terça-feira, 31 de março de 2020

Chuva Miúda (Luis Landero)

Aurora é o tipo de pessoa com quem todos se sentem à vontade para falar. Foi, aliás, assim que conheceu o marido e, por acréscimo, toda a sua estranha e disfuncional família. Mas a súbita ideia de Gabriel de organizar uma festa para celebrar os oitenta anos da mãe vem desequilibrar repentinamente o delicado equilíbrio em que conviveram nos últimos anos. Gabriel, a mãe e as irmãs guardam rancores profundos e versões de uma verdade que, embora discordantes, se tornaram demasiado profundas para ser esclarecidas. E Aurora lá vai ouvindo, à medida que a paz podre se vai dissipando... e o seu coração está cada vez mais cansado...
Provavelmente o aspecto mais impressionante neste livro vem das profundezas de ambiguidade moral que pautam todas as relações entre as personagens. Cada personalidade é vista e traçada por diferentes olhares, que lhes atribuem diferentes características. Cada incidente tem múltiplas versões, ao ponto de parecer impossível descobrir ao certo quem diz a verdade em cada instante. E, por entre tudo isto, há uma única certeza: aquela não é uma família feliz, e é muito particular na sua disfuncionalidade. Entre ressentimentos profundos, segredos guardados durante uma vida inteira e a certeza cada vez mais firme de que ninguém é apenas aquilo que demonstra, tudo neste livro é uma grande surpresa embrulhada em meias verdades.
Também a própria escrita tem o seu quê de fascinante, com o encadeamento das vozes das várias personagens a conferir à narrativa um registo de longa discussão por interposta pessoa. Aurora é sobretudo a ouvinte, mas é também o elo de ligação entre todas estas bizarras personalidades e é através dela que os ressentimentos vêm à tona. E, claro, numa história onde há uma dúvida constante entre o que é verdade e o que é mentira - salvo alguns objectos que se tornam deveras esclarecedores - a forma como Aurora acompanha as diferentes versões faz com que cada uma delas adquira um impacto diferente. Com ênfase especial, claro, nas revelações finais.
Importa ainda regressar a Aurora e ao seu papel aparentemente neutro. É, sobretudo, o receptáculo das queixas, lamentos e histórias da família do marido. Mas é também, provavelmente, a figura que mais intensamente sente. Sobressai, por isso, em dois aspectos: primeiro, no contraste entre a sua calma serenidade e as intervenções exaltadas das outras personagens; depois, na forma como tudo se encaminha para as suas próprias descobertas e consequente resolução final. Aurora é a surpresa maior de uma história cheia de surpresas. E, discreta em tudo, torna-se a mais memorável de todas as personagens.
Começa como um labirinto de versões contraditórias, para depois se gravar na memória com a poderosíssima revelação das verdades possíveis. E é, no fundo, a história de uma ouvinte, da guardiã de todos os segredos, contada com toda a profundidade e intensidade de quem sente mais do que dá a entender. Pausado, complexo, mas brilhante na sua construção, é um livro que exige o seu tempo... mas vale - e muito - cada segundo.

Título: Chuva Miúda
Autor: Luis Landero
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 30 de março de 2020

Super-Narval e Alfaísca (Ben Clanton)

O Narval teve uma ideia. Quer ser um super-herói. Para isso, precisa de um fato jeitoso, de uma parceira imbatível (a Alforreca, claro), de uma identidade secreta e... de um super-poder. Ora, esta parece ser a parte mais difícil, mas o Narval não está disposto a desistir. E entre uma pausa para almoço e algumas piadas para animar a amiga, o Narval pode muito bem vir a descobrir que os super-poderes... vêm de onde menos se espera.
Há algo de absurdamente encantador na facilidade com que estas histórias tão simples e tão leves conseguem arrancar sorrisos a leitores de todas as idades. Sim, são histórias pensadas para os mais novos (quer dizer, os protagonistas são um narval e uma alforreca falantes...), mas há em tudo uma tão grande naturalidade que tudo parece fazer sentido - animais marinhos falantes incluídos. É um livro que, a um olhar adulto, lembra os tempos da fantasia em que tudo era possível. E, agora como antes, consegue fazer sonhar. Imaginar que uma estrela-do-mar pode ser uma estrela que caiu do céu... e que os super-heróis têm realmente super-poderes.
É uma simplicidade que se estende a tudo, desde a história propriamente dita às imagens. E este é um daqueles casos em que simples é bom, pois, além de as imagens simples despertarem uma maior identificação, são personagens fáceis de replicar, o que abre todo um potencial de actividades complementares como desenhar o Narval e inventar novas aventuras para ele e para o seu bando.
E há ainda um outro ponto notável. É que, apesar da brevidade e da simplicidade, há ainda espaço mais do que suficiente para transmitir uma mensagem positiva: de um super-poder que é transmitir alegria aos outros, criar e manter laços de amizade e apoiar os amigos quando estão em baixo. São coisas que se manifestam nesta história da já esperada forma muito simples - o que só reforça a sua importância e naturalidade.
Breve, simples e muito divertido, trata-se, pois, de um livro cativante e bonito para os mais pequenos e não só. Uma história de super-criaturas marinhas, fortes na imaginação e, sobretudo, na amizade.

Autor: Ben Clanton
Origem: Recebido para crítica

domingo, 29 de março de 2020

A Cor Vermelha (Jaime Soares)

Vermelho. Cor do sangue, do coração, da tentação, da paixão... e de tantos objectos quotidianos que, vistos da maneira certa, adquirem novos significados. É a cor vermelha o mote para os dois contos que constituem este pequeno livro. Pequeno, mas de complexidades insuspeitas, por cada uma destas duas histórias esconde vidas interiores complexas e onde cada gesto pode muito bem conter sentidos ocultos.
Mercadoria parte de uma peculiar sessão de apresentação dos livros de uma escritora para revelar os meandros mais sombrios da sua vida e dos que com ela convivem. É um conto relativamente extenso e, sobretudo, com um ambiente global quase onírico, ao ponto de, por vezes, ser difícil perceber o enquadramento das diferentes visões e acontecimentos na linha temporal, real ou pensada. É curioso, ainda assim, notar como esta ambiguidade global parece conferir a toda a história uma enigmática aura de mistério, em que ninguém se dá realmente a conhecer e em que cada uma das personagens - mas principalmente a escritora - esconde na sua imagem pública complexidades insuspeitas. Junte-se a isto a escrita introspectiva e contrastante, onde uma melancolia quase poética se vê subitamente rasgado por laivos de crueldade e também de erotismo - um pouco como a presença da cor vermelha ao longo de toda a história - e a imagem que fica é a de uma história algo densa, mas definitivamente memorável.
Estádio conta a história de uma futebolista da selecção e dos muitos caminhos da sua vida para além do jogo de futebol a que se dirige. Também um pouco ambíguo, funciona, em certa medida, como um espelho do anterior, opondo à vida interior da escritora uma vida exterior exuberante e pública. Mantêm-se, ainda assim, vários pontos em comum, desde a complexidade que entrelaça imagens interiores e experiências exteriores ao percurso pessoal rasgado por laivos de perigo e de erotismo - e, mais uma vez, de vermelho. Surpreende ainda o facto de a protagonista não ser propriamente o tipo de figura que gera empatia imediata, mas, ainda assim, estar no cerne de uma história bastante envolvente.
Cada um dos contos é um todo completo, mas existe, ainda assim, uma certa impressão de coesão, não só pelo vermelho que une as duas histórias, mas pela sensação de que ambas as protagonistas são, no fundo, pessoas normais, mas únicas à sua maneira. Dificilmente poderiam ser mais diferentes, mas ambas pertencem aqui. E, assim, a imagem que fica é a de que os dois contos, embora totalmente independentes, se completam.
Breve, mas surpreendentemente complexo, trata-se, pois, de um livro que, apesar das suas pouco mais de cinquenta páginas, deixa uma marca maior do que a do seu tempo de leitura. Pode ser um pouco denso, por vezes, mas é também este delicado equilíbrio entre a complexidade e as coisas simples que torna estas duas histórias memoráveis. E isso basta - sem dúvida alguma - para fazer delas uma boa leitura.

