quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

O Surto (Lawrence Wright)

A súbita aparição de um surto de febre hemorrágica num campo de prisioneiros na Indonésia pode parecer, aos olhos de alguns investigadores, apenas um caso bizarro. Afinal, grande parte dos detidos têm um sistema imunitário débil, o que significa que pode muito bem ser uma doença já conhecida a ter aqueles efeitos estranhamente devastadores. Ainda assim, para jogar pelo seguro, o epidemiologista Henry Parsons, uma autoridade como poucas no seu ramo, decide viajar para o campo a fim de averiguar ao certo o que se passa. O que encontra é muito mais perturbador do que todos esperavam. Tudo indica tratar-se de um vírus novo e desconhecido, com um fortíssimo potencial pandémico. E o pior de tudo... é que é já demasiado tarde para o travar.
Um elemento geralmente comum a este tipo de história apocalíptica é a tendência para seguir o percurso da corrida contra o tempo em busca de uma solução quase milagrosa... que, geralmente, acaba por salvar o mundo no último minuto. Bem, desengane-se quem espera isso deste livro. A corrida contra o tempo existe, de facto, mas assume a forma de um ponto de partida para um percurso mais complexo, menos linear e muito menos optimista. A pandemia deste livro é tudo menos fácil de controlar. E o combate à doença não é um factor de união, mas sim uma porta aberta para o caos, para a intriga, para o conflito aberto. Não é uma história em que a humanidade se una para que tudo acabe bem. É a história do seu lado mais negro, mais conflituoso, mesmo perante a hecatombe.
Não é, portanto, uma leitura leve. Muito pelo contrário. Há, aliás, algo de absurdamente poderoso na forma como um enredo que se vai tornando cada vez mais negro consegue, ainda assim, ser tão viciante e tão eficaz na forma como gera emoção. Talvez por não haver heróis imaculados e por os alegados vilões se moverem, por vezes, pela simples ideia de dever. Talvez porque há, apesar de tudo, gente com o coração no sítio certo, mas isso nem sempre chega. Talvez porque haver tanto caos e tanta perda e tantos gestos de luz no meio das sombras. Ou talvez por tudo isto moldar um equilíbrio brilhante entre as múltiplas facetas fascinantes deste livro.
Embora a história se divida entre vários pontos de vista, diria que há sobretudo dois protagonistas: o vírus e Henry Parsons. O vírus é a força motriz por trás de toda esta história, o mistério por resolver, a base da análise fascinante - e do contexto meticulosamente explorado - que é feita ao delicado equilíbrio da civilização e a razão do caos que se avizinha. Henry... Henry é ao mesmo tempo o herói porque é fácil torcer e a figura que esconde um passado inominável, o ser humano vulnerável que carrega todo o peso dos seus próprios demónios e o ávido explorador de uma verdade que... nem sempre liberta. É uma personagem complexa, profunda, nem sempre agradável, mas sempre fascinante. E também a sua mente é um dos aspectos mais memoráveis deste livro.
Perturbador seria uma boa palavra para descrever este livro, principalmente se tivermos em conta o contexto actual. Mas é também uma imersão profunda num caminho que não é real, mas anda assustadoramente perto, numa luta pela civilização que é tudo menos previsível e na mente de um protagonista que é simplesmente inesquecível. Perturbador, sim, mas sobretudo impressionante. E brilhante em todos os aspectos.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

A Ordem Mágica (Mark Millar e Olivier Coipel)

