Quando se vive num meio pequeno, preservar um segredo implica um equilíbrio delicado, em que sabem aqueles que precisam de saber e os que podem comprometer o secretismo são cuidadosamente mantidos na ignorância. Mas Antuérpia ainda não conhece essa verdade. Só sabe que Castiça, a tola da aldeia, foi encontrada morta e que o pai, Justo, foi levado como principal suspeito. E o pior é que não parece haver ninguém disposto a falar em sua defesa. Na aldeia, primeiro veio o choque, depois a indiferença. E as respostas, sabe-se lá quem as tem. Caberá a Antuérpia descobrir a verdade e dar voz ao segredo que todos parecem calar. Mas será realmente essa a escolha certa?
Há tanto de fascinante e de relevante neste livro e, contudo, uma tão mágica simplicidade na sua construção, que se torna difícil saber por onde começar para falar sobre este Síndrome de Antuérpia. Escrita, personagens, enredo, contexto... tudo se conjuga num equilíbrio tão perfeito que a linha que separa as partes do todo é muito ténue, ao ponto de quase se poder definir este livro numa só palavra: brilhante. Mas tentemos ir por partes.
Um dos primeiros aspectos a cativar é a escrita, fluída e envolvente, descritiva quanto baste, mas com um ritmo tão natural que tudo parece encaixar na medida certa, sejam os pensamentos das personagens, a memória dos seus respectivos passados ou o desvendar de um mistério cuja teia é bastante mais complexa do que à primeira vista poderia parecer.
O que me leva ao enredo. O momento crucial que define tudo o resto parece ser a morte de Castiça e é para aí que todos os ramos convergem. Mas a forma como o autor constrói a história, revisitando o passado das várias personagens e até mesmo regressando a um mesmo momento pelos olhos de diferentes personagens, revela toda uma sequência de acontecimentos igualmente relevantes. O que parecia ser um caso simples transformar-se numa teia complexa, em que amores e desamores, folias e depressões e até mesmo o conflito entre classes sociais e a preservação do futuro têm papéis preponderantes a desempenhar.
O que me leva ao contexto que, mesmo sem se afirmar num tempo específico, parece retratar na perfeição as características da vida num meio pequeno. A forma como todos sabem de muito, ou pretendem saber, como olham para o lado quando lhes é mais conveniente e como aplicam segundo o preceito que entendem mais adequado diferentes pesos e diferentes medidas... Tudo isto é bem possível na realidade e a forma como tudo converge para um percurso quase que bíblico de paixão e morte (não necessariamente por esta ordem, talvez...) é algo de incrivelmente impressionante.
E aqui entra o destaque das personagens. Antuérpia, claro, tão diferente de todos os outros e, por isso, no cerne de todas as esperanças e de todos os medos. Mas também Justo, com o muito particular papel que lhe cabe nos acontecimentos, a própria Castiça, com o seu passado tão conturbado, e Cassilda e Silvana, tão diferentes, mas com um inegável ponto em comum. Todos com as suas histórias e os seus traços, todos interessantes, todos surpreendentes... e todos, ao mesmo tempo, uma roda na engrenagem da comunidade e um possível foco de divergência.
Tudo cativa. Tudo surpreende. E há, nesta caminhada em direcção à verdade, nesta história de um crime que é, afinal, muito mais do que isto, tanto de belo e de profundo e de real, que tudo aqui se torna memorável e intenso e impressionante. Brilhante, em suma.
Título: Síndrome de Antuérpia
Autor: João Felgar
Origem: Recebido para crítica
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