica é mais de sensações do que de descrições palpáveis, o que faz com que a imagem resultante seja bastante difícil de descrever.
Há, ainda assim, um ponto bastante evidente nestas mais de trezentas páginas: a união. E é uma união surpreendente, tendo em conta não só a extensão do livro, mas também o facto de ser dividido em três partes - ou talvez, seguindo a lógica do título, duas e meia. A divisão é clara: na primeira domina Heitor, na última a Arca, na intermédia o insondável Quíron. E estas figuras dominantes, elo de ligação entre cada uma das secções, podem ter as suas diferenças e mover-se em meandros distintos, mas há um elo também indescritível - a voz do próprio autor, talvez? - que faz com que este díptico e meio se constitua em unidade. Cada peça é um todo completo - mas, juntas, formam um todo maior a que todas as peças pertencem.
É um livro longo, e às vezes chega a ser desconcertante na estranheza das imagens que evoca. O mundo em que as figuras se movem é tudo menos linear, tal como as próprias figuras não o são. E, assim, é impossível não ficar com uma certa sensação de estranheza, já que a visão global é difícil de assimilar e as suas pequenas partes estão cheias de contrastes. Não deixa, ainda assim, de ser impressionante, até porque não faltam versos notáveis ao longo deste extenso volume.
Feito de impressões e de imagens difíceis de descrever, trata-se, pois, de um volume extenso, mas sempre surpreendente na sua vastidão por vezes insondável. E de um conjunto equilibrado, cuja totalidade é também uma odisseia, mas em que cada parte vale também por si mesma. Vale a pena embarcar nesta estranha viagem.

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