terça-feira, 13 de julho de 2021

A Anomalia (Hervé Le Tellier)

É um voo conturbado, mas aparentemente normal, tirando o grande susto da enorme turbulência. Nele, viajam um assassino profissional, um escritor e tradutor talentoso, mas pouco famoso, uma atriz, uma advogada, um arquiteto e a sua cada vez mais relutante namorada, um cantor à beira da fama e muitos outros passageiros. Passam pela turbulência e acabam por aterrar. E a vida continua, feliz para uns, infeliz para outros, absurdamente terminal para mais uns quantos. E, passados três meses, algo de estranho se revela. E a vida nunca mais será a mesma, para eles e para o resto do mundo.
Provavelmente o aspeto mais cativante neste livro - e diga-se de passagem que não lhe faltam aspetos cativantes - é a sua capacidade de conjugar quotidiano e impossível, tragédias pessoas e fenómenos à escala mundial, vidas individuais e o peso da humanidade como um todo. Cada personagem tem a sua própria vida, os seus segredos e motivações. Cada personagem tem uma identidade própria. E, ainda assim, todas convergem para um fenómeno inexplicável que mudará tudo aquilo que conhecem, conjugando singular e global de uma forma que é também ela singular.
Outro ponto marcante resulta, naturalmente, da própria escrita e da forma como o autor parece moldar o registo ao percurso individual de cada personagem. Da profunda frieza do assassino profissional à profunda emotividade da iminência da perda, passando pela perda de um amor, do sentido para a vida, da inocência e das aspirações, cada personagem tem também o seu próprio espetro emocional, e o autor dá-lhes voz de forma particularmente intensa. Além disso, à medida que o enredo se vai desenvolvendo, explorando novas perspetivas com o desvendar do fenómeno e as inevitáveis consequências, a história vai-se adensando, as situações tornam-se mais complexas, mas tudo continua a fluir com uma naturalidade notável.
Ainda um último ponto a salientar é a imprevisibilidade, com a necessária ambiguidade que a acompanha. Tudo nesta história é imprevisível, a começar, desde logo, pela anomalia central, e a forma como o autor conduz o enredo faz com que tudo surpreenda, nas grandes coisas e nos pequenos pormenores. Mas mais do que isso. A imprevisibilidade absoluta significa que não pode haver explicações para tudo e o equilíbrio brilhante que o autor consegue atingir, deixando por explicar o que não pode ser explicado, mas conduzindo cada peça para o final mais adequado (mas não necessariamente perfeito) é algo de particularmente genial.
Notável será, pois, uma boa palavra para descrever este livro: na escrita, no enredo, nas personagens, nas emoções. No equilíbrio que faz com que tudo faça sentido, mesmo o que jamais o poderia fazer. E na intensidade que faz com que se entranhe na memória, do início ao fim... e mais além.

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