sábado, 30 de maio de 2020

Manual de Sobrevivência de um Escritor (João Tordo)

O sonho de ser escritor não é algo de assim tão invulgar, embora possa ter origens, perspectivas e aspirações diferentes para cada um dos que partilham desse sonho. Mas uma coisa é certa: não será um caminho fácil. Este livro percorre as diferentes facetas do processo criativo, do que se passa depois da escrita e da publicação, bem como dos outros elementos que acompanham a vida de um escritor - antes e depois de ser publicado, no sucesso e no fracasso, nos dias bons... e nos outros. E já sabíamos que o caminho não era fácil, mas há aspectos de que talvez jamais nos tivéssemos lembrado.
A primeira coisa que importa dizer sobre este livro é que, se estão à espera de um simples manual com passos, dicas e outras coisas do género, esqueçam. Não é esse tipo de livro. E, ainda assim, é possível retirar dele várias ideias. Sendo explicitamente orientado para o escritor "literário" - nota-se, aliás, por vezes, como que um ligeiro desdém por outros tipos de livros - aproxima-se também, às vezes, de uma visão algo poética, ligeiramente maldita, até, do escritor. "Condenado à literatura" é, aliás, uma das frases mais notáveis do livro. Mas não deixa de fora os aspectos práticos: edição, publicação, sobrevivência financeira, técnica, enredo, títulos... Tudo isto está presente, de alguma forma, numa visão que é, acima de tudo, subjectiva - como poderia não ser? - mas que tem também muito de pragmático.
É talvez por isso mesmo que, apesar de ser pensado, acima de tudo, para os que querem ser escritores, consegue, ainda assim, ser também uma leitura marcante para os que deixaram essas aspirações e até para os que nunca as tiveram - preferindo a leitura. É que, ao longo deste manual/percurso de sobrevivência, vai surgindo também, aos poucos, a história do seu autor. E há como que uma proximidade que se cria, seja ela de aspirações partilhadas, seja do mero vislumbre do outro lado do que conhecemos como um volume acabado. E, sim, haverá também divergências - de método, de opinião, que importa? A tão presente "Mãe-Literatura" tem também desígnios insondáveis. E há algo de estranhamente sedutor no fascínio que emerge desta enumeração de possíveis dificuldades.
Há ainda um último ponto que fica na memória. A ideia de ler como um escritor é uma das mais presentes ao longo de todo este texto, e escusado será dizer que são muitos os nomes referidos. O resultado, claro, é um reencontro com vários nomes conhecidos e uma pequena lista de outros a descobrir. Mas também a preferência literária é subjectiva, não é verdade? E há um segundo efeito: a de ficarmos com uma ideia, vaga quanto baste, mas muito interessante, das opiniões do autor sobre outros autores. Com as quais podemos concordar ou não.
Chama-se Manual de Sobrevivência de um Escritor - e é exactamente disso que se trata, da experiência pessoal do autor. Claro que é possível extrair dela muitas ideias e conselhos úteis, principalmente para quem ainda quiser ser escritor. Mas o que fica é, acima de tudo, outra coisa: uma imagem precisa e profundamente pessoal da beleza e da complexidade das palavras.

Autor: João Tordo
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Estamos Aqui (Branca Clara das Neves)

Acordou cedo para chegar a tempo ao trabalho, mas uma voz intangível guia-a antes a um museu. Aí, a mesma voz percorre com ela múltiplas esculturas, guiando-a através de tradições, posições e até mesmo crenças. Fala-lhe de um rio ao longe, mas que está muito presente. E, dessa voz, nascem novas presenças - intensas, desconcertantes, difíceis de explicar, mas quase palpáveis.
Sendo um livro que contém a mesma história em três línguas diferentes, não será propriamente uma surpresa que a história seja bastante mais breve do que aparente. Há, ainda assim, um aspecto inicial que sobressai: a história pode ser a mesma, e as ilustrações têm também as suas semelhanças, mas há pequenos pontos de divergência. Não deixa, por isso, de ser interessante percorrer a obra completa, incluindo as partes que não compreendemos. A história, temo-la toda no início. E no resto há mais pormenores a descobrir.
Mais surpreendente é a cadência da história propriamente dita. Há algo de fascinante no percurso, com as imagens do passado e da crença a emergirem das figuras da exposição, mas é, acima de tudo o ritmo que fica na memória depois de terminada à leitura. Tudo está envolto numa ligeira estranheza, mas a cadência das palavras parece representar também na perfeição a essência das estátuas, principalmente no caso do músico.
Não é, de todo, uma história linear e a forma como presente e memória se entrelaçam - a presença da protagonista no museu e as imagens e cadências que a envolvem - pode ser, inicialmente, um pouco desconcertante. Chegados ao fim da história, esta perplexidade ganha, porém, um novo sentido, pois, numa história em que as perguntas são tão importantes, é apenas natural que haja coisas difíceis de compreender.
São, pois, três pontos que convergem para fazer deste livro uma experiência tão interessante: o contraste entre o palpável e o intangível, o ritmo peculiar das palavras, tão ajustado ao fluxo da história, e a percepção de um percurso com tanto de inexplicável como de fascinante. A soma é um livro difícil de descrever, mas muito interessante.

Título: Estamos Aqui
Autora: Branca Clara das Neves
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 26 de maio de 2020

O Claude Vai Acampar (Alex T. Smith)

Enquanto os donos estão fora, o Claude vive grandes aventuras com o seu amigo, o senhor Borboto. Desta vez, o livro que comprou com a sua mesada leva o Claude a querer descobrir a selva, acampando... no jardim das traseiras. E é verdade que o jardim está um pouco maltratado, o que significa que o senhor Borboto vai precisar da ajuda do Claude para combater os seus medos. Mas será que um jardim pode ser assim tão selvagem? Estará assim tão mau?
Há algo de estranhamente refrescante em ler uma destas pequenas histórias, mesmo se a idade a que elas se destinam já ficou para trás há muito, muito tempo. O Claude é um cão aventureiro, o que, num contexto diferente, nos traz talvez à memória as aventuras de um tal Dartacão. E sim, tudo é diferente, mas, aos olhos de quem cresceu com esse intrépido cão, surge a mesma impressão de inocência e nostalgia. E é como regressar a esses tempos mais simples em que bastava uma história de poucas páginas - ou um desenho animado - para nos fazer sonhar.
Mas falemos do Claude. As aventuras do Claude são muito simples e também muito improváveis, o que, tendo em conta o público preferencial destas histórias, é bastante adequado. Para o Claude, um jardim torna-se uma selva, uns quantos coelhinhos tornam-se animais selvagem e o seu melhor amigo é uma meia. (Sim, isso.) É tudo altamente improvável, mas é também altamente criativo. E há algo de estranhamente encantador em imaginar esta história simples como se pudesse ser realidade. Principalmente, se a lermos em voz alta para alguém, acompanhada pelas imagens cheias de cor e de ternura.
E há ainda um outro ponto interessante, se olharmos para a história no sentido dos sentimentos e valores. Há uma amizade sólida (sim, o senhor Borboto é uma meia... mas é uma meia especial), um espírito aventureiro, uma boa dose de coragem e até um certo contraste entre preconceito e realidade (na forma de uns coelhinhos aterradoramente selvagens... ou não). O que resulta, claro, num belo ponto de partida para começar a falar de coisas sérias sem perder de vista a inocência e a simplicidade desta história - e dos pequenos leitores a que se destina.
Inocência, ternura e diversão: são estes os ingredientes essenciais desta pequena e envolvente aventura, perfeita para cativar pequenos leitores... e para despertar a nostalgia em leitores não tão pequenos.

