Nem só de longas histórias vive a literatura. Algumas são viagens breves, no mundo, no tempo, no nosso próprio íntimo. E às vezes bastam poucas páginas para nos levar à aventura, a caminhos nunca antes percorridos. É isso que acontece neste livro. Mas já lá vamos.
Antes dos contos propriamente ditos, surge, À Guisa de Prólogo, uma breve introdução do autor sobre os seus passos e inspirações de escrita, que conta também a muito interessante origem do título. E porquê referir esta introdução? Porque, como tantas vezes acontece, desperta uma sensação de proximidade que abre logo portas à curiosidade sobre o que se seguirá.
Passando aos contos, o primeiro chama-se Ars Amatoria, e fala de uma invasão de ratos num mosteiro, da única solução possível e de uma forma de amor inocente, mas inevitavelmente questionada. Cativante pela voz singular e pela forma como dá vida ao ambiente, este conto tem, ainda assim, a sua grande força no amplo espetro emocional que percorre. Vai do desconcerto ao humor, e depois da ternura à desolação, sem nunca perder a fluidez e a naturalidade. E nunca deixa de surpreender, em todas estas etapas.
Segue-se Doces e Paixões de Calistra, história de uma rivalidade entre conventos e da origem secreta de um doce tentador. Também aqui as oscilações emocionais se destacam, entre a leveza de um concurso culinário conventual e a intensidade de uma paixão impossível. O registo global acaba por ser mais ligeiro, mas igualmente memorável, ainda assim.
A Pedra do Diabo fala da aparição de um forasteiro, da construção de uma vida, de uma vingança jurada e de um pacto com o maligno. E conjuga todos estes elementos num conto surpreendentemente leve, com um toque a evocar quase as lendas tradicionais e cheio de momentos inusitados.
Vem depois A Perdição de Sebastião das Canas, história de um homem mulherengo, mas pacato, e com fama de guardar um tesouro. Mais pausado, mais descritivo, mas igualmente cativante, trata-se de uma história que, mais que pelo protagonista, surpreende pela precisão com que invoca as imaginações e murmúrios da natureza humana, tão presentes sobretudo em meios pequenos.
As Queijadas do Rei do Botão fala de um rapaz particularmente hábil no jogo e de sentidos culinários especialmente apurados. Mais breve do que os anteriores, trata-se um conto mais simples e direto, mas igualmente cativante e evocativo.
O Traga-Moscas conta a história de um forreta e da inesperada revelação trazida pela luz. Um pouco caricato, mas também muito cativante, destaca-se sobretudo pela singularidade das circunstâncias e pela reflexão que estas podem evocar.
Segue-se O Tambor de Albano Marmelo, história das aspirações de um homem e de uma vaca com influências singulares. Surpreendente em primeiro lugar pelo seu lado um pouco caricato, que evolui depois para um registo mais intenso e até cruel, sobressai deste conto o crescendo de intensidade e a forma como o inesperado se torna quase natural.
A Herança de Ernesto Trabuco fala de um homem observador e da sua carreira de fotógrafo. Relativamente pausado, apesar de não ser dos contos mais longos, destaca-se, ainda assim, pela mistura de nostalgia e aspiração que parece definir o percurso do protagonista.
Vem depois O Príncipe das Camarinhas, história de um rapaz aventureiro e de uma guardiã de tradições. Nostálgico e cativante, transporta para as memórias do protagonista, realçando a importância não só das tradições, mas também dos pequenos momentos que perduram.
As Confissões de Mestre Roupinho fala de um alfaiate de hábitos fixos e devoção... singular. Bastante leve, apesar da forte componente descritiva, é não só uma história cativante e peculiar, mas também uma reflexão sobre os segredos e como vêm à tona quando menos se espera.
Segue-se A Suprema Conquista, história de um homem que faz da felicidade negócio e que se depara com o maior dos desafios. Algo caricato, mas muito envolvente, também por ser narrado na primeira pessoa, é todo ele leveza e inesperado, e é também isso que o torna singular.
O Bacalhau de Chico Rosalino fala da elaborada busca de um bacalhau para a consoada em tempos de vacas magras. Peculiar, mas deliciosamente viciante, cativa sobretudo pelo tom leve e pela sucessão de surpresas a surgir no caminho dos planos do protagonista.
E o último conto, O Calvário de Chico Rosalino, recupera o protagonista do conto anterior, na história de uma atribulada peregrinação a Fátima motivada por estranhos pretextos. Leve e singular, tal como o conto anterior, e também igualmente inesperado, realça também a aparentemente inesgotável capacidade de surpreender das pessoas.
Finalmente, importa referir ainda Um Fardo de Curiosidades, breve traçado da vida destes contos antes desta sua conjugação. Não é uma informação crucial, claro, mas não deixa de ser interessante conhecer o contexto em que surgiram inicialmente.
Tudo somado, o que fica é a imagem de um conjunto de histórias cativantes e singulares, com uma voz muito própria, uma agradável leveza e uma profusão de surpresas. E é esta, naturalmente, a matéria de que são feitas as boas leituras.
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