Título: A Cor Vermelha
Autor: Jaime Soares
Origem: Recebido para crítica

sábado, 28 de março de 2020

Obras Completas, Volume V (Maria Judite de Carvalho)

Crónicas, contos, poesia e teatro. Relatos de um tempo que já não é o presente, mas permanece absolutamente actual, histórias de vidas profundas e complexas, versos que falam à alma e uma história para imaginar no palco da mente. Tudo isto se esconde nas páginas deste volume que, sendo relativamente extenso, consegue, na sua diversidade, nunca cair na repetição.
E, em jeito de ponto de partida, importa, antes de mergulhar na obra propriamente dita, fazer uma breve referência a A Escrita Certeira da Angústia Feminina, em que Isabel Lucas se debruça sobre os porquês desta colecção, num retrato sucinto, mas muito interessante da autora e da forma como a sua obra ficou demasiado esquecida durante demasiado tempo. É, acima de tudo um complemento, mas permite uma visão mais abrangente do todo, o que, num livro como este, nunca deixa de ser importante.
E porque é de quatro obras que este volume é feito, iremos também por partes.

Este Tempo

É de crónicas o primeiro título a compor este volume, e o que sobressai destas crónicas são sobretudo dois aspectos: a diversidade e a actualidade. Diversidade, porque os temas são muitos e variados, embora sempre concentrados nas noções de vida urbana, social e pessoal. Actualidade porque, embora tenham já algumas décadas e os elementos referidos (como por exemplo a televisão) tenham sido substituídos por outro tipo de novidades, as questões associadas a esta abordagem permanecem hoje tão relevantes como naquele tempo.
Sobressai, ainda, embora não seja uma surpresa, a fluidez e envolvência de uma escrita que, mesmo num registo tão conciso como o destas crónicas, consegue atingir sempre a medida certa. Diz tudo que precisa de dizer, numa visão que é ao mesmo tempo introspectiva, perspicaz e muito, muito cativante. E, através dos pensamentos que expressa, desperta também reflexões em quem as lê.
E, por último, destacam-se ainda as emoções, resultantes não só da vaga poesia da escrita, mas sobretudo dos episódios relatados nestas crónicas: histórias de nostalgia, de saudades da infância, de dificuldades, de velhice, de amor que persiste... de lugares e pessoas em mudança, no fundo, o que, num mundo que é todo ele mudança, é algo que fala estranhamente ao coração.

Seta Despedida

Segue-se um livro de contos, histórias também de vidas marcantes, escritos com a habitual mistura de fluidez e melancolia. Todos num registo mais ou menos intimista, mais ou menos nostálgico e com uma profundidade de emoção que facilmente os torna memoráveis.
E é o primeiro conto que dá título ao livro. Seta Despedida fala de uma mulher cujas rotinas sempre lhe pareceram normais até ao dia em que começou a questionar, bem como dos reflexos do passado que se repercutem no futuro. Um conto pausado e profundamente introspectivo, parece viver mais dos pensamentos e emoções da protagonista do que de acontecimentos propriamente ditos. E, ainda assim, gera uma estranha e cativante afinidade.
O conto seguinte chama-se George e fala de um encontro que desperta reflexões profundas sobre o passar do tempo, a idade, as escolhas e a solidão. Também muito introspectivo e algo ambíguo, não marca propriamente pelas personagens, mas sim pelo que os seus sentimentos têm de universal. Não é George que fica na memória, mas aquilo que sente e pensa.
Vem depois A Absolvição, história de uma relação minada por rumores cruéis e cuja verdade se manifesta num pedido de absolvição às portas da morte. Tudo neste conto é notável, desde a secura das relações familiares à poderosa revelação dos seus motivos, passando, claro, pela cruel precisão com que a verdade rasga a melancolia reinante e a continuidade que é dada ao que parece, ainda assim, ser um fim. É difícil de descrever como uma história tão breve pode conter tanto. Que é memorável, não há dúvidas.
A Alta mostra-nos uma mulher no hospital, confrontada com uma alta iminente que significa perder o seu lar e a sua independência, bem como viver com a certeza de que pouco ou nada lhe resta por que viver. Breve, mas profundo nas emoções que desperta, este curto conto contém em si, sem nunca divagar sobre ela, toda uma profunda reflexão sobre os derradeiros dias de uma longa vida.
Surge depois As Impressões Digitais, história das impressões digitais guardadas numa casa que, deixada por um curto período de tempo, se esvazia inexplicavelmente das memórias. Embora carregado de um simbolismo profundo, é um conto muito concreto, história de uma viagem para reencontrar uma irmã distante e de um regresso que implica perdas maiores. Pausado, mas profundamente emotivo, evoca uma tristeza que é estranhamente memorável.
Vínculo Precário conta a história de um despedimento iminente de um vínculo ainda mais precário com a vida. Breve, mas surpreendentemente introspectivo, apresenta-nos uma mulher cuja vida é ambígua em todos os aspectos, feita de expectativas, de rotinas e, sobretudo, da insinuação de um possível fim. Pode não ser o tipo de conto que desperta empatia imediata, mas as dificuldades que aborda são bem reais.
Segue-se Uma Senhora, história de uma mulher de negócios que, de reputação imaculada, esconde intenções menos sadias para os últimos dias da sua loja. Breve, mas de uma precisão implacável, reflecte, na história de uma mulher de bem que deixa nas mãos da sobrinha as suas segundas intenções, a profunda crueldade dos que se julgam acima dos seus subalternos.
Sentido Único fala de uma mulher que viveu toda a sua vida entre o trabalho e os devaneios sonhados com o que faria se ganhasse a lotaria. Pausado e introspectivo, surpreende pela súbita intensidade do final, mas sobretudo pela vagamente familiar impressão de uma vida passada à espera de impossíveis... enquanto as possibilidades vão passando ao largo.
Vem depois O Grito, história de uma professora que sente toda a vida como vazia e falhada e cuja interacção com o pintor a leva a uma análise mais profunda e dramática dos seus fracassos. Começa com uma aparente inócua interacção social e culmina de forma inesperadamente drástica. E é o contraste entre estas duas facetas que o torna tão impressionante.
O Tesouro fala, como o nome indica, de um tesouro enterrado, um tesouro que obcecou gerações e que, como geralmente acontece neste tipo de histórias, não é o que todos esperavam. Não é propriamente imprevisível, mas consegue, ainda assim, cativar sobretudo pela fluidez da escrita e pela precisão com que espelha as reflexões do seu protagonista.
Segue-se A Mancha Verde, vago relato dos derradeiros momentos de uma mulher. Ambíguo, evoca reflexões finais, momentos dispersos, numa narração que é tudo menos linear, a não ser nos últimos instantes. Acabam por ser estes a dar união a uma história que, tão breve, abrange em poucos momentos a vida inteira da sua protagonista,
E surge finalmente Frio, o último conto deste livro e a história da passagem para o outro lado, de um paraíso diferente de tudo o que se imagina, onde as memórias se esbatem... mas talvez não por completo. É provavelmente o mais marcante de todos os contos deste livro, embora pareça ser o mais simples e aquele em que o diálogo desempenha o maior papel. Mantém, porém, a mesma melancolia, a mesma percepção de uma vida que passa e que se esbate... em tudo menos na memória.

A Flor que Havia na Água Parada

Depois das crónicas e dos contos, vem a poesia. Poesia de aspecto simples, com versos curtos, rimados, e uma cadência melódica, mas que contém em si as mesmas profundezas de nostalgia e introspecção das crónicas e dos contos. Versos que se lêem quase como uma melodia e que, talvez também por isso, se entranham facilmente na memória, repletos, ainda assim, de sentidos mais profundos que apelam mais ao coração do que propriamente à percepção. E assim, também este breve conjunto de poemas se torna estranhamente memorável, pelo equilíbrio entre o simples e o profundo, entre a fluidez das palavras e a complexidade labiríntica das emoções que evocam.

Havemos de Rir!

Por fim, o teatro, sob a forma de uma peça relativamente extensa, mas que, além de proporcionar uma leitura muito cativante, facilmente se visualiza representada em palco. A história é a de uma mulher impiedosa que se viu na posse de uma herança inesperada e que quer limpar a sua consciência recorrendo a um plano algo duvidoso. Só que os outros intervenientes no seu plano têm outro tipo de intenções e tudo acaba por seguir um rumo inesperado.
Além da imprevisibilidade da história, são dois os aspectos que sobressaem desta peça: primeiro, a forma como os longos monólogos reflectem com tanta precisão as complexidades interiores das personagens, resultando em falas intensamente poéticas, mas de uma implacabilidade impressionante. E, segundo, a forma como, numa história que vive através do diálogo, há, ainda assim, tanto movimento - de histórias passadas, de dramas pessoais e também de acções que, embora ocorridas à distância, têm um impacto enorme.
O resultado é algo de memorável, uma leitura intensa e viciante, mas com o mesmo travo de melancolia e introspecção que tão característico parece ser das obras desta autora.

Quatro livros num só volume, todos com uma identidade específica e a escrita apaixonante que sempre se espera das obras desta autora, sejam elas em que formato forem. E tudo se resume, porém, numa só palavra, ficando o resto à imaginação de quem lê. Memorável, claro. Porque é disso que se trata. De um livro - ou conjunto de obras - memorável.