Autor: Alex T. Smith
Origem: Recebido para crítica

domingo, 24 de maio de 2020

Descender, Vol. 5: Ascensão das Máquinas (Jeff Lemire e Dustin Nguyen)

O fim parece estar cada vez mais próximo, com o CGU a deixar-se atrair para uma armadilha, vendo-se consequentemente diminuído nas suas forças, e os robôs a prepararem a sua derradeira rebelião. No meio de tudo isto, parece não haver espaço para sentimentos pessoais, mas TIM-21 continua a ser o cerne de tudo - ainda que nem ele saiba muito bem porquê. É a ele que todos procuram, e é também ele que tem de encontrar o seu próprio caminho. Mas, entre perdas e reencontros, a única coisa que parece estar mais próxima é o caos. As máquinas preparam a sua retaliação - e as consequências podem muito bem ser fatais.
Há algo de absurdamente comovente na forma como esta série consegue entrelaçar no que é essencialmente um conflito entre máquinas e humanos uma tão grande proximidade emocional, ao ponto de despertar questões sobre o que define realmente a humanidade. É que, na sua estranhamente admirável inocência, TIM-21 consegue ser, muitas vezes, a mais humana de todas as personagens. Há algo de profundamente terno e comovente no seu percurso e nas suas expressões. E, assim sendo, é impossível não querer continuar a acompanhar esta história, descobrir o porquê da sua importância e, sobretudo, saber se ele vai ficar bem. E, não, a história ainda não acaba neste volume, por isso essa é uma vontade que se prolongará.
Outro aspecto notável é a capacidade de prolongar a tensão e o envolvimento emocional. Nesta fase, a história oscila entre diferentes cenários e o percurso de diferentes personagens, embora seja sempre possível sentir a presença dos laços que unem os vários intervenientes. E, embora comecem a ganhar forma movimentações mais globais e a perseguição e intriga comecem a abrir caminho à guerra aberta, há sempre passos pessoais. Quon e Telsa, a solidão do Broca e sobretudo a relação entre Bandit e TIM-21 são rasgos de profunda emoção numa história que é muito mais do que a de uma luta pela supremacia.
É como se tudo se expandisse - incluindo as batalhas - para o coração das próprias personagens, o que é algo de peculiar tendo em conta que há uns quantos robôs envolvidos. Mas é ainda interessante realçar a forma como este equilíbrio emocional parece ser transposto para a própria arte: os rasgos de cor, a expressividade das feições e o contraste entre os diferentes cenários parecem formar um conjunto perfeitamente enquadrado, que quase parece transportar-nos para a visão dos próprios intervenientes.
Cheio de intensidade e principalmente de emoção, trata-se, pois, de mais um volume memorável, feito tanto da guerra que se aproxima como da promessa de afectos que nunca chegaram a desaparecer. É esta mistura de acção e emotividade, que é também visualmente notável, que torna esta série tão fascinante de seguir. E tão grande a vontade de saber o que se segue.

Título: Descender, Vol. 5: Ascensão das Máquinas
Autores: Jeff Lemire e Dustin Nguyen
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Os Meus Primeiros Heróis: Cientistas (Nila Aye)

Zhang Heng. Marie Curie. Isaac Newton. Rosalind Franklin. Há um elo comum entre estas quatro pessoas: todos foram grandes cientistas e fizeram grandes descobertas. E que melhor forma de incentivar desde cedo os mais novos para a aprendizagem e a descoberta da ciência do que dando-lhes a conhecer os seus grandes heróis? É isso que acontece neste muito pequeno - e muito interactivo - livro.
Algo comum a todas as idades, mas particularmente importante nos mais pequenos, é que a aprendizagem se torna muito mais fácil se for interactiva e divertida. Pois bem, este livro junta essas duas facetas. Ao ser um livro muito breve, resume a informação ao essencial, como tem de ser tendo em conta a idade dos leitores a que se destina. Ao permitir brincar com o livro, usando o movimento para desencadear pequenas mudanças, torna-o uma experiência cativante - principalmente aos olhos daqueles para quem tudo é novo. Há, aliás, um ponto particularmente curioso. Sabem a história de Newton e da maçã? Pois, os movimentos associados fazem particular sentido neste caso.
Importa ainda ter em conta que, tendo em vista a idade dos seus leitores preferenciais, este é um livro para ser, provavelmente, lido em voz alta. Mais uma razão para destacar a simplicidade e brevidade do texto, pois permite uma explicação muito simples. O muito mais que há para saber sobre estas personalidades pode ser descoberto mais tarde, ao ritmo do crescimento. Noutros livros, na escola, na internet... afinal, informação é o que não falta. Aqui, importa acima de tudo despertar a curiosidade. E quanto a isso... missão cumprida.
Educativo e interactivo, trata-se, pois, de um livro perfeito para iniciar as crianças nas maravilhas da ciência. Quanto aos leitores adultos... bem, é um daqueles que nos deixa a pensar porque é que no nosso tempo não havia destas coisas. Simples, didáctico e muito divertido, um belo livro para partilhar com os mais pequenos.

