segunda-feira, 29 de março de 2021

O Amigo (Sigrid Nunez)

Confrontada com a perda do seu mentor e amigo da mais inesperada das formas - por decisão pessoal -, uma mulher solitária vê-se face à força do seu próprio luto e em busca de uma forma lidar com tudo: com as memórias, com a saudade, com tudo o que ficou por explicar. Mas vê-se também com algo de novo pela frente. É que o seu amigo deixou para trás o seu próprio amigo - um grand danois chamado Apollo - e agora alguém tem de tomar conta dele. Na presença deste companheiro silencioso, a mulher encontrará um receptáculo para as memórias, uma companhia para as suas meditações e um laço que persiste depois da morte. Mas que não é eterno... até porque nunca os são.
Desengane-se quem espera deste livro a habitual história ternurenta de uma mulher com o seu cão e de como o companheirismo fez da vida e do mundo (ou do seu mundo pessoal) um lugar melhor. Não é que não tenha um pouco desses aspectos, e é bem verdade que Apollo é uma das grandes forças motrizes deste livro, mas a história não é só a de uma amizade entre um ser humano e o seu canídeo. É uma história de amizade humana perdida, de perdas inesperadas, de como lidar com o luto, resistindo, persistindo ou simplesmente suportando e de como encontrar formas de esbater um pouco a tristeza. E, claro, é também uma história sobre a leitura e a escrita, ou não fosse a protagonista uma escrita - tal como o seu amigo perdido.
Tendo tudo isto em vista, há algo que é inevitável: é uma história de fortíssimo impacto emocional. É fácil sentir as saudades, a tristeza, a incompreensão e a perda que, ao longo deste percurso, rasgam a vida da protagonista. E é ainda mais impressionante por ser uma história tão humana: nenhuma das personagens (humanas, porque Apollo é um caso à parte) é propriamente imaculada em termos de comportamentos, decisões ou escolhas. Todas são, a espaços, moralmente ambíguas, seja por comportamentos mais dúbios ou por mero pretensiosismo. E, ainda assim, é fácil compreender os laços, sentir a proximidade entre duas pessoas de quem podemos não gostar muito, mas que gostam claramente uma da outra. E, se juntarmos a isto a constante e pesada presença da morte, é simplesmente difícil não sentir.
Mas olhemos ainda para um outro aspecto: a relação das personagens e do próprio percurso com o mundo dos livros e da escrita. Há momentos enternecedores, como quando a protagonista lê para Apollo, reflexões surpreendentemente certeiras e até uma crítica estranhamente precisa a certos preconceitos vigentes no mundo literário (todos conhecemos a visão de que o verdadeiro escritor é o escritor atormentado, a de que a literatura se está a deteriorar e outras perspectivas similares) na forma do protagonista ausente. E há também muitas, muitas frases memoráveis, visões que nos ressoam no pensamento, ideias que, em poucas palavras, ganham vida e que parecem perfeitas. Também aqui há ambiguidade - mas o tipo de ambiguidade que faz sentido. Afinal, se na vida real nada é fácil, porque haveria de o ser na vida literária?
Somadas todas as facetas - vida e morte, realidade e literatura, humanos e canídeos - deste livro, o que fica é uma visão de contrastes: pausado mas fascinante, introspectivo mas cheio de intensidade, transbordante de vida, apesar de feito de morte e de perda. E tudo isto lhe dá vida e o grava aos poucos na memória. De onde parece não querer sair tão cedo...

Sem comentários:

Enviar um comentário