Autora: Maria Judite de Carvalho
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 27 de março de 2020

Saga - Volume Oito (Brian K. Vaughan e Fiona Staples)

Depois dos últimos acontecimentos em Phang, que resultaram numa fuga dramática e de consequências devastadoras, Hazel e a sua família continuam a percorrer o universo. O que deveria ter sido o irmão de Hazel continua no ventre de Alana, mas morto, e é preciso fazer alguma coisa para salvar a vida da própria Alana. Mas o planeta periférico onde a única solução se encontra esconde também os seus perigos. Pelo menos, a família está novamente junta, mas quanto aos seus aliados, há tensões que precisam de ser resolvidas. E os inimigos... bem, também eles se encontram em situações bastante delicadas...
É absurdamente impressionante a forma como cada novo volume consegue, ao mesmo tempo, gerar toda uma sucessão de surpresas e despertar uma arrebatadora sensação de familiaridade. É como regressar a um local - e a um conjunto de pessoas - que nos são familiares e queridas, partir à aventura com elas e, pelo caminho, descobrir profundidades de emoção difíceis de imaginar. Sim, porque, além de todas as suas muitas qualidades, a capacidade de emocionar é fortíssima nesta série, seja pelas complexidades da vida familiar dos protagonistas, seja pelas circunstâncias em que os seus aliados se vêem envolvidos, seja ainda pela certeza cada vez maior de que ninguém está realmente seguro nestes livros.
Outro aspecto que se tem vindo a expandir constantemente é a diversidade de cenários e habitantes que povoam este universo. Cada novo planeta traz consigo novas e peculiares criaturas e há algo de fascinante ao virar de cada página, não só pelos cenários impressionantes, mas também pelos novos elementos. Cada espécie tem as suas especificidades e a forma como são retratadas na arte é algo de genial, com a sua mistura de estranheza e equilíbrio. São bizarros? São. Mas pertencem ali. E, juntando a isto a enorme expressividade dos rostos (o que é particularmente notável em personagens como o Sir Robot, cujo rosto é... bem... peculiar), o resultado é como que um mergulho de cabeça neste vastíssimo universo.
Há ainda um outro ponto que importa destacar e que tem vindo também a ganhar importância. A história é profundamente pessoal, mas há perspectivas e visões mais vastas. A posição de Marko sobre a violência é toda uma presença marcante ao longo de toda a série, mas juntam-se-lhe agora novas perspectivas. Além de que todo o ponto de partida deste volume é uma fortíssima base para a reflexão sobre onde começa a vida e as diferentes - e mais ou menos extremadas - posições que existem sobre o assunto.
Oitavo volume - e, ao mesmo tempo que tudo muda, tudo se mantém. Mudam as circunstâncias, as relações, os perigos e as aventuras. Mantém-se a força, a profundidade, a beleza da arte e a enorme empatia e emoção que esta história desperta. E a soma das partes tem, por isso, algo de novo... mas também todo o brilhantismo habitual. Maravilhoso... como sempre.

Autores: Brian K. Vaughan e Fiona Staples
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 26 de março de 2020

O Que Estás a Fazer com a tua Vida? (J. Krishnamurti)

O que somos, o que queremos, como vivemos. O medo, o desejo, o amor, as relações. A vida, em suma, em todas as suas facetas e grandes questões. Tudo isto está presente neste livro, que, embora relativamente breve, reflecte uma vasta e complexa filosofia que, debruçando-se sobre todos os grandes temas, reflecte uma forma muito única de pensar até o próprio pensamento.
Uma das primeiras coisas que importa referir sobre este livro é que, embora estando repleto de conselhos e ideias interessantes sobre a forma de conduzir a vida, está muito longe de ser o habitual livro de auto-ajuda. É muito mais vasto, muito mais complexo e tem uma concepção muito mais filosófica das coisas do que a dos meros conselhos práticos. Tem a sua medida de espiritualidade, como é evidente, mas debruça-se, sobretudo, sobre o pensamento. Serve de orientação? Possivelmente, e em vários aspectos. Mas é a visão global, mais do que os conselhos específicos, o que fica no pensamento depois de terminada a leitura.
O próprio texto reflecte esta complexidade, o que significa que, apesar das suas menos de duzentas páginas, este é um livro que exige algum tempo e concentração para assimilar, não só devido à complexidade das ideias, mas à densidade da própria escrita. Ainda assim, é tempo que vale a pena, e não apenas porque o conteúdo é, em si, muito interessante, mas porque serve também de ponto de partida para longas e vastas reflexões. É um livro que não se esgota em si mesmo, servindo de base a reflexões posteriores. Afinal, o próprio título é uma pergunta. E das grandes.
Não é propriamente um livro fácil de descrever, tendo em conta a vastidão de ideias que contém. Mas uma coisa é certa: transmite uma visão muito particular e repleta de material para reflexão. Vasto nas ideias, ainda que relativamente breve na forma, leva o seu tempo a assimilar, é certo. Mas vale a pena. Sem dúvida alguma.

Autor: J. Krishnamurti
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 25 de março de 2020

Nothing Important Happened Today (Will Carver)


Quando o dia terminar, nove pessoas ter-se-ão suicidado, enforcando-se numa ponte. Trinta e duas pessoas terão assistido. E ninguém entenderá. Não parece existir qualquer ligação entre elas. Nunca se viram antes. Mas uma misteriosa mensagem identifica-os a todos como membro de um estranho grupo. Não tarda a que comecem a ser referidos como um culto suicida, cujas acções e mensagem são replicadas por todo o mundo. Mas quem são? Como podem ser um culto se nunca se conheceram, se não existe um líder? E serão os únicos, os últimos... ou apenas nove de muitos?
Não existe neste livro uma única palavra ou ideia que não seja impressionante. Começa com o conceito - um culto suicida sem líder e cujos membros nunca se encontram. Depois, a voz da mente invisível por detrás de tudo isto - misteriosa, perturbadora, fazendo com que tudo pareça tão fácil que poderia acontecer em qualquer lugar. Em seguida, o próprio enredo, com o drama e a intensidade dos suicidos a contrastar com a devastação pessoal das muitas vidas envolvidas, com a precisão maquiavélica do criador e com a visão de um mundo onde algo assim poderia passar desapercebido durante tanto tempo. E, finalmente, a escrita, que parece gravar-nos na mente cada palavra e episódio com a mesma implacabilidade que o líder invisível utiliza com os seus alegados seguidores.
Tudo parece estar moldado num perfeito e absoluto equilíbrio. Ainda assim, isto não implica um enredo puramente racional. Há emoções fortes em toda a parte. Da aparente escuridão que move os diferentes membros do culto à perturbadora visão que deu origem a todos os actos deste suposto culto, tudo é intenso e inesperado. E há também fortes laços de empatia, o que é particularmente notável numa história que envolve tantas personagens.
Mas tudo tem de acabar, o que é também um facto muito importante no desenvolvimento desta história. Tudo é planeado com um derradeiro acto em mente, encenado pela mesma mente perturbadoramente itneligente. E, à medida que novas personagens se manifestam e novos e mais sombrios actos começam a correr, há também um crescendo de força e fúria que torna o final deste livro absolutamente devastador. E perfeito para tudo o que aconteceu antes.
Algo de importante aconteceu hoje. Li este livro. E, com a sua escrita brilhante, o seu equilíbrio preciso e avassalador entre a escuridão interior e exterior e um enredo tão misterioso e cheio de surpresas como a voz que nos conta a sua história, é, sem dúvida, um livro para nunca esquecer. Brilhante, impressionante, espantoso. Um verdadeiro prodígio.