Autora: Nila Aye
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Huck (Mark Millar, Rafael Albuquerque e Dave McGaig)

Há quem ache que Huck, o rapaz que trabalha na bomba de gasolina, é um pouco lento, mas nada podia estar mais longe da verdade. Huck tem o poder especial de conseguir encontrar seja o que - ou quem - for e usa o seu dom para, tal como lhe ensinaram, fazer uma boa acção por dia. Este dom é o segredo mais bem guardado da zona... mas eis que uma recém-chegada decide vender a história à televisão. A tranquilidade discreta de Huck salta para todos os ecrãs. E há olhos menos benévolos à espreita... os mesmos que conhecem o segredo das suas origens.
Parte do que mais surpreende nesta comovente história, mais até do que os vários desenvolvimentos inesperados do enredo, é a forma como concilia com precisão traços aparentemente irreconciliáveis. É uma história de ternura - de um rapaz abandonado que retribui com boas acções o amor da comunidade que o acolheu - e também de acção e mistério, com experiências secretas, um cientista louco e uma perseguição que se prolonga por anos. É uma história inocente - como o próprio protagonista, aliás - e, ao mesmo tempo, cruel na forma como despedaça às esperanças deste tão simpático protagonista. E é, por isso, uma história de contrastes, que tanto vicia como enternece, mas nunca deixa de cativar.
E também particularmente interessante a forma como este contraste se manifesta a nível visual, com cenas alucinantes, em que os movimentos de Huck quase parecem transbordar da página, a contrastar com os sorrisos e lágrimas inocentes dos pontos de introspecção. Huck tem o seu quê de super-herói, pelo que fazem todo o sentido a abundância de cor, as sequências de acção e até mesmo os rasgos de escuridão que atravessam o seu caminho. Mas é também uma daquelas almas genuinamente bondosas e há algo de comovente nas suas expressões - sobretudo nos sorrisos.
Importa ainda regressar à história para destacar dois ou três aspectos - aparentemente secundários. Primeiro, a relação de Huck com a comunidade, que parece passar para segundo plano com o desvendar das suas origens, mas nunca deixa de ser profunda e genuína. Depois, a questão da estranha que revelou o segredo, que encontra nas últimas páginas uma resolução tão surpreendente - e, ainda assim, tão ajustada à personagem - que é impossível não sorrir ao vê-la. E, finalmente, o pequeno Ethan, figura muito discreta, mas que permite uma revelação perfeita da origem do outro dom de Huck - o bom coração.
Ternura, inocência e bondade contrastam, pois, nesta história com um conjunto de maquinações sombrias e revelações perigosas. E, de entre os grandes rasgos de acção e os pequenos - mas tão brilhantes - momentos de emoção, surge uma história que é, no essencial, muito simples, mas  também tão marcante como o grande coração do seu protagonista. Vale muito a pena conhecer Huck e a sua história.

Título: Huck
Autores: Mark Millar, Rafael Albuquerque e Dave McGaig
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 19 de maio de 2020

Sombras Noturnas (Linda Chapman)

Maia, Sita, Lottie e Ionie conseguiram descobrir quem andava a fazer magia negra e tudo recuperou a tranquilidade... pelo menos por alguns meses. Porque agora o bosque está a morrer e, com a ajuda dos seus animais, as quatro amigas não tardam a perceber que há mais alguém a praticar magia negra - e, assim, a sugar a vida do bosque. Tudo começa como uma mera suspeita, até que, subitamente, os adultos começam a comportar-se de forma estranha... Maia e as amigas terão, por isso, de recorrer à sua própria magia para expulsar as Sombras que andam a espalhar o caos.
Parte do encanto destas pequenas aventuras vem da forma simples e, ainda assim, empolgante como a história é relatada. Tudo é narrado de forma muito concisa e directa, cabendo às ilustrações complementar com os cenários e as expressões a magia simples que envolve toda a história. E o resultado é uma leitura leve e rápida, mas muito cativante e enternecedora. Para os mais novos, sim, mas não só... até porque, tal como os volumes anteriores, consegue, ao mesmo tempo, lembrar tempos mais inocentes e estimular a imaginação.
Claro que, a um olhar adulto, há certos desenvolvimentos que não são propriamente difíceis de antever, principalmente para quem já leu os livros anteriores. Ainda assim, é interessante notar que esta relativa previsibilidade não retira envolvência ao enredo. Podemos saber por que pontos é que a história vai passar, mas os passos que conduzem a esse caminho não deixam de ter muito de interessante. Além disso, há um fio secundário da história - a entrada em cena de Essie - que vem acrescentar um toque de complexidade. Com o crescimento, vêm novos interesses e novas amizades. E a relação de Lottie com Essie reflecte bem o tipo de dilemas que isso traz.
E há, claro, a mensagem positiva subjacente a todo o percurso. Afinal, mais até do que a magia, é a amizade a base fundamental destas histórias. O tipo de amizade que é simples e inocente - e eis aqui de novo a nostalgia de outros tempos - mas que tem, como todas, os seus altos e baixos. Importa ainda ter em conta que Maia, Sita, Lottie e Ionie estão constantemente a lutar contra a magia negra. Ora, na vida real, a linha que separa o bem do mal pode não ser tão óbvia - mas os valores, esses, são muito fáceis de detectar.
Tudo somado, a impressão que fica é a da habitual leitura leve e enternecedora, simples quanto baste, mas cheia de aventuras e de emoção. Uma história cativante para lembrar aos leitores de todas as idades a importância da amizade - na infância, na juventude e na idade adulta.

Autora: Linda Chapman
Origem: Aquisição pessoal

domingo, 17 de maio de 2020

Esperarei por Ti Toda a Vida (Megan Maxwell)

Desde pequena que Montse sonha com um imponente castelo e com um majestoso highlander. Foi essa uma das razões que a levou a mudar-se para longe. Não imagina, porém, que o seu sonho está bem perto de se tornar realidade. Durante umas férias na Escócia, Montse e as amigas visitam uma feira medieval. Aí, encontram uma cigana que foi, em tempos, mentora e amiga de Montse e que lhe confere, por isso, três desejos. E é o desejo de aventura e de amor de Montse que a leva inesperadamente para o passado... e ao encontro do highlander dos seus sonhos, que é muito mais complexo e temperamental do que ela imaginava.
Parte do que torna esta história tão cativante é o estranho equilíbrio que constrói entre o expectável e o inesperado. Sendo uma história de amor entre personagens de séculos diferentes - o que implica viagens no tempo e regressos ao futuro -, há certas coisas que não são muito difíceis de prever. Ainda assim, se os resultados são relativamente fáceis de adivinhar, já o caminho está cheio de pequenas surpresas, não só a nível de desenvolvimentos, mas sobretudo a nível de emoção e de humor.
Além das linhas essenciais, também a escrita é relativamente simples, centrando-se bastante nos acontecimentos e nos diálogos, ainda que haja espaço para a ocasional descrição da beleza dos cenários. É um registo eficaz, pois confere leveza à leitura, além de realçar o impacto dos grandes momentos - sejam eles uma grande declaração de amor ou o confronto com uma arquirrival que passa de vilã de filme a algo de muito diferente.
Mas é nas personagens que está a grande força. Podem não ser as figuras mais complexas à face da terra, mas também estão muito longe de ser simples. Declan Carmichael carrega o peso da perda e de uma maldição ancestral (sobre a qual fica, é certo, uma ligeira curiosidade insatisfeita, mas cujos aspectos essenciais estão lá). Montse pode parecer uma mulher descontraída, mas traz consigo as sombras do passado e o tipo de insegurança que isso implica. E quanto à sua relação com as amigas... bem, é deliciosamente divertida. E até mesmo um pouco inspiradora.
Leve e cativante, com uma história divertida e emocionante e um conjunto de personagens tão peculiar quanto memorável, trata-se, pois, de uma leitura ligeira mas muito empolgante. Uma história que, embora nem sempre surpreenda, lembra com toda a precisão que essa coisa do amor é, de facto, intemporal.

