Crónicas, contos, poesia e teatro. Relatos de um tempo que já não é o presente, mas permanece absolutamente actual, histórias de vidas profundas e complexas, versos que falam à alma e uma história para imaginar no palco da mente. Tudo isto se esconde nas páginas deste volume que, sendo relativamente extenso, consegue, na sua diversidade, nunca cair na repetição.
E, em jeito de ponto de partida, importa, antes de mergulhar na obra propriamente dita, fazer uma breve referência a A Escrita Certeira da Angústia Feminina, em que Isabel Lucas se debruça sobre os porquês desta colecção, num retrato sucinto, mas muito interessante da autora e da forma como a sua obra ficou demasiado esquecida durante demasiado tempo. É, acima de tudo um complemento, mas permite uma visão mais abrangente do todo, o que, num livro como este, nunca deixa de ser importante.
E porque é de quatro obras que este volume é feito, iremos também por partes.
Este Tempo
É de crónicas o primeiro título a compor este volume, e o que sobressai destas crónicas são sobretudo dois aspectos: a diversidade e a actualidade. Diversidade, porque os temas são muitos e variados, embora sempre concentrados nas noções de vida urbana, social e pessoal. Actualidade porque, embora tenham já algumas décadas e os elementos referidos (como por exemplo a televisão) tenham sido substituídos por outro tipo de novidades, as questões associadas a esta abordagem permanecem hoje tão relevantes como naquele tempo.
Sobressai, ainda, embora não seja uma surpresa, a fluidez e envolvência de uma escrita que, mesmo num registo tão conciso como o destas crónicas, consegue atingir sempre a medida certa. Diz tudo que precisa de dizer, numa visão que é ao mesmo tempo introspectiva, perspicaz e muito, muito cativante. E, através dos pensamentos que expressa, desperta também reflexões em quem as lê.
E, por último, destacam-se ainda as emoções, resultantes não só da vaga poesia da escrita, mas sobretudo dos episódios relatados nestas crónicas: histórias de nostalgia, de saudades da infância, de dificuldades, de velhice, de amor que persiste... de lugares e pessoas em mudança, no fundo, o que, num mundo que é todo ele mudança, é algo que fala estranhamente ao coração.
Seta Despedida
Segue-se um livro de contos, histórias também de vidas marcantes, escritos com a habitual mistura de fluidez e melancolia. Todos num registo mais ou menos intimista, mais ou menos nostálgico e com uma profundidade de emoção que facilmente os torna memoráveis.
E é o primeiro conto que dá título ao livro. Seta Despedida fala de uma mulher cujas rotinas sempre lhe pareceram normais até ao dia em que começou a questionar, bem como dos reflexos do passado que se repercutem no futuro. Um conto pausado e profundamente introspectivo, parece viver mais dos pensamentos e emoções da protagonista do que de acontecimentos propriamente ditos. E, ainda assim, gera uma estranha e cativante afinidade.
O conto seguinte chama-se George e fala de um encontro que desperta reflexões profundas sobre o passar do tempo, a idade, as escolhas e a solidão. Também muito introspectivo e algo ambíguo, não marca propriamente pelas personagens, mas sim pelo que os seus sentimentos têm de universal. Não é George que fica na memória, mas aquilo que sente e pensa.
Vem depois A Absolvição, história de uma relação minada por rumores cruéis e cuja verdade se manifesta num pedido de absolvição às portas da morte. Tudo neste conto é notável, desde a secura das relações familiares à poderosa revelação dos seus motivos, passando, claro, pela cruel precisão com que a verdade rasga a melancolia reinante e a continuidade que é dada ao que parece, ainda assim, ser um fim. É difícil de descrever como uma história tão breve pode conter tanto. Que é memorável, não há dúvidas.
A Alta mostra-nos uma mulher no hospital, confrontada com uma alta iminente que significa perder o seu lar e a sua independência, bem como viver com a certeza de que pouco ou nada lhe resta por que viver. Breve, mas profundo nas emoções que desperta, este curto conto contém em si, sem nunca divagar sobre ela, toda uma profunda reflexão sobre os derradeiros dias de uma longa vida.
Surge depois As Impressões Digitais, história das impressões digitais guardadas numa casa que, deixada por um curto período de tempo, se esvazia inexplicavelmente das memórias. Embora carregado de um simbolismo profundo, é um conto muito concreto, história de uma viagem para reencontrar uma irmã distante e de um regresso que implica perdas maiores. Pausado, mas profundamente emotivo, evoca uma tristeza que é estranhamente memorável.