Autor: Will Carver
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 24 de março de 2020

Histórias da Justiça (António Canêdo Berenguel)

Das notas falsas escondidas nas ceroulas ao desconhecido que caminhava nu a arder, passando por outros casos tão caricatos e peculiares que é difícil imaginá-los perante um tribunal dos dias de hoje. São muitas as histórias da justiça retratadas neste livro: e se algumas delas arrancam gargalhadas, muitas servem também de base para reflexão.
Uma das primeiras coisas que importa referir sobre este livro é que os muitos casos que conta são de finais do século XIX e inícios do século XX, o que significa que os hábitos sociais e mentalidades eram muito diferentes daquilo que são hoje. Mas é precisamente este ponto que faz com que estas histórias, contadas de forma tão simples e concisa, sirvam para grandes reflexões. O que mudou na justiça e na sociedade? Na forma como certos crimes são encarados, nas normas da convivência social, no papel e nos direitos da mulher na sociedade. Não se debruçando sobre grandes reflexões - ainda que surjam, por vezes, comentários particularmente certeiros, - o autor deixa ao leitor a tarefa de ponderar sobre que tipo de meditações se podem retirar destas situações mais ou menos bizarras.
Importa também referir que muitos destes breves casos deixam questões em aberto. É, aliás, natural que assim seja, pois nem todas as histórias - ou a sua totalidade - vão parar aos registos dos tribunais. E, sendo certo que fica uma certa curiosidade insatisfeita, como, aliás, o próprio autor observa ao questionar o que aconteceu, por exemplo, às ditas ceroulas, também é certo que os elementos essenciais estão lá. Conta-se a parte que disse respeito à justiça. O resto... bem, o resto é secundário.
E, claro, há também um contexto que emerge apesar da brevidade das histórias. Manifesta-se através de coisas como a falta de licença para um isqueiro ou uma bicicleta, por um pedido oportuno da PVDE para deitar as mãos a uma condenada uma vez cumprida a sua pena por transporte de material "subversivo", pela abordagem de certos intervenientes à questão da inimputabilidade. Nada disto é explorado a fundo, mas os elementos básicos estão lá, e são muito interessantes.
O que fica é, pois, a impressão de uma leitura leve e divertida quanto baste, mas também com um importante lado sério a acompanhar. São histórias de uma justiça antiga - e, muitas vezes, caricata. Mas são também muito interessantes para ponderar o presente...

Autor: António Canêdo Berenguel
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 23 de março de 2020

Avó Sarilho: A Estrela da Festa (Sophy Henn)

Está a chegar o dia da feira, e a Jeanie e os amigos estão super entusiasmados com as muitas bancas, diversões e, sobretudo, concursos. Mas, embora todos tenham uma certa aspiração a ganhar, cedo se torna evidente que não será assim tão fácil. Principalmente porque a avó da Georgina, a arqui-inimiga da Jeanie, é a jurada principal, apesar de a neta participar em quase todos os concursos. Ora, o resultado torna-se previsível... mas só relativamente aos prémios. É que a Avó Sarilho está a assistir a tudo... e se há coisa que ela não suporta, são injustiças.
Muito à semelhança do volume anterior, é na mistura entre simplicidade e humor que está a principal força deste volume. Simplicidade sobretudo no estilo de escrita, que narra os acontecimentos de forma directa e eficaz (e particularmente certeira, tendo em conta a importância das palavras em alguns dos... anúncios da feira). Humor basicamente em tudo, desde as peculiaridades das personagens aos episódios mais caricatos e à forma como, das situações mais improváveis, surge sempre algo de bom.
Sendo um livro destinado a um público jovem, é também apenas natural que a história seja relativamente simples e concisa. Mas há um desenvolvimento interessante neste segundo volume. Ao contar uma única história - ainda que repleta de episódios peculiares, - abre-se espaço para um maior desenvolvimento das personagens. E consegue, além disso, transmitir uma mensagem que, no fundo, é simples - a importância da justiça - de forma não demasiado simplista. A vida nem sempre é justa - como demonstram os múltiplos prémios da Georgina. Mas... tudo tem consequências. E, neste caso, as consequências são deliciosamente divertidas.
Importa ainda destacar a irreverência das ilustrações que, além de complementarem na perfeição o texto, dão expressividade e intensidade às emoções mais fortes das personagens - sobretudo da Avó Sarilho. Além de tornarem o livro mais bonito, acrescentam vida à história, o que, num livro como este, reforça ainda mais a envolvência da leitura.
Leve, divertido e emocionante, trata-se, pois, de um bom livro para dar a descobrir aos mais novos - e, independentemente da idade, para dar umas boas gargalhadas com ele. Simples quanto baste, mais cheio de episódios engraçados, é o tipo de livro capaz de cativar leitores de todas as idades. Sarilhos? Oh, sim... mas dos bons.

Autora: Sophy Henn
Origem: Recebido para crítica

domingo, 22 de março de 2020

Caravaggio - O Indulto (Milo Manara)

Ferido na sequência de uma rixa que fez pender sobre ele uma sentença de morte, Michelangelo Merisi foge à pressa de Roma e refugia-se em Nápoles. Aí, com a ajuda dos seus poucos, mas poderosos aliados, dedica-se a pintar furiosamente, na esperança de que os seus quadros lhe possam valer o indulto papel. Mas o seu temperamento intempestivo não se desvaneceu com a fuga e, na sua busca incessante por um caminho para o indulto, faz novos e poderosos inimigos ao mesmo tempo que cria as suas maiores obras...
Muito à semelhança do primeiro volume, há dois aspectos fundamentais a sobressair deste livro. Um é a forma como a arte parece enquadrar com naturalidade os quadros de Caravaggio, ao ponto de parecer que tudo pertence ao mesmo mundo, tal é a harmonia e o contraste entre a forma como o autor representa os modelos e as figuras originais da obra acabada. Outro é a construção do protagonista, brilhante e intempestivo, irascível e vulnerável, obcecado pela sua arte e pela graça que em vão se esforça por alcançar.
E é aqui que surge algo de novo: a forma como a obsessão de Merisi pelo indulto é reflectida. Há a determinação subjacente às muitas deambulações em busca de uma hipótese, com a abertura que isso implica a vastíssimos cenários. Há os meandros sombrios que pairam na mente do protagonista, com a sombra do carrasco a ditar-lhe os movimentos. E há o fundo contraste entre o amor transbordante com que é recebido às claras e as sombras das intrigas que se vão tecendo nas trevas. Tudo isto gera contrastes poderosos, não só na evolução da história, mas também na cor, que parece reflectir na perfeição este equilíbrio de forças.
E, claro, há ainda um outro equilíbrio, entre a brevidade do livro e a vastidão da história do seu protagonista. É uma leitura rápida, mas, entre a vastidão da arte e a precisão dos momentos escolhidos, todo o percurso essencial está lá. Além disso, ainda que as figuras secundárias surjam como histórias de passagem, criam elos marcantes e de forte peso emocional. Assim, a brevidade serve o seu propósito: realçar o essencial e reforçar o impacto dos grandes momentos.
Belíssimo na arte, fascinante na história e eficaz na construção do seu protagonista, trata-se, pois, de um segundo volume perfeitamente à altura das grandes expectativas geradas pelo primeiro. E de uma leitura memorável, claro está.

Autor: Milo Manara
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 20 de março de 2020

Os Dias são Assim... (Ana Oliveira e Isabel Pelaez)

Os dias são assim. Feitos de amores que nascem e se desfazem, deixando para trás apenas porquês sem resposta. De gestos de compaixão ante os que todos os outros consideram invisíveis. De afectos que desabrocham nos pontos onde se menos se espera e de traumas passados que se revelam no mais simples acto de cuidado. São assim, de memórias, de histórias para contar. Histórias como as que habitam este pequeno livro.
Um dos principais aspectos a sobressair desta leitura é o delicado equilíbrio entre os vários elementos que o compõem. Cada história é um todo independente, ao ponto de quase justificar uma análise individual, mas, à medida que a leitura avança, reconhecem-se inesperados pontos em comum. Há como que uma nostalgia, uma visão introspectiva das vidas que povoam estes contos, que faz com que o todo seja maior do que a soma das partes. Além disso, as ilustrações que acompanham cada conto reforçam também esta sensação de unidade, o que faz com que, ainda que cada uma destas vidas seja única em si mesma, elas pertençam realmente juntas.
Outro elemento a sobressair é a escrita, que, na sua brevidade e simplicidade, se mostra particularmente eficaz em transmitir o essencial. É certo que, sendo histórias breves, fica alguma curiosidade insatisfeita relativamente a algumas das personagens, mas a verdade é que nada falta no percurso essencial. O que cada conto mostra é uma parte de uma vida, com toda a vastidão de emoções associadas a esse momento, e essa parte do percurso tem realmente todo o impacto de que precisa. O resto fica à imaginação do leitor.
Importa ainda regressar uma vez mais ao aspecto visual, pois as ilustrações, nos seus tons de cinzento, conseguem, ainda assim, reforçar em muito a vida da história. São, tal como o texto, relativamente simples, mas ajustam-se na perfeição à fluidez das palavras. E o resultado é um livro mais bonito, não só no conteúdo das histórias, mas também na força que as ilustrações vêm acrescentar.
Breve, simples e muito emotivo, trata-se, pois, de um conjunto de histórias que é mais do que a vida independente das suas personagens. Um retrato da vida nas suas mais simples - e tocantes - facetas, feito de forma muito simples, mas também muito cativante. Os dias são assim... simples, mas escondendo complexidades insuspeitas. As do coração, sobretudo.