Autora: Megan Maxwell
Origem: Recebido para crítica

sábado, 16 de maio de 2020

O Dia em que o Keith se Perdeu (Alex T. Smith)

O Keith é um patinho bebé que se perdeu da mãe e que, por isso, não consegue parar de chorar. Ora, enquanto o Benny procura a Mãe Pata, o Claude e o senhor Borboto têm de ficar a tomar conta do Keith e de arranjar coisas com que o distrair. Só que nenhuma distracção dura muito e não tarda a que o Keith comece novamente a chorar. Além disso, ninguém consegue encontrar a mãe do Keith. Mas a solução vem de onde menos se espera. Afinal, o Claude tem sempre as melhores ideias...
Parte do que torna estas histórias tão cativantes, mesmo a um olhar adulto, é que trazem imediatamente à memória a mistura de inocência e de imaginação que tão bem caracterizam a infância. E, sendo assim, é fácil imaginar que esta pequena aventura será ainda mais cativante para os leitores para os quais foi pensada. Tudo nesta história tem o seu quê de improvável, a começar pelo facto de o Claude ser um cão que toca corneta e o senhor Borboto... bem, uma meia, mas tudo flui com naturalidade. Tudo é credível, apesar de impossível, e isso é algo que facilmente nos transporta para tempos mais mágicos.
É também um livro visualmente muito bonito e em que a caracterização das personagens tem sempre o seu quê de surpreendente, seja pela indumentária curiosa, seja pelas cores fortes que parecem dar-lhes mais vida. É, pois, um livro bonito de se folhear e em que as imagens constroem um cenário mais vasto para um texto que é, basicamente, muito simples.
Simples, mas com uma cadência notável. Lido em voz alta, parece adquirir um ritmo próprio, o que faz desta pequena história uma boa opção para ler com ou aos mais pequenos. Além disso, apesar de breve, nunca se torna demasiado básico, sendo também uma boa forma de começar a aprender palavras novas.
Breve, mas com a sua magia peculiar, simples, mas muito cativante e visualmente muito apelativo, trata-se, pois, de uma bela história para ensinar aos mais novos a magia da leitura, através de uma aventura muito simples, mas ternurenta e muito divertida.

Autor: Alex T. Smith
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Deprivation (Roy Freirich)

Tudo começa com um rapaz, sozinho na praia e agarrado à sua pequena consola como se nada mais existisse na sua vida. Subitamente, todos começam a perder o sono e os problemas começam a vir à superfície. Sam, o médico local, dá por si a cuidar da criança abandonada e, ao mesmo tempo, a tentar responder aos cada vez mais desesperados apelos dos residentes temporários da ilha por algo que os faça dormir. Tem, contudo, também de lidar com a sua própria insónia e com um passado que continua a atormentá-lo. À medida que os dias passam e o sono continua a escapar-lhes a todos, a privação começa a desencadear efeitos graves. E o que começou por ser um incómodo não tarda a transformar-se numa escuridão mais profunda... a que se segue a violência.
Um dos aspectos mais fascinantes desta história é que tudo parece começar num registo relativamente leve - ainda que com algumas insinuações ominosas - a que posteriomente se sucede um mergulho gradual nas trevas e na violência. Parece ser moldada pelo ritmo da falta de sono das personagens, primeiro com indignações e conflitos menores, depois com uma verdadeira revolta. E, no meio de tudo isto, há o mistério da criança abandonada, do passado que Sam carrega consigo e, acima de tudo, da razão por que toda a gente perdeu o sono.
Também particularmente impressionante é como tudo acontece em poucos dias, parecendo, ainda assim, durar uma eternidade. é como se a falta de sono das personagens emanasse da própria narrativa, reflectindo com absoluta precisão a lenta descida ao caos global que se apodera da ilha. Reflecte, além disso, com exatidão o que cada personagem está a sentir: na ausência do sono, tudo parece um dia infinito.
E há ainda as personagens propriamente ditas, com a sua fascinante complexidade interior. Sam, a fugir das sombras do seu passado; o chefe da polícia, cuja decisão passada assombra as suas acções actuais; o próprio rapaz, com o seu silêncio avassalador. As sombras que carregam moldam o seu comportamento e conduzem a narrativa a uma escuridão mais nítida. No fim, estas escolhas definem também a conclusão: um final intenso e cheio de surpresas, mas também fascinante na sua natural ambiguidade.
Uma luz que se transforma em trevas perante a insónia: é esta a base desta fascinante e envolvente história. Um livro onde nada - nem ninguém - é só aquilo que parece e onde a mente e os seus labirintos desempenham um  papel crucial em toda a história. Intenso, intrigante e inesperadamente profundo, um livro que não hesito em recomendar.

Título: Deprivation
Autor: Roy Freirich
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 12 de maio de 2020

The Wicked + The Divine: Escalada (Kieron Gillen, Jamie McKelvie, Matt Wilson e Clayton Cowles)