Vínculo Precário conta a história de um despedimento iminente de um vínculo ainda mais precário com a vida. Breve, mas surpreendentemente introspectivo, apresenta-nos uma mulher cuja vida é ambígua em todos os aspectos, feita de expectativas, de rotinas e, sobretudo, da insinuação de um possível fim. Pode não ser o tipo de conto que desperta empatia imediata, mas as dificuldades que aborda são bem reais.
Segue-se Uma Senhora, história de uma mulher de negócios que, de reputação imaculada, esconde intenções menos sadias para os últimos dias da sua loja. Breve, mas de uma precisão implacável, reflecte, na história de uma mulher de bem que deixa nas mãos da sobrinha as suas segundas intenções, a profunda crueldade dos que se julgam acima dos seus subalternos.
Sentido Único fala de uma mulher que viveu toda a sua vida entre o trabalho e os devaneios sonhados com o que faria se ganhasse a lotaria. Pausado e introspectivo, surpreende pela súbita intensidade do final, mas sobretudo pela vagamente familiar impressão de uma vida passada à espera de impossíveis... enquanto as possibilidades vão passando ao largo.
Vem depois O Grito, história de uma professora que sente toda a vida como vazia e falhada e cuja interacção com o pintor a leva a uma análise mais profunda e dramática dos seus fracassos. Começa com uma aparente inócua interacção social e culmina de forma inesperadamente drástica. E é o contraste entre estas duas facetas que o torna tão impressionante.
Já O Tesouro fala, como o nome indica, de um tesouro enterrado, um tesouro que obcecou gerações e que, como geralmente acontece neste tipo de histórias, não é o que todos esperavam. Não é propriamente imprevisível, mas consegue, ainda assim, cativar sobretudo pela fluidez da escrita e pela precisão com que espelha as reflexões do seu protagonista.
Segue-se A Mancha Verde, vago relato dos derradeiros momentos de uma mulher. Ambíguo, evoca reflexões finais, momentos dispersos, numa narração que é tudo menos linear, a não ser nos últimos instantes. Acabam por ser estes a dar união a uma história que, tão breve, abrange em poucos momentos a vida inteira da sua protagonista,
E surge finalmente Frio, o último conto deste livro e a história da passagem para o outro lado, de um paraíso diferente de tudo o que se imagina, onde as memórias se esbatem... mas talvez não por completo. É provavelmente o mais marcante de todos os contos deste livro, embora pareça ser o mais simples e aquele em que o diálogo desempenha o maior papel. Mantém, porém, a mesma melancolia, a mesma percepção de uma vida que passa e que se esbate... em tudo menos na memória.
A Flor que Havia na Água Parada
Depois das crónicas e dos contos, vem a poesia. Poesia de aspecto simples, com versos curtos, rimados, e uma cadência melódica, mas que contém em si as mesmas profundezas de nostalgia e introspecção das crónicas e dos contos. Versos que se lêem quase como uma melodia e que, talvez também por isso, se entranham facilmente na memória, repletos, ainda assim, de sentidos mais profundos que apelam mais ao coração do que propriamente à percepção. E assim, também este breve conjunto de poemas se torna estranhamente memorável, pelo equilíbrio entre o simples e o profundo, entre a fluidez das palavras e a complexidade labiríntica das emoções que evocam.
Havemos de Rir!
Por fim, o teatro, sob a forma de uma peça relativamente extensa, mas que, além de proporcionar uma leitura muito cativante, facilmente se visualiza representada em palco. A história é a de uma mulher impiedosa que se viu na posse de uma herança inesperada e que quer limpar a sua consciência recorrendo a um plano algo duvidoso. Só que os outros intervenientes no seu plano têm outro tipo de intenções e tudo acaba por seguir um rumo inesperado.
Além da imprevisibilidade da história, são dois os aspectos que sobressaem desta peça: primeiro, a forma como os longos monólogos reflectem com tanta precisão as complexidades interiores das personagens, resultando em falas intensamente poéticas, mas de uma implacabilidade impressionante. E, segundo, a forma como, numa história que vive através do diálogo, há, ainda assim, tanto movimento - de histórias passadas, de dramas pessoais e também de acções que, embora ocorridas à distância, têm um impacto enorme.
O resultado é algo de memorável, uma leitura intensa e viciante, mas com o mesmo travo de melancolia e introspecção que tão característico parece ser das obras desta autora.
Quatro livros num só volume, todos com uma identidade específica e a escrita apaixonante que sempre se espera das obras desta autora, sejam elas em que formato forem. E tudo se resume, porém, numa só palavra, ficando o resto à imaginação de quem lê. Memorável, claro. Porque é disso que se trata. De um livro - ou conjunto de obras - memorável.
Autora: Maria Judite de Carvalho
Origem: Recebido para crítica