Autoras: Ana Oliveira e Isabel Pelaez
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 19 de março de 2020

Old Scores (Will Thomas)

Dado o seu contacto recente com a vítima, bem como a sua proximidade no momento em que o crime ocorreu, Cyrus Barker é o principal suspeito na morte de um diplomata japonês. Detido e tratado com brutalidade, acaba por ser estranhamente libertado devido à intervenção do seu fiel assistente, Thomas Llewelyn. Mas o mistério mantém-se e o substituto do embaixador contrata os serviços de Barker para descobrir quem foi o verdadeiroo assassino. O que não é, ainda assim, tarefa fácil. Barker e Llewelyn necessitarão de toda a sua astúcia para descobrir as verdades. Pois os japoneses trazem intenções secretas - e Barker tem velhas contas a ajustar com um deles.
Um dos primeiros aspectos a salientar neste livro é que, apesar de ser o novo volume da série, facilmente se lê sem qualquer conhecimento dos volumes anteriores. Tem, porém, um estranho e agradável efeito secundário: o de chegar ao fim com vontade de ler todos os outros volumes. Cyrus Barker é um protagonista fascinante, com o seu passado conturbado, a sua personalidade intrigante e cismática e a sua mente estranhamente brilhante. Thomas, por outro lado, mostra uma lealdade particularmente impressionante, o que é especialmente importante tendo em conta o tipo de circunstâncias em que esta dupla tende a envolver-se. E assim, uma vez que este é apenas um dos seus muitos casos juntos, é impossível não querer conhecer os outros - principalmente tendo em conta a sólida teia de relações que Barker parece ter construído à sua volta.
Existe também um delicado e fascinante equilíbrio entre leveza e perigo, humor e intriga. Todo o caso é brilhante e a resolução final é particularmente intensa. Mas há uma força especial em misturar todas estas intrigas e mistérios com uma série de fortes relações pessoais, um delicioso sentido de humor (Thomas é um narrador brilhantes) e alguns vislumbres de vulnerabilidade que funcionam como uma viva lembrança de que Cyrus Barker é, afinal, imensamente humano.
E, claro, é importante olhar para o cenário propriamente dito, com os seus vincados contrastes. Da tranquila serenidade de um jardim japonês ao inevitável caos de um estabelecimento feito para conspirar, há uma envolvente mistura de luz e escuridão que se reflecte nas próprias personagens. Existe ainda uma certa medida de hábitos e rituais que, dada a forma como a história termina, é particularmente notável.
Intrigante, intenso e fascinante, trata-se, pois, de um livro que, de natureza algo sherlockiana, cedo revela as verdadeiras profundezas da sua identidade própria. Personagens fascinantes, um enredo brilhante e um equilíbrio perfeito entre leveza e perigo fazem desta leitura um livro para recordar.

Título: Old Scores
Autor: Will Thomas
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 17 de março de 2020

Diário de Uma Miúda Como Tu - Cabeça nas Nuvens (Maria Inês Almeida e Manel Cruz)

O ano não podia ter acabado melhor para a Francisca, com o pedido de namoro do rapaz em quem há muito está interessada. Agora, o novo ano começa com o seu primeiro namorado - e com todos os suspiros, borboletas no estômago e gestos românticos piegas que isso acarreta. Mas a vida da Francisca não se resume ao Pedro. Tem as suas actividades, as amigas, o seu canal dedicado a salvar o ambiente. E, claro, a temível necessidade de não tirar negativa a matemática. Será que consegue conciliar tudo?
Parte do encanto de ler este género de livros enquanto adulta é a facilidade com que estas histórias simples e leves nos transportam para tempos mais inocentes. É que, mesmo não pertencendo já ao público a que este livro se destina, facilmente vêm à memória os tempos em que o maior drama da nossa vida era ter de comer as verduras ou a preocupação em fazer os trabalhos de casa. É como que uma viagem pela nostalgia, associada à nítida percepção de um cuidado em transmitir aos mais novos a leveza do seu tempo e a importância das grandes questões actuais.
A Francisca é uma ambientalista e isso é uma parte importante das suas histórias. Mas é interessante a forma como a autora conjuga esta dedicação - bem como a mensagem que lhe está associada - à história do que é resumidamente uma vida normal. A mensagem é passada de forma clara e precisa, mas não domina por completo o livro, abrindo espaço para as muitas e divertidas peripécias da vida escolar, familiar - e agora também romântica! - de uma personagem que cativa especialmente pela sua mistura de irreverência e responsabilidade.
Importa ainda - e como sempre, aliás - fazer referência às ilustrações, que, além de conferirem ao livro o verdadeiro aspecto de um diário, dão mais vida a alguns dos episódios mais caricatos da história. Tudo - texto e ilustrações - é simples, mas é precisamente isso que o torna tão eficaz. É, afinal, o diário de uma miúda de dez anos - e facilmente o visualizamos como tal.
Pode não haver muito de novo para dizer, já que, ao quarto volume desta divertida série, mantêm-se as qualidades essenciais. Mas é exactamente isso que a torna tão interessante: mesma protagonista, mesmas peripécias, mesma vida normal... e, ainda assim, nunca deixa de surpreender e cativar. Vale, pois, muito a pena continuar a acompanhar os diários da Francisca.

Autores: Maria Inês Almeida e Manel Cruz
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 16 de março de 2020

As Regras para a Vida (Florence Scovel Shinn)

Não se obtém aquilo que se deseja. Recebe-se aquilo que se atrai. É este o ponto de partida deste livro que, debruçando-se sobre o poder da vontade, a chamada lei da atracção e a força da fé, explora o poder da palavra na concretização de desejos e vontades considerados como "de direito divino".
Uma das primeiras coisas que importa referir sobre este livro é que a fé é efectivamente a sua força motriz. Ou seja, é necessária uma certa medida de crença para realmente assimilar o tipo de ideias que expõe. Ora, tendo isto em conta, são possíveis duas impressões distintas: para os crentes, a possibilidade de retirar ideias e de pôr a fé ao serviço de uma felicidade maior; para os cépticos, uma teoria interessante, acompanhada por vários exemplos peculiares, ainda que não necessariamente fáceis de assimilar.
É também um livro muito breve, o que significa que não há grande espaço para explicações e teorias. A autora fala da sua experiência e do seu contacto com os outros. Fica, por isso, uma certa curiosidade insatisfeita - mais uma vez, provavelmente sobretudo aos olhares mais cépticos - relativamente aos métodos e à origem das ideias, sendo, ainda assim, também certo que a simplicidade é premeditada. É um livro pensado para expor o essencial - as regras, a forma de estar - e, nesse sentido, a ideia global é bastante clara.
Há ainda um último aspecto a retirar - também na mesma dualidade entre cepticismo e crença - e este tem a ver com o valor do pensamento positivo. Acredite-se ou não em Deus, na lei da atracção, naquilo a que a autora chama o "Cristo interior", a verdade é que há uma parte da mensagem que mantém todo o seu impacto: o valor do optimismo, da aspiração ao melhor, da determinação em alcançar. E é essa a imagem que fica na memória uma vez terminada a leitura. E basta, sem dúvida.
Simples, conciso e com uma visão muito pessoal, deixará provavelmente uma marca maior nas pessoas que tiverem um certo nível de fé. Mas, independentemente disso, não deixa de ser uma leitura interessante - e uma visão muito positiva da vida.

Autora: Florence Scovel Shinn
Origem: Recebido para crítica

domingo, 15 de março de 2020

Saga - Volume Sete (Brian K. Vaughan e Fiona Staples)