A cada noventa anos, doze jovens são escolhidos para se tornarem deuses. Durante dois anos, serão como celebridades, amados e odiados por aquilo em que se tornaram. Depois morrerão. Mas há um outro lado sombrio para este ressurgir de um panteão divino. Laura Wilson, anteriormente uma fã, revelou ser uma décima terceira deusa, destinada a provocar a destruição. E Ananke, guia e mentora do panteão, esconde os seus próprios planos sinistros. Laura - ou Perséfone - devia estar morta, mas não está. E, à medida que as verdades vêm à tona, as divisões aprofundam-se. O resultado só pode ser um: a guerra entre os deuses. E o fim das movimentações secretas de Ananke.
Sendo o volume mais intenso de uma série toda ela cheia de surpresas e de tensões, este é um livro em que o movimento e as grandes cenas de acção assumem um papel fundamental. E há dois aspectos que sobressaem relativamente a este ponto. Primeiro, o impacto visual das grandes cenas, cheias de pequenos pormenores e, ao mesmo tempo, de um caos meticulosamente organizado (sobre o qual é possível descobrir ainda um pouco mais através do material suplementar que surge no fim do livro). Segundo, o contraste entre estes grandes momentos de conflito e as súbitas pausas resultantes do caos interior de Laura. Perséfone esteve no inferno e isso nota-se. E há como que uma melancolia profunda nas suas expressões que contrasta vivamente com os rasgos de fúria e que é transposta para o cenário global como uma espécie de calma por entre as tempestades.
Outro aspecto a destacar é o adensar da escuridão que envolve esta história. Desde muito cedo que há segredos e intrigas na sombra da aparentemente exuberante vida dos novos deuses, mas cada desenvolvimento trouxe consigo mais sombras, mais conflitos e mais crueldade. Agora, a guerra tornou-se aberta e os segredos começam a ser revelados a todos. O resultado é uma evolução em que as sombras se vão sobrepondo ao brilho da vida de celebridade, em que o perverso começa a sobrepor-se ao divino e em que cada conflito e cada morte traz consigo consequências surpreendentes.
E há ainda o ponto mais impressionante numa história que é toda ela impressionante: a capacidade de conjugar ambiguidade moral com uma empatia intensa e profunda. Laura é o máximo exemplo disso, principalmente na fase final deste volume, mas é algo que se aplica, de forma mais ou menos clara, a quase todas as personagens. Neste mundo, divino não significa necessariamente bom e não faltam violência e crueldade a lembrar que a guerra destes deuses só é diferente da dos homens em termos de meios e de dimensão. E, ainda assim, há proximidade: com Perséfone, no que a levou ao inferno; com Minerva, na sua sábia inocência; com a tripla mente perturbada de Morrigan... com a omnipresença de um engano cujas consequências se revelam agora em toda a sua verdadeira dimensão. Nenhuma das personagens desta história é sempre linearmente bondosa. Todas têm o seu contraste de luz e sombra - e é precisamente isso que as torna tão brilhantes.
Intenso no seu equilíbrio de empatia e crueldade, fascinante no contraste entre a quietude das sombras interiores e o movimento dos grandes conflitos, visualmente belíssimo, tanto na expressividade dos rostos como nas sequências de acção, trata-se, pois, de um livro que consegue elevar ainda mais as altíssimas expectativas que cada novo volume desperta. E talvez possa resumir-se a uma palavra: glorioso.

Título: The Wicked + The Divine: Escalada
Autores: Kieron Gillen, Jamie McKelvie, Matt Wilson e Clayton Cowles
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 11 de maio de 2020

The Attic Tragedy (J. Ashley-Smith)

Sylvie tem um estranho dom. Sempre que toca num objecto, sente o seu passado, a sua história. Os seus fantasmas, ainda que nunca lhes dê esse nome. E, ao entrar na vida de George, tudo muda. George não sente que pertença ao seu próprio corpo, o que a transformou num alvo para os rufias. Quando Sylvie o salva deles, forma-se uma ligação entre os dois. Mas o tempo passa, a vida muda e Sylvie começa a ver o seu dom como um problema. Começa a abrir-se um fosso entre Sylvie e George... e todas as sombras começam a vir à tona. Pois, se Sylvie abandonar os seus fantasmas, então estes vão precisar de encontrar outro alguém para os ouvir. Alguém que, como eles, não pareça pertencer ali.
Parte do que torna este livro tão fascinante é o facto de, apesar da sua relativa brevidade, conter uma tal profundidade de emoção e de tristeza que é impossível não sentir com as personagens. Sylvie tem um tipo singular de tristeza, suportada com graça e serenidade e canalizada para a sua amizade com George. A tristeza de George é mais profunda e destrutiva, e tão presente, tão intensa que quase é possível tocar-lhe. Existe, além disso, algo de intemporal nesta história de amizade e anseio. O tempo passa para todos e o que em tempos pareceu ser para sempre desaparece sem deixar rasto. Sylvie e George crescem e constroem novas vidas para si mesmos. E aquele laço que havia entre eles, essa amizade feita de tristeza e de compreensão, traça um caminho diferente para cada um.
Existe também ao longo de toda a história uma escuridão que é quase tangível, não só devido aos fantasmas ou à relação que George tem com as lâminas, mas sobretudo devido à percepção generalizada de que cada vida contém a sua própria escuridão. A "ferida que nunca sara pois não é do corpo" é, por vezes, a própria vida e, ao vê-la nesta história, reconhecemo-la no mundo real. Pode ser uma história breve, mas capta com mestria as mais negras sombras da vida normal. E isso é, em si, algo de belo.
Às vezes, uma história não precisa de ser longa para deixar a sua marca naqueles que a lêem. É o caso deste livro: uma breve e fascinante história de amizade e de tristeza, de crescimento e de trevas, de vida... para além da vida.

