domingo, 15 de julho de 2012

Os Dias de Davanzati (Héctor Abad Faciolince)

Ao descobrir que o seu vizinho foi, em tempos, um escritor que alcançou alguns sucessos, um homem sente-se compelido a descobrir mais sobre o esquivo Bernardo Davanzati. Os seus passos levam-no à lixeira da cave, onde, entre os restos das rotinas dos habitantes do prédio, descobre conjuntos de papéis que correspondem aos escritos de Davanzati. Reflexões, fragmentos, breves histórias e romances inacabados chamam a atenção do homem, que começa a reunir, sem saber ao certo com que objectivo, os escritos abandonados do escritor. E através desses escritos começa a criar uma imagem da vida de Davanzati, ao mesmo tempo que a sua própria vida passa, aos poucos, embrenhada no acto de descoberta que é seguir os passos a escrita do seu vizinho escritor que odeia a escrita que o obceca.
Há algo de fascinante na forma como as histórias de duas vidas aparentemente tão diferentes, e, contudo, com tantos pontos em comum, vão sendo desvendadas através da relação dos seus protagonistas com a leitura e a escrita. Seria de esperar, afinal, considerando o ponto de partida do livro, que fosse Davanzati o protagonista deste livro, mas a verdade é que o percurso do narrador acaba por se relacionar de forma tão íntima com o percurso e a escrita do próprio Davanzati, que as histórias de ambos acabam por se complementar, tanto em pontos de vista como na forma como o narrador que começou por se interessar exclusivamente pelas palavras do escritor esquecido acaba por procurar respostas para os mistérios da vida desse mesmo escritor.
Considerado por muitos como um escritor medíocre e, infelizmente para si, um dos poucos críticos benévolos, Davanzati é apresentado como uma figura frustrada com a sua própria escrita, desiludida com toda a sua vida e os seus múltiplos fracassos. Este desapontamento, quase desamparo, reflecte-se nos fragmentos apresentados como sendo da sua autoria, ora desabafos pessoais sobre a escrita, ora sumárias rejeições de qualquer relação que prevaleça ainda com a literatura, ora ainda tentativas de se diferenciar, num ou noutro género, em busca de um esforço literário válido. Esforços  estes que, presume-se que propositadamente, são destinados ao silêncio de não ter qualquer leitor, já que são abandonados no lixo. Esta é uma caracterização construída com mestria, gradualmente insinuada e, depois, afirmada nesses mesmos escritos que tanto revelam do seu autor, e uma construção que fascina ainda mais pelo facto de se opor às opiniões do próprio narrador que os reúne. É que até o narrador vê as tentativas de Davanzati como tentativas medíocres de um homem com algum talento, mas com evidentes falhas na concretização dos seus projectos. Para o leitor, contudo, esses esforços são fascinantes, tanto nos esboços mais divagativos, como nas tentativas de construção de uma história mais concreta, mas sempre inacabada.
E é nessa interacção desconhecida entre autor e leitor que mais sobressai o complemento entre a história dos dois protagonistas e a fluidez com que o autor gere as diferentes personalidades e forma de escrita de ambos. Diferentes como são, o narrador mais preso ao concreto enquanto que Davanzati divaga também pelos seus demónios interiores e por um passado cuja verdade é ambígua, o escritor e o leitor completam-se, sem saber. Davanzati tem um leitor que, mesmo julgando-o, aprecia o seu trabalho - mas nunca o saberá. Por sua vez, o narrador encontra um objectivo para si na busca da verdade sobre a história do seu esquivo vizinho.
Importa ainda referir que, apesar das suas muitas peculiaridades e estranhezas, Davanzati acaba por se revelar, de uma forma muito própria, como uma figura digna de empatia e de uma certa compaixão. É fácil, nalguns momentos, compreender a sua relação com a escrita, com a criação enquanto necessidade, mesmo enquanto os fracassos tornam o processo progressivamente mais doloroso. Evoca-se, assim, algo de proximidade, um elo emocional para com a figura de mil complexidades que não se expressa senão para o caixote do lixo. (Ou, pelo menos, assim o julga).
Com uma escrita belíssima e um duo de protagonistas verdadeiramente fascinante, este é um livro que, apesar da sua brevidade, se revela, ao mesmo tempo, complexo e envolvente na sua visão da escrita enquanto acto necessário e da solidão das palavras silenciadas. Uma obra impressionante.

Sem comentários:

Enviar um comentário