Marko e Alana reencontraram finalmente a filha e dirigem-se agora ao próximo local seguro onde poderão abrigar-se. Mas isso implica uma paragem para reabastecer, e Phang, o lugar mais próximo disponível, é um sítio delicado onde ficar. Durante muito tempo, o cometa foi acumulando refugiados da interminável guerra entre Coroa e Terravista, e agora há algo de dramático prestes a acontecer. É neste contexto que uma paragem supostamente breve dá lugar a seis meses de estadia - com a descoberta de novas amizades e a certeza terrível e inabalável de que, no fim, as coisas terão sempre de dar para o torto. Afinal, a perseguição não acabou...
Sétimo volume: as mesmas personagens, as mesmas forças em colisão, a mesma luta constante por manter uma família impossível quando todos a querem destruir. E, ainda assim, há sempre algo de novo, o que faz com que uma outra coisa seja comum: o fascínio. É maravilhoso entrar num novo volume desta série, reencontrar personagens que já se tornaram familiares e queridas e vê-las passar por novos lugares, relações e adversidades. Junte-se a este agradável reencontro a sempre constante sucessão de perigos, confrontos e revelações e o resultado é, como sempre, deslumbrante.
Sendo já uma fase tão avançada de uma série em que tanta coisa aconteceu, é impossível dizer demasiado sem estragar algumas das muitas surpresas. Mas há dois aspectos específicos que importa salientar sobre este volume: a evolução visual e a segurança das personagens.
Quanto à arte, não se trata de nenhuma brusca alteração de estilo. Mantêm-se, aliás, a expressividade das personagens, a diversidade de criaturas (que variam entre o grotesco e o adorável) e os cenários fabulosos que surgem onde menos se espera. A evolução tem a ver com as próprias personagens, sobretudo no que respeita ao crescimento de Hazel e às mudanças de Alana, mas também nos novos elementos que vão surgindo sobre figuras aparentemente secundárias (ênfase em aparentemente) como o Sir Robot ou Petrichor. A visão global é a mesma, mas há sempre novos pormenores para desvendar. E isso... bem, é uma espécie de magia.
Quanto à segurança das personagens, vai-se consolidando a cada vez mais firme certeza de que ninguém está realmente seguro. Não é algo de totalmente novo - ao longo da série, houve figuras que foram desaparecendo para dar lugar a novos intervenientes. Mas, neste volume concreto, isto atinge um novo auge, com figuras próximas a assumir novos papéis e até um final que, embora muito breve, é todo um tratado sobre as diferenças entre fé e realidade.
História de amor, de família e de igualdade em plena guerra intergaláctica, esta série consegue acrescentar, em cada novo volume, novas medidas de força e de emoção a uma história em que a ameaça e o perigo são uma constante. E, com a sua mistura de acção e emotividade, o seu fortíssimo núcleo de personagens e a certeza cada vez mais consolidada de que tudo - bom ou mau - pode acontecer, vai-se tornando cada vez mais irresistível. E genial. Sempre.

Autores: Brian K. Vaughan e Fiona Staples
Origem: Recebido para crítica

sábado, 14 de março de 2020

Histórias para Dias de Chuva (Naela Ali)

Amor do tipo que acontece por acaso, que dá forma a relações profundas e desaparece depois sem avisar. Amor escondido entre segredos, partilhado entre experiências simples e emoções profundas. Amor que vem e se afasta, mas que perdura para sempre na memória. Amor, em suma, em todas as suas facetas: é este o âmago destas Histórias para Dias de Chuva.
Um dos primeiros aspectos a chamar a atenção neste livro é o equilíbrio entre o texto e as ilustrações. São mais rostos e objectos do que propriamente movimentos, mas complementam na perfeição as várias histórias e pensamentos simples que povoam este livro. Além de darem rosto às personagens - o que é particularmente interessante tendo em conta que as histórias surgem sobretudo na primeira pessoa - realçam também a importância dos gestos simples, com as muitas imagens de abraços e olhares a reforçar o sentimento de amor que é a base de todo este livro.
Outro aspecto curioso é a relativa ambiguidade que faz com que cada uma destas pequenas histórias possa ser lida de forma independente ao mesmo tempo que, numa leitura sequencial, parecem haver paralelismos e elos de ligação a apontar para a possibilidade de uma protagonista comum. Ora, nunca sendo algo realmente esclarecido, e tendo em conta a simplicidade das histórias, fica uma certa curiosidade insatisfeita sobre o rumo futuro desta (ou destas?) relações. Ainda assim, a base essencial está lá, bem como a matéria para reflexão.
E, claro, sendo um livro dedicado ao amor e às relações - inícios, fins e todos os sentimentos fortes que trazem pelo caminho - é também inevitável uma certa repetição de ideias. Mas há também diferenças suficientes - na ilustração, nas palavras e até nos pensamentos que evocam - para esbater esta impressão, salientando sobretudo os pensamentos essenciais.
É, no fundo, um livro muito simples, mas principalmente cheio de amor nas suas histórias breves e bonitas ilustrações. Um bom livro para ler em dias de chuva (e não só) e uma interessante reflexão sobre a faceta eterna e efémera do amor.

Autora: Naela Ali
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 13 de março de 2020

Antologia de Poesia Romena Contemporânea (Corneliu Popa)

Viajar pela poesia é sempre encontrar imagens, impressões, formas e sentimentos diferentes. E ainda mais quando é uma poesia nova, um estilo que se desconhece. Ora, a poesia romena não é propriamente a mais conhecida - e o que este livro vem provar, com a sua vastidão de autores e poemas, cada um com a sua própria natureza, mas formando um todo de surpreendente coesão, é que vale muito a pena conhecê-la.
É precisamente pela questão da coesão que importa começar a falar deste livro. É uma antologia longa, vastíssima, que abrange muitos autores e vários poemas de cada um deles, o que permite ficar com uma muito boa ideia do estilo de poesia que cada um escreve. Mas há também como que uma sensação de pertença e de unidade, como que uma união de temas e até de percepções intangíveis que se estende entre os poemas dos vários autores. Um cenário soturno, talvez um tanto desolado. Uma visão de fé feita descrença (ou até, às vezes, quase blasfémia). Um mundo feito de tempo que se arrasta em metamorfoses. Uma vaga névoa que esconde profundidades insuspeitas.
O que me leva ao elo comum: a melancolia, quase palpável ao longo de todo o conjunto. Há poemas longos e breves, mais e menos estruturados (embora a forma seja, no geral, bastante livre), visões mais ou menos bizarras (chegando mesmo, por vezes, a trazer à memória textos como a Ode Triunfal). Mas há em tudo como que uma vaga tristeza, um quase contemplar da finitude, que é também um poderoso apelo à introspecção.
É difícil destacar particularidades num livro que reúne tantos autores e onde tudo parece, ainda assim, encaixar de forma tão eficaz. Mas também aqui há equilíbrio, pois à possível repetição de temas contrapõe-se uma visão própria, um ritmo particular e uma forma distinta de contemplar as mesmas sombras. Porque há muitas sombras nesta antologia, muita meditação sobre a morte. Mas é também isto que a torna fascinante.
Longa e surpreendente viagem sobre terras nebulosas e sombrias - as da mente, claro! - trata-se, em suma, de uma antologia vasta e equilibrada. E um belíssimo ponto de partida para descobrir as fascinantes profundezas da poesia romena.

Autor: Corneliu Popa
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 12 de março de 2020

A Long Way Off (Pascal Garnier)

Aborrecido e sem saber ao certo o que fazer à vida, Marc dá por si a ansiar por um destino distante. Não sabe bem onde, mas que seja algures bem longe do mundo e da vida entediante que conhece. E eis que, por capricho, decide realizar esse desejo. Na companhia da filha e do gato, Marc dá início à sua jornada rumo a um destino desconhecido. Mas Anne é uma mulher invulgar e, onde quer que passem, surge algum tipo de mistério. Há pessoas a desaparecer, a morrer. E, anda que Marc não queira vê-lo, está mais perto desses acontecimentos do que julga.
É bastante impressionante a forma como um livro que é, na globalidade, bastante breve, consegue conter tão vastas profundezas de surpresa e ponderação. Marc é a imagem perfeita daquilo a que se poderia chamar crise de meia-idade, farto da vida e sem saber bem o que quer. E é notável que uma história tão breve e tão concisa consiga reflectir tanto sobre a profundidade das suas personagens. Não só sobre Marc e as suas frustrações pessoais, mas também no que diz respeito a Anne, cujas circunstâncias nunca são totalmente explicadas, mas cujo papel na história é fundamental. E até mesmo Boudu, o gatinho gordo, tem uma grande presença, ainda que tranquila e discreta.
Há como que uma ambiguidade a impregnar toda a história. Muito é deixado por dizer, ou meramente insinuado. Ainda assim, tudo parece fazer sentido. O passado de Anne - e também o de Marc - não são o elemento mais importante deste livro. É a viagem que importa, tão simples e aparentemente feita de pequenas coisas, mas tão intensa e cheia de surpresas. O inexplicável fica por explicar. O resto é uma soturna e intrigante viagem que culmina num final particularmente notável.
É como uma escuridão diferente, discreta, quase intangível, mas muito, muito presente. E, ao misturar esta medida de mistério e perigo com os dilemas pessoas do protagonista, tudo se torna muito mais vasto e intrigante - mesmo com todas as coisas que ficam por dizer.
Um equilíbrio perfeito entre concisão e profundidade: é isso que este livro representa. E também uma história estranhamente fascinante sobre uma viagem em família que se tornou sombria - e intensa.