Título: The Attic Tragedy
Autor: J. Ashley-Smith
Origem: Recebido para crítica

sábado, 9 de maio de 2020

O Astrónomo de Herodes e outros contos

São sobejamente conhecidas, tanto por crentes como por não crentes, as linhas essenciais das narrativas bíblicas. São também bases intemporais, passíveis de serem contadas de muitas formas. É exactamente isso que este pequeno livro faz, pegando em vários momentos para os reconstruir de forma diferente, num conjunto em que cada parte funciona independentemente, mas molda ao mesmo tempo um todo maior. E podem não ser percursos inteiramente imprevisíveis, mas não deixam, ainda assim, de ser muito cativantes.
É o primeiro conto que dá título ao livro. O Astrónomo de Herodes reconstrói o episódio bíblico do encontro dos magos com Herodes a caminho de Belém, acrescentando um novo elemento e uma nova visão da acção do rei ante a promessa do seu sucessor. Simples, mas cativante, consegue acrescentar uma perspectiva diferente a uma história sobejamente conhecida, o que é mais do que suficiente para proporcionar uma boa leitura.
Segue-se Nas Margens do Rio Jordão, onde a história passa a ser a de João Baptista junto ao Jordão, bem como a do perigoso olhar de Salomé. Não sendo propriamente uma história nova - vindo como vem das narrativas bíblicas - consegue, ainda assim, acrescentar-lhe um registo diferente, ao seguir a perspectiva de Herodias e ao centrar-se no primeiro contacto, ao invés da célebre história do que veio depois.
No Monte das Tentações recria as tentações no deserto, construindo para elas um diálogo mais extenso - e talvez mesmo mais cordial - e uma visão mais humana dos protagonistas. Mantém-se a simplicidade e o conhecimento de que se trata de uma linha geral já mais do que conhecida, mas surge ainda a surpresa do diálogo mais extenso e da forma como tudo termina, deixando ao relato bíblico o que aqui fica por dizer.
Em Na Prisão de Maqueronte, surge novamente João Baptista, desta vez no primeiro contacto com Salomé e, em seguida, no subsequente cárcere. São já mais as diferenças relativamente ao relato convencional, com diálogos mais emocionados a virem à superfície. Além disso, torna-se agora evidente que, embora independentes, todos estes contos se entrelaçam num todo maior, como o evidencia a promessa que surge no final deste conto.
Segue-se Junto ao Poço de Jacob. Aqui, o episódio reconstruído é o do encontro de Jesus com a samaritana, num diálogo mais extenso e movido por motivos mais humanos. Provavelmente um dos contos mais surpreendentes deste livro, marca sobretudo pela apresentação de um Jesus menos divino e mais humano - e de um amor que é também mais pessoal.
O Último Véu regressa aos últimos dias de João Baptista, traçando para a dança de Salomé e subsequente pedido um percurso bem diferente, ainda que culminando numa conclusão similar. Divergindo em muito da narrativa que lhe serve de base, entrelaça amor num caminho de ódio, conferindo também a esta história uma perspectiva mais humana e emotiva.
Surge depois A Verdade, onde convergem vários dos episódios da narrativa bíblica, contados, como habitual, de forma um pouco diferente. Aqui, sobressaem duas coisas: o registo mais ligeiro dos diálogos, que realça a já referida maior humanidade da sua figura central e a forma como, sem nunca se desviar demasiado do registo original, cria relações mais próximas, ainda que muito discretas.
O Velho e o Menino no Jardim dá, em seguida, um salto no tempo, para dar a conhecer um professor que parece ter perdido a fé no seu encontro com um rapaz que lhe parece inexplicavelmente familiar. É, antes de mais, inesperada esta mudança de cenário, ainda que as ligações com os contos anteriores sejam bastante evidentes. Ainda assim, a impressão que fica é a do início de uma nova fase, que terá continuidade nos contos seguintes, ainda que funcione também como algo completo em si mesmo.
Segue-se A Caminho de Emaús, que, como o nome indica, narra a caminhada de dois discípulos rumo a Emaús, bem como o seu inesperado encontro com um estranho. Mais uma vez, é uma forma diferente de construir uma história conhecida, mas aqui o que se destaca é a ambiguidade de um estranho que não parece ser bem o mesmo da história original, mas cuja visão não podia ser mais clara.
E tudo termina com A Ressurreição Segundo Tobias da Encarnação, regresso a um período mais recente e às respostas que anteriormente tinham ficado por dar. Relativamente simples no registo, marca sobretudo pela visão que apresenta da fé, bem como pela ténue linha que, ao longo de todo o texto, parece unir o passado ao presente.
Terminada a leitura, a impressão que fica é a de um livro que é simultaneamente muito simples e muito cativante. Parte da mais célebre das histórias para lhe conferir uma perspectiva diferente. E, sem nunca perder de vista as ideias originais, torna-a nova e envolvente. Basta isto para proporcionar uma boa leitura - e para que valha a pena descobrir estes contos.

Autor: Onofre dos Santos
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Jessica Jones, Vol. 3 - O Regresso do Homem-Púrpura (Brian Michael Bendis, Michael Gaydos e Matt Hollingsworth)


Há quem diga que a pior coisa que alguma vez aconteceu a um super-herói foi o que sucedeu a Jessica Jones quando esteve sob o controlo do Homem-Púrpura. Mas não. A pior coisa que aconteceu a um super-herói - e a Jessica Jones - está a acontecer agora. Saber que ele anda à solta, que pode ser qualquer um e que não parará até a ter encontrado. A expectativa é terrível, principalmente agora que, pela primeira vez, Jessica tem tanto a perder. E embora já não esteja sozinha, sabe que tem de ser ela a lidar com o seu maior inimigo: primeiro, porque é por ela que ele está obcecado; e segundo, porque qualquer um pode ser uma arma contra ela. O reencontro terá de acontecer - e as consequências, essas, são imprevisíveis.
Parte do que torna esta protagonista tão fascinante é o facto de ser extraordinariamente humana para super-heroína. A vida de Jessica Jones é feita, em grande medida de caos: caos provocado pelas suas decisões, pelo tipo de pessoas e organizações com que convive e pelo simples peso do passado que traz consigo. Jessica, como tantos dos que a rodeiam, tem super-poderes, mas não é de todo isso que a define. E é neste reencontro com o passado, em que o seu maior medo vem ao seu encontro para desencadear algo que desconhece, mas que será inevitavelmente um fim, que vemos Jessica no seu mais vulnerável. E também na sua máxima força.
Outro aspecto que sobressai é a manutenção de um contraste que já vinha de trás - entre os tons sombrios do noir e os rasgos de acção e de cor da história de super-heróis - numa história em que o lado detectivesco passou para um claro segundo plano. Este livro tem muito pouco de história de detectives - e o que tem é também bastante inesperado. Ainda assim, os tons sombrios dos cenários lembram o caminho percorrido até este ponto, com a agência de Jessica ainda a desempenhar um papel importante na resolução final. Além disso, os cenários sombrios ajustam-se na perfeição ao estado de espírito da protagonista. Basta olhar para as expressões do seu rosto para o perceber.
É de um final que se trata - e, tendo em conta que a linha central da história é o confronto de Jessica com o Homem-Púrpura, talvez se possa julgar que certos desenvolvimentos serão expectáveis. Mas, se há um ou outro aspecto que é relativamente fácil de prever, já o caminho até lá está cheio de surpresas, e há algo de absurdamente brilhante em conseguir gerar empatia por uma personagem que durante todo o caminho foi a imagem perfeita do terror e da aversão. Além, é claro, de um último aspecto: ao acrescentarem um novo caso após a grande resolução do conflito, os autores mostram-nos também que a vida continua. Que esta parte da história de Jessica Jones pode muito bem ter acabado, mas a sua vida não.
Heróica e humana, forte e vulnerável, dividida, mas com o coração no sítio certo, Jessica Jones é, em todos os aspectos, uma personagem memorável. Intenso, complexo e cheio de surpresas, este é um final à altura da sua personalidade.

Título: Jessica Jones, Vol. 3 - O Regresso do Homem-Púrpura
Autores: Brian Michael Bendis, Michael Gaydos e Matt Hollingsworth
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 7 de maio de 2020

O Rapaz de Auschwitz (Steve Ross)

https://www.wook.pt/livro/o-rapaz-de-auschwitz-steve-ross/23587592?a_aid=5aa257b7be336
Szmulek Rosental tinha oito anos quando o mundo que conhecia começou a desfazer-se em cinzas. Primeiro, vieram os guardas, para tomar pela violência as poucas posses das famílias de Lodz. Seguiu-se a fuga apressada, a separação da família, a tentativa de sobreviver escondido numa quinta e depois em plena floresta. E depois o longo calvário da passagem por dez campos de concentração, com toda a violência, morte, medo e abusos associados. Szmulek sobreviveria para se tornar Steve Ross. Na América, tentaria estender aos outros os pequenos gestos de amor que outros lhe demonstraram em condições inimagináveis. E deixaria a sua marca. Esta é a sua história.
Quando se começa a ler um livro como este, há algo que é incontestável: basta o facto de ser uma história real para o tornar relevante. E principalmente em tempos como os de hoje, em que o ódio e a intolerância que o autor tanto se esforçou por combater parecem começar novamente a manifestar-se à luz do dia. É esse um dos aspectos mais cruciais deste tipo de livros: lembrar as consequências do ódio, o caminho a que conduziu, o sem fim de morte e de violência resultantes. Para que não se repita.
Todas estas histórias são, pois, importantes. A de Steve Ross é também inspiradora. A forma que escolhe para narrar o seu percurso, alternando entre aquilo que viveu nos campos de concentração e a vida que construiu depois da libertação, permite vislumbrar a vida para lá do inferno. Cria também um poderoso contraste entre esperança e desespero, entre os anos passados na sombra da violência e da morte e o esforço consciente por levar esperança aos que mais dela precisam. E é algo de fascinante a forma como este contraste transborda das páginas deste livro: as partes mais negras do caminho perturbam - e devem fazê-lo; o percurso posterior inspira e eleva. E, ainda assim, há outro ponto a destacar: o inferno não desapareceu após a libertação. A forma como o autor fala dos traumas que ficaram deixa isso muito claro. As marcas da violência não se apagam num dia.
Há ainda uma outra particularidade que importa destacar sobre este livro: a simplicidade da narração. É algo de impressionante a fluidez com que o autor relata o seu percurso, tanto nos momentos mais negros como no longo percurso que se seguiu. Escreve de forma simples e directa, expondo com toda a clareza pensamentos e emoções. Não se demora em pormenores de contexto - até porque, para isso, existem muitos outros livros. É de um testemunho pessoal que se trata e a impressão que fica é a de um relato feito de coração aberto. Assim, tudo se torna mais próximo e também mais avassalador.
Memória viva das consequências do ódio e testemunho pessoal de desespero e de esperança, trata-se, pois, de um livro tão importante quanto emocionalmente devastador. Devastador pela realidade contida e importante por tudo o que sobre essa verdade tem para transmitir. E memorável, claro, em todos os aspectos: pela voz, pela história, por tudo aquilo que é.

Autor: Steve Ross
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 5 de maio de 2020

Os Cavaleiros de Heliópolis - Rubedo|Citrinitas (Alejandro Jodorowsky e Jérémy)

Descendente de uma linhagem sagrada, homem e mulher em simultâneo, Asiamar tornou-se Cavaleiro de Heliópolis após muitas e insondáveis provações. Sê-lo implica pôr a humanidade acima do indivíduo e encaminhar para a ruína aqueles que almejam destruí-la. Mas há ainda um coração que sente sob a armadura do cavaleiro. Asiamar deixou a sua marca em Napoleão, mas a impressão foi recíproca. E, mesmo que consiga encontrar a sua crueldade interior, a sua influência sobre o mundo não se esgota na ruína do imperador. Pois, para quem pode viver trinta mil anos, o tempo de uma vida normal é fugaz. E há outros segredos à espera, outras acções... e a certeza de que o trabalho nunca se esgota.
Existe algo de absurdamente fascinante na forma como este livro consegue debruçar-se sobre uma base oculta tão complexa e ritualizada, transpondo-a para uma história tão intensa e cativante que tudo se torna claro e natural. Os segredos dos Cavaleiros são imensos e inexplicáveis, mas tudo parece ter um estranho sentido, e o contraste entre a severa e implacável disciplina da organização e o percurso pessoal de uma personagem que é simultaneamente de um poder sem limites e de uma vulnerabilidade avassaladora é algo de verdadeiramente brilhante.
Tudo gira também em torno de uma espécie de magia que, embora secreta e espiritual, tem manifestações muito visíveis. Ficam, por isso, na memória os cenários impressionantes, a forma como os rituais são encadeados, com tanta cor e intensidade que quase parecem irromper da página. E também os rostos, as expressões, o próprio sentimento que transborda - principalmente de Asiamar. É poderoso e vulnerável - e isso é tão visível nas expressões como nas palavras que profere. E assim, de um mundo tão diferente e tão secreto, nasce uma proximidade tão forte que é impossível não sentir com esta personagem tudo o que ela sente.
E há ainda um último aspecto a destacar nesta história toda ela fascinante. A forma como abrange diversas figuras históricas, de Napoleão a Jack, o Estripador, dando-lhe novos percursos e entrelaçando-os no caminho de uma irmandade imortal, molda os contornos de um todo mais vasto, que culmina num final particularmente poderoso em que, de forma concisa, mas surpreendentemente certa, o futuro se liga ao passado e encerra a linha central da história, deixando, ainda assim, um mar de infinitas possibilidades.
Visualmente belíssimo, fascinante no seu núcleo de personagens e genial na conjugação de uma alquimia complexa com uma sucessão de desenvolvimentos sempre marcantes, global ou pessoalmente, trata-se, pois, de um livro que facilmente se entranha na memória, onde permanecerá durante muito tempo. Constrói para a história uma história secreta, e para Asiamar um equilíbrio perfeito. Que mais se pode pedir, então, a um livro destes, que tão perto anda da perfeição?

Autores: Alejandro Jodorowsky e Jérémy
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Laranja de Sangue (Harriet Tyce)

Tudo parece correr bem na vida de Alison. Tem um casamento saudável, uma filha encantadora e a sua carreira de advogada parece estar no rumo certo. Acaba, aliás, de lhe ser atribuído o seu primeiro caso de homicídio. Mas nada neste percurso aparentemente tranquilo é tão harmonioso como parece. Se o casamento de Alison é feliz, então porque está a ter um caso com um colega e a refugiar-se num consumo cada vez mais excessivo de álcool? E por que razão há súbitos espaços em branco na sua memória? E quanto à sua cliente... Embora não hesite em assumir a culpa, o caso parece ser bastante mais complexo e há incongruências nos seus silêncios e no seu relato de uma relação abusiva. Alison vê-se, pois, na obrigação de conciliar um caso complexo com uma vida pessoal que parece estar a desmoronar-se. Até porque não é a única nesta história a guardar segredos sombrios...
É fundamentalmente na capacidade de surpreender que está a principal qualidade desta história. Desde o início que parece haver segredos e elementos por explicar nas relações entre as personagens, além, claro, do próprio caso que Alison tem em mãos. E é este prenúncio de grandes revelações o primeiro aspecto a cativar para uma leitura que começa por ser um pouco pausada, mas que, de evento em evento, vai crescendo em intensidade para culminar num final avassalador. Ninguém é o que parece nesta história - e até os mais aparentemente inocentes escondem segredos profundos.
Outro aspecto que sobressai é a ambiguidade moral das personagens. Alison está a ter um caso amoroso e a sua obsessão pelo trabalho leva-a, por vezes, a negligenciar a filha. Patrick é, no mínimo, contraditório com a sua mistura de gestos de facto e de brusquidão. Carl parece o marido inocente, mas esconde no seu interior uma escuridão profunda. E todas estas facetas vão-se gradualmente revelando em actos cada vez mais surpreendentes. Nenhuma personagem - com a óbvia excepção de Matilda - é absolutamente inocente, o que faz com que tudo seja possível nas decisões e comportamentos de todos os envolvidos. E o resultado é um crescendo de conflitos pessoais a acrescentar intensidade a uma história que é muito mais do que a do caso que Alison tem de defender.
Também a forma como a história é narrada contribui para este impacto. Tudo é visto da perspectiva de Alison, o que, tendo em conta os seus hábitos, faz com que as dúvidas e aparentes incongruências das suas relações pareçam perfeitamente enquadradas. Além disso, esta forma de contar a história reforça o impacto das dúvidas, confusões e até momentos de introspecção da protagonista, pois, ao seguir a história pelos olhos dela, é mais fácil sentir o que ela sente. E, claro, tendo em conta as revelações finais, é também interessante ver pelos olhos de Alison as coisas que lhe escaparam ao longo do caminho. Só sabemos o que Alison sabe - o que adensa o mistério e reforça o impacto de cada surpresa.
Trata-se, pois, de um livro que, cativante desde o início, vai gradualmente crescendo em intensidade e ambiguidade moral, para culminar num final tão intenso e surpreendente como os segredos que as personagens guardavam. Empolgante, misterioso e cheio de surpresas, um livro que não posso deixar de recomendar.