Título: A Long Way Off
Autor: Pascal Garnier
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 9 de março de 2020

Porque Voam os Balões e Caem as Maçãs? (Jeff Stewart)

A física pode ser vista como a ciência das coisas que regem os mecanismos do universo. Afinal, quem nunca ouviu dizer que alguma coisa "desafia as leis da física"? Pode também dar respostas a grandes perguntas sobre coisas tão vastas como o universo ou mais pequenas que um átomo. O que é, afinal, a gravidade? E a luz? E, já agora, porque voam os balões e caem as maçãs? Estas são apenas algumas perguntas a que, de forma acessível e muito interessante, este livro pretende responder.
Um dos aspectos mais interessantes deste livro - e da colecção em geral - é a forma como consegue expor de forma completa quanto baste, mas também simples e acessível, um tema que, na sua globalidade, é vastíssimo. São infinitas as complexidades da física e, naturalmente, seria impossível encaixar todas as respostas num único livro. Mas o que este livro faz é traçar linhas gerais de forma clara e concisa, partindo dos conceitos mais simples (que trazem à memória as aulas de físico-química dos tempos do secundário) e passando depois gradualmente a questões mais complexas.
Há ainda dois outros aspectos a contribuir para tornar a leitura cativante. O primeiro é o delicioso sentido de humor do autor, que, manifestando-se nos momentos certos, confere uma certa leveza a um tema que, ainda que abordado com simplicidade, tende a ser naturalmente denso. As observações e referências que surgem ao longo do texto facilmente arrancam sorrisos - o que é, só por si, algo de extraordinário quando se aborda algo tão sério e complexo como a física.
O outro aspecto é a forma prática de explicar as coisas, recorrendo a exemplos e experiências. Bem, experiências maioritariamente mentais, como convém tendo em conta o tipo de elementos em jogo. Através das maçãs, das bolas de bilhar, de Albert Einstein à espera de um comboio, entre outros exemplos, o autor consegue construir imagens simples com que visualizar os elementos mais complexos do que pretende explicar. E, sim, é uma simplificação de coisas mais vastas, mas é preciso começar por algum lado para entender. 
E é exactamente disso que se trata: de um belíssimo ponto de partida para compreender os fundamentos da física. Acessível, cativante e repleto de informação, permite assimilar as bases e aprofundar gradualmente os conhecimentos essenciais. Além, claro, de mostrar o lado divertido da física - o que é, também, um grande ponto a favor desta concisa, mas muito interessante leitura.

Título: Porque Voam os Balões e Caem as Maçãs?
Autor: Jeff Stewart
Origem: Recebido para crítica

domingo, 8 de março de 2020

Alguém Quer Morangos? (Alex T. Smith)

Terça-feira é dia de comer morangos ao pequeno almoço, mas aquela ameaça ser excepção. Todos os morangos foram levados para o torneio de ténis, e não há maneira de o Claude e o senhor Borboto conseguirem arranjar alguns. Ou será que há? Uma bola estrategicamente apanhada e uma substituição de última hora no torneio fazem do Claude um inesperado protagonista no mundo do ténis... e dos morangos!
Sendo um livro pensado para os mais novos - e associado a uma série de desenhos animados - escusado será dizer que o elemento visual é o primeiro aspecto a destacar-se nesta história. Cheia de cor, com personagens tão peculiares como intrigantes (e com um conjunto de indumentárias que se destacam particularmente) e um percurso que vive tanto do movimento das ilustrações como da agradável história que as acompanha, este é um livro que facilmente cativará os mais novos e que, com a sua leveza e simplicidade, também os não tão novos.
Claro que é também uma história com o seu quê de improvável: afinal, o Claude é um cão falante. Ainda assim, é engraçada a naturalidade com que tudo parece fluir, algo que, aos olhos de um leitor adulto, traz à memória aqueles momentos em que tudo parecia possível e imaginável. Além disso, os impossíveis são o menos importante nesta história, em que o espírito de entreajuda, a vontade de ir atrás do que se deseja e a capacidade de empatia das personagens acrescentam complementam com uma mensagem positiva esta aventura cheia de peripécias invulgares.
Leve, simples e divertido, cheio de cor e de aventura, trata-se, pois, de uma história cativante para ler - ou dar a ler - aos mais novos. Além, claro, de uma reconfortante, ainda que breve, viagem a tempos mais inocentes para aqueles cuja infância já ficou para trás.

Autor: Alex T. Smith
Origem: Recebido para crítica

sábado, 7 de março de 2020

Caravaggio - O Pincel e a Espada (Milo Manara)

Michelangelo Merisi acaba de chegar a Roma, com todo o seu extraordinário talento para a pintura - e também com toda a sua impaciência e irascibilidade. Não tarda, por isso, a fazer inimigos, ainda que conquistando ao mesmo tempo um poderoso mecenas e um núcleo de grandes amigos. Mostrar a sua arte ao povo significa, porém, ceder aos ditames da igreja - até porque não o fazer pode ter consequências dramáticas. E, encontrando inspiração em fontes menos que respeitáveis, as inimizades do jovem Caravaggio rapidamente começam a encaminhar-se num sentido perigoso...
Parte do que impressiona na história do grande Caravaggio - além, é claro, da grandiosidade da obra - é o fascinante contraste entre a sua genialidade na pintura e a sua personalidade conflituosa. É parte da sua natureza e a forma como isso é transposto para este livro confere-lhe nova vida e nitidez. O Caravaggio deste livro é efectivamente o grande pintor - e a forma como os seus quadros são transpostos para este livro é algo de puramente genial - mas é também o jovem temperamental, arruaceiro, destrutivamente apaixonado. Tudo isso está presente. Tudo isso dá força à leitura. E tudo isso ganha vida nos diálogos precisos e sobretudo na arte.
Quem já tiver olhado com um mínimo de atenção para uma das obras de Caravaggio - seja num livro, na internet, numa reprodução ou seja onde for - facilmente reconhecerá a fortíssima presença dos quadros. O processo criativo é, aliás, um dos elementos essenciais desta história, com a peculiar escolha das modelos, a construção das cenas e até a interferência do mecenas a surgirem no momento mais adequado para realçarem a sua importância. Mas a verdade é que a sombra dos quadros está presente em todo o livro, e com especial ênfase nos acontecimentos que levam ao poderosíssimo final desta primeira parte.
Mas voltando ainda a Caravaggio, e ao desenvolvimento da sua história neste livro, importa destacar uma intenção evidente: a de ser o mais fiel possível ao percurso da sua vida, realçando as facetas que o tornaram único não só em termos de legado, mas também de percurso pessoal. O Caravaggio deste livro é uma personagem viva, transbordante de ímpeto e de força, que quase parece sair da página para dar vida ao seu génio e, acima de tudo, às suas emoções. O resultado é uma surpreendentemente poderosa sensação de empatia para com uma figura com quem, à primeira vista, não seria fácil simpatizar.
Empolgante, intenso, belíssimo em termos de arte e impressionante na eficácia dos diálogos, é um livro tão memorável como o seu protagonista. E assim, a impressão que fica uma vez terminada a leitura é, pois, algo de poderoso: uma viagem no tempo, à vida do verdadeiro Caravaggio. O pintor e também o homem.

Autor: Milo Manara
Origem: Recebido para crítica

Divulgação: Novidade Marcador

Para algumas mulheres, amar é sempre sinónimo de sofrer. A este padrão de comportamento Robin Norwood chama Amar de Mais.
As mulheres que amam de mais… - são atraídas por homens perturbados, distantes, temperamentais - e ignoram os bons rapazes, que consideram aborrecidos; - põem de parte amigos e interesses para estarem sempre disponíveis para eles; - sentem-se vazias sem eles, muito embora estar na sua companhia seja um tormento.
Através de uma série de relatos de casos íntimos e reveladores, Robin Norwood apresenta a estas mulheres um caminho possível no sentido de viverem relações mais equilibradas e gratificantes. Amar de mais deixa de ser saudável quando persistimos numa relação inacessível, insensata, mas que, mesmo assim, somos incapazes de romper.
Robin Norwood aborda a face negativa e destrutiva do amor, a obsessão pelo outro, uma estrada de sentido único baseada no medo e na insegurança. Explica a distinção entre o amor saudável e o amor insensato e fala das razões que levam a mulher que ama de mais a tornar-se excessivamente tolerante.
Com recurso a uma rara sensibilidade, Norwood encaminha a leitora a canalizar a energia para si mesma, em vez de a projetar num homem que não quer mudar de atitude. Recorda que o amor deve ser um acontecimento feliz e não um evento angustiante.
Mulheres Que Amam de Mais é um livro esclarecedor e indispensável para todas as pessoas que desejam alterar padrões de comportamento e levar uma vida tranquila e feliz, amando os outros e a si mesmas.

Em pleno dia nacional de luto pelas vítimas de violência doméstica, dificilmente se poderia escolher tema mais relevante.

Robin Norwood é terapeuta conjugal e conselheira pedagógica. Especializou-se no tratamento de padrões mórbidos nas relações amorosas, na depressão e nos comportamentos aditivos e compulsivos (álcool, drogas, alimentação). Vive com o marido em Santa Barbara, na Califórnia.

Para mais informações, consulte o site da Marcador Editora aqui.

quinta-feira, 5 de março de 2020

Avó Sarilho: Muita Idade, Pouco Juízo (Sophy Henn)

A Jeanie tem uma família muito grande, mas a pessoa com quem passa mais tempo é, sem dúvida, a Avó Sarilho. Claro que não se chama mesmo Avó Sarilho, mas a verdade é que é por esse nome que é conhecida. Porque será? Bem, a Avó Sarilho tem o hábito de se meter em confusões, trapalhadas, tribulações e... enfim, sarilhos! Mas o tipo de sarilhos que, além de muito engraçados, têm um estranho e especial toque de justiça - seja num parque com regras demasiado estritas ou no museu mais aborrecido de todos os tempos.
Basta um olhar ao título e à capa para prever, ao embarcar nesta leitura, uma aventura caricata e divertida. E a verdade é que a previsão confirma-se para lá de todas as expectativas. Tem um sentido de humor delicioso e, apesar de ser um livro juvenil, facilmente arranca gargalhadas até a leitores adultos. Além disso, é uma história de sarilhos, mas sarilhos essencialmente positivos. São aventuras caricatas, intrépidas e divertidas, mas suficientemente seguras e com uma mensagem positiva, o que acrescenta ao ambiente essencial de diversão uma discreta, mas eficiente, componente didáctica.
Também particularmente eficaz é o equilíbrio entre o texto e as ilustrações, que acrescentam mais vida e mais pormenor a estas aventuras simples e divertidas. O aspecto da Avó Sarilho é algo bastante peculiar, e esses elementos únicos ganham nas ilustrações uma outra vida que o texto isolado dificilmente poderia dar. Além disso, as ilustrações acrescentam também movimento e expressividade (particularmente nos momentos de fúria das personagens), o que contribui também para enfatizar o factor diversão.
Claro que são histórias relativamente simples, o que, aliás, faz todo o sentido, tendo em conta o público a que se destina. Mas é interessante notar que, entre o delicioso sentido de humor, as pequenas e eficazes lições a retirar e o misto de estranheza e aventura que atravessa todo este livro, não fica a sensação de que falte alguma coisa. Tudo tem precisamente as medidas certas para proporcionar uma leitura leve, divertida e cativante.
Cheio de cor, de vida e de animação, trata-se, pois, de um livro leve e empolgante, capaz de cativar leitores de todas as idades. E de uma história que demonstra de forma divertida que os sarilhos nem sempre são algo mau - quando se tem o coração no sítio certo.

Autora: Sophy Henn
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 4 de março de 2020

Marionetas sem Fios (Tadea Lizarbe)

Ava acaba de perder o marido, e com ele a sua razão de viver. Bruna é a agente de polícia que lhe levou a notícia. E ainda nenhuma das duas sabe que têm mais em comum do que imaginam. Têm um lado sombrio, que, no caso de Ava, aplaca um pouco os seus instintos suicidas, enquanto no de Bruna lhe permite ser uma agente mais perspicaz e ver o que mais ninguém vê. Mas este lado sombrio atrai também outro tipo de perigos, pois há uma sociedade secreta à espreita a quem as suas capacidades interessam. Uma sociedade que não tem grandes escrúpulos no que toca a recrutar os seus membros - e a eliminar os seus adversários.
Provavelmente o aspecto que mais se destaca neste livro é o equilíbrio entre sombras e leveza que atravessa toda a narrativa. Sombras que vão da perda de Ava ao lado sombrio das duas protagonistas, passando pelas intenções obscuras do Cipreste e pelo lado meticuloso e macabro do planeamento dos crimes. Leveza no humor resultante da estranheza da personalidade de Bruna, do ténue amor que ameaça florescer e das vozes interiores das protagonistas, bem como na naturalidade com que tudo parece encaixar sem dar, ainda assim, respostas absolutas.
É no que toca a essas mesmas respostas que surgem os sentimentos ambíguos. Esta não é uma história que termine com uma ou outra ponta solta, deixa muito em aberto, tanto que fica na dúvida a possível existência ou não de uma sequela. Tal como é, é impossível não ficar com uma sensação de curiosidade insatisfeita, que faz, aliás, algum sentido tendo em conta as facetas ocultas das protagonistas.
Mas é o mistério, com as suas bizarrias, a alma deste livro e, assim sendo, pese embora a impossibilidade de evitar uma certa insatisfação face ao final aberto, é nas movimentações dos múltiplos intervenientes, com as muitas revelações que vão surgindo, que surge também uma das maiores forças deste livro. Ao dividir a narrativa entre os pontos de vista de Ava e Bruna, a autora abre as portas dos pensamentos de ambas, conseguindo, ao mesmo tempo, ir desvendando as pistas sem nunca esbater a aura de mistério. Além disso, toda a intriga em torno do Cipreste - e da sua verdadeira natureza - está repleta de elementos curiosos e ambíguos, o que só vem realçar a tal dúvida sobre a possibilidade de uma continuação para esta história.
Tudo somado, fica a impressão de uma leitura leve quanto baste, mas também surpreendentemente sombria, em que as surpresas se vão sucedendo e a mente das personagens se revela também inesperadamente complexa. Deixa muito sem resposta, é certo, mas cativa da primeira à última página. E isso é mais que o suficiente para fazer com que a leitura valha a pena.

Autora: Tadea Lizarbe
Origem: Recebido para crítica

domingo, 1 de março de 2020

Criminal - Livro Dois (Ed Brubaker e Sean Phillips)

Uma mulher decidida a obter vingança de um dos homens mais poderosos e temidos da região, nem que isso lhe custe a vida e a de todos os seus aliados. Um homem destruído por uma falsa acusação, que se vê novamente arrastado para o mundo do crime, seduzido por uma mulher que não é o que parece. E um mundo onde a única justiça é a da força, do medo e das armas, pois nem os sonhos, nem a esperança, e muito menos as ilusões podem sobreviver aos ditames da lei do mais forte.
Há algo de absurdamente fascinante na forma como os livros desta série conseguem ser, ao mesmo tempo, histórias de crime e castigo e visões de um mundo onde conceitos tão aparentemente evidentes como a moral e a justiça ganham um sentido completamente diferente do que consideramos normal. É um mundo à parte, onde as regras são distintas - ou não existem de todo - e onde até as personagens que mais inocentes parecem em toda a vastidão do cenário acabam por sofrer as consequências do mundo que lhes tocou em sorte. Talvez seja por isso que também os sentimentos que desperta são complexos: não é um caso de simples empatia por vilões, porque num mundo como este ninguém pode ser um verdadeiro herói. É mais a percepção de um conjunto de circunstâncias em que ser bom é estar morto e, por isso, as marcas e as escolhas conduzem sempre à escuridão.
É um mundo moralmente ambíguo e em que a desolação reina soberana. E, assim sendo, só pode ser sombrio. Por isso, sobressaem inevitavelmente os elementos mais negros, não só na construção das histórias e das personagens, com os fios de poder e de violência a conspurcar tudo aquilo que tocam, mas também no reflexo visual destes mesmos meandros. São histórias de crimes consumados aparentemente nas sombras, pelo que os tons sombrios fazem todos os sentidos. São histórias de dor, física e mental, e esta reflecte-se com toda a precisão nas expressões das personagens. E são histórias de morte e sangue, com rasgos de sensualidade, pelo que também os rasgos vermelhos, quais fluxos de movimento a cortar os momentos mais estáticos, fazem especial sentido.
Mas importa olhar ainda uma vez mais para a história, para destacar, além da sombria desolação que parece pairar sobre tudo, a empolgante sucessão de surpresas que vai sulcando o caminho. Não é só uma questão de finais inesperados, é que ninguém neste livro é o que parece. Os realmente inocentes foram transformados. Outros, embora parecendo, nunca o foram realmente. E até aqueles cujo lado mais negro é o que mais facilmente se identifica escondem, por vezes, profundidades insuspeitas, seja nos laços criados, seja no estranho código de honra que, nos momentos de viragem, acaba por se manifestar.
Crime e desolação em paisagens sombrias, num mundo tão vasto quanto moralmente ambíguo e repleto de personagens que, embora aparentemente presas aos meandros da teia em que se movem, têm sempre algo de novo para revelar. Intenso, dramático e cheio de surpresas, um livro que facilmente se entranha na memória. Como, aliás, já era de esperar, sendo de quem é.

Título: Criminal - Livro Dois
Autores: Ed Brubaker e Sean Phillips
Origem: Recebido para crítica