Autora: Harriet Tyce
Origem: Recebido para crítica

domingo, 3 de maio de 2020

Um Pingo na Água (Ann Yeti)

Ana aprendeu cedo a tornar-se independente, a confiar apenas em si mesma e a ser cautelosa nas suas relações. Tornou-se uma mulher de sucesso, preparada para tudo e decidida a comandar a sua própria vida. Mas o amor tem razões que a razão desconhece. Com a entrada em cena de João, Ana descobre sentimentos e atracções que se julgava incapaz de ter. Só que João tem os seus segredos. E a quebra de confiança leva Ana a seguir um rumo diferente - com um protagonista distinto.
Sem dúvida o aspecto mais notável desta história é o delicado equilíbrio entre empatia e ambiguidade que parece estar presente ao longo de todo o enredo. É fácil simpatizar com Ana, com a sua determinação e independência e com a lucidez com que encara todos os aspectos da sua vida. Já outras personagens despertam sentimentos ambíguos, sobretudo devido a certos comportamentos. E é interessante notar como, mesmo quando as atitudes que se manifestam são mais negativas, a progressão da narrativa nunca deixa de despertar emoções fortes - seja para desejar que aquele sentimento se aprofunde ou que aquela personagem aprenda a ficar no seu lugar.
É um livro relativamente breve, em que as coisas são relatadas de forma bastante directa e com relativa concisão. Fica, por isso, em certos aspectos, a sensação de que certos momentos - sobretudo no que respeita à situação de João - podiam ter sido um pouco mais desenvolvidos. Mas nada de essencial fica de fora e, sendo Ana a protagonista, faz um certo sentido também que seja a história dela o cerne de todo o enredo. É sobretudo das relações que a história vive, ainda que os percursos pessoais tenham também o seu quê de intrigante. Daí que o que fica por contar seja secundário.
E há ainda um último ponto que importa realçar neste percurso que é sobretudo emocional. É que, sendo acima de tudo uma história de amor, vive também muito do seu percurso de superação. Das primeiras adversidades aos conflitos e perdas subsequentes, tudo na história de Ana é avanço e superação. Fica, por isso, um outro aspecto surpreendente desta história relativamente breve: a visão especialmente certeira da vida depois das barreiras, das adversidades e das perdas.
Breve, mas muito cativante e emocionalmente intenso, trata-se, pois, de um livro que se lê de uma assentada e que, apesar das questões que deixa sem resposta, facilmente se torna memorável pela força dos sentimentos que evoca. História de amor, de superação e sobretudo de independência, cativa da primeira à última página. E leva-nos para dentro do coração das personagens.

Autora: Ann Yeti
Origem: Recebido para crítica

sábado, 2 de maio de 2020

O Doente Molière (Rubem Fonseca)

Começa a sentir-se mal durante a representação de O Doente Imaginário. Passadas poucas horas, está morto, mas não sem antes ter confidenciado a um amigo anónimo que foi mortalmente envenenado. E, após uma busca frenética por um padre - ainda que não por um médico, pois este amigo tem segredos que precisa de preservar, - eis que este amigo regressa para encontrar Molière morto. Sente-se agora culpado por não ter feito mais para o salvar e decide, por isso, descobrir quem foi o assassino. Mas Molière fez muitos inimigos com as suas peças - e o marquês anónimo não pode dar-se ao luxo de se envolver em assuntos de venenos.
Provavelmente o aspecto mais surpreendente neste curto livro é a forma como, apesar da brevidade, consegue apresentar com tanto pormenor a teia de intrigas e influências da França de Luís XIV. Pode haver um crime no centro da história, mas é o contexto mais vasto que sobressai, com as peças de Molière a servirem de base para uma surpreendentemente completa reflexão sobre poder, hipocrisia e influências que se movem fatalmente nas sombras. É, pois, um livro breve, mas relativamente pausado e, mais que o registo de um crime quase perfeito, é a história do tempo em que esse crime ocorreu.
Também particularmente notável é o facto de a vasta maioria das personagens - com excepção do narrador anónimo - serem reais. É, pois, possível reconhecer partes desta história e vê-las de uma perspectiva diferente. A época dos venenos na corte de Luís XIV é um período relativamente conhecido e ver as figuras desse período entrelaçadas na história mais singular e pessoal da morte de Molière tal como é vista pelo seu amigo marquês realça a complexidade de uma narrativa capaz de conter em menos de cem páginas o essencial de um período inteiro.
E, claro, importa olhar para o que é, apesar de tudo, o enigma central do livro: quem foi o responsável pela morte de Molière. Embora pareça, por vezes, que esta parte do enredo passa para segundo plano face ao contexto histórico e à própria história do marquês anónimo, a questão nunca deixa de estar presente e, ainda que a derradeira resposta não seja absolutamente surpreendente (afinal, com tantos inimigos, era inevitável que a possibilidade já tivesse surgido no pensamento), não deixa, ainda assim, de ter o seu impacto - até porque, tal como tudo o resto, se vê também envolta na omnipresente teia de intrigas e influências da época.
Breve, mas surpreendentemente complexo, trata-se, pois, de um livro que, apesar de relativamente pausado, marca sobretudo pela capacidade de conter na sua relativa concisão toda a imensidão da corte francesa e das suas intrigas. É um mistério diferente - mas um mistério ainda assim. E deveras memorável.

Autor: Rubem Fonseca
Origem: Recebido para crítica