Durante o dia, levam vidas o mais normais possíveis, ainda que, nalguns casos, ligadas ao entretenimento e até ao ilusionismo. Mas escondem outro tipo de magia. São feiticeiros, e têm como missão proteger a humanidade das ameaças sobrenaturais e garantir que o mundo continua a ser essencialmente de ciência e lógica. O inimigo está, porém, mais perto do que nunca. Ressentimentos antigos e perdas insuperáveis fizeram com que um grupo de elementos da ordem se separasse para levar uma vida diferente. E agora anda alguém a matar os feiticeiros - e é bastante óbvio quem são os principais suspeitos. A guerra tornou-se inevitável. E o que sempre foi protegido terá finalmente de ser posto em acção.
Provavelmente um dos aspectos mais marcantes neste livro é a forma como parte de um conjunto de elementos relativamente comuns nas histórias de magia (feiticeiros, magia proibida, varinhas mágicas, uma ordem secreta que protege os seres humanos "normais") para fazer deles algo de diferente e único. Sim, tem elementos em comum com muitas outras histórias de feiticeiros, mas tem também uma identidade próxima, que resulta não só das personalidades singulares das várias personagens, mas também da forma como as acções mais drásticas parecem brotar das mais simples e humanas coisas. Grandes perdas, mas também rancores que perduram, fazem com que estes feiticeiros sejam tão falíveis e ambíguos como qualquer outro ser humano.
Mais impressionante ainda é o aspecto visual, com a fascinante vastidão dos castelos e a expressividade dos rostos (sobretudo nos momentos mais vulneráveis) a contrastar com a intensidade com que os momentos de acção quase parecem sair da página. Além disso, há um ligeiro lado introspectivo - ligeiro porque há sempre algo de mais intenso a acontecer - no percurso das personagens, e é algo que se reflecte tanto nas expressões do rosto como nos diálogos dos momentos de maior emoção.
E, por falar em emoção... Tendo em conta a quantidade de coisas que acontecem neste livro, seja nos ataques do início, seja no grande confronto da fase final, seria de esperar que a emotividade passasse para segundo plano, pelo menos às vezes. Bem... não. Há sempre emoção na história, seja nas imperfeições de Cordelia, nas escolhas de Gabriel, no ressentimento de Albany e até na aparente fobia do tio Edgar. Há humanidade - e vulnerabilidade, portanto - nestas personagens. E, mais até do que a acção, é isso que fica na memória.
Intenso e surpreendente, visualmente deslumbrante e emocionalmente devastador, eis, pois, um livro que é muito mais do que apenas mais uma história de feiticeiros. É uma história de conflito, de perda, de intriga, de traição... e da redenção possível face ao insuperável. Empolgante, viciante e inesperadamente emotivo, um livro que não posso deixar de recomendar.

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Pretérito Imperfeito (Nieves Concostrina)

A história do mundo é um assunto sério, até porque é vastíssima. Mas só porque é longa e cheia de... bem, histórias... não quer dizer que tenha de ser maçadora. Podem ser muitos os nomes, as datas e os acontecimentos, mas a melhor forma de os conhecer é explorando o muito que têm de interessante. E é exactamente isso que este livro faz: de forma concisa quanto baste, mas muito cativante e, sobretudo, divertida, explora vários momentos marcantes da história, desde o início dos tempos até ao passado recente.
Algo que logo à partida se torna evidente nesta leitura é que não é, nem pretende ser, um registo exaustivo. Em poucas páginas, traça as linhas essenciais de cada um dos episódios abordados, delineando os seus desenvolvimentos básicos, as suas figuras centrais e acrescentando algumas observações certeiras. Não é, pois, o livro certo para quem procura muitos pormenores. Mas é, sim, um belo ponto de partida para descobrir as bases destes episódios e despertar a curiosidade em saber mais.
Mais do que a relativa abundância  de informação, contudo, e é abundante porque são múltiplos e diversos os episódios abordados, a grande qualidade deste livro está no registo. Leva a história a sério, no sentido em que tenta transmitir a importância e os desenvolvimentos de cada episódio, mas explora-a num tomleve e muito divertido. Além disso, traça também alguns paralelismos com a actualidade que são particularmente certeiros e mostram que o mundo vai mudando, mas que há muita coisa que fica na mesma.
Podia provavelmente ser mais longo... porque, lá está, a história é longa. Ainda assim, fica a impressão de que houve um certo cuidado na escolha dos episódios abordados, não só para reflectir diversos períodos, mas também diversos âmbitos da vida. E há um pouco de tudo, desde grandes batalhas e generais megalomaníacos a descobertas arqueológicas, revoluções religiosas e... bem, os hábitos peculiares de um deus. É breve, mas abrange um pouco de tudo, e isso é também uma grande qualidade.
Conciso quanto baste, mas repleto de informação interessante e transmitida num tom deliciosamente descontraído, trata-se, pois, de uma boa leitura para recomendar àqueles que acham que a história é chata. Porque, contada no tom certo, é tudo menos isso. E não faltam episódios para o provar - como é aqui demonstrado.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

O Que Contamos ao Vento (Laura Imai Messina)

Após o tsunami de 2011, que lhe levou a mãe e a filha, Yui continuou a viver, mas com a vida e o coração desfeitos. O luto apoderou-se da sua vida de formas que nem ela consegue descrever. Mas tudo muda quando um dos seus ouvintes, ao ligar para o seu programa, lhe fala sobre o Telefone do Vento, uma cabine telefónica situada num belo jardim e onde as pessoas vão para falar com os seus mortos. Sem nada a perder, Yui decide fazer a viagem. Não sabe que, para lá dos receios iniciais, encontrará o refúgio possível, muitas vidas como a sua e talvez um coração capaz de reanimar o seu.
Um dos principais aspectos a destacar sobre esta leitura é que, tendo em conta o peso do tema, é surpreendentemente leve. Talvez isto se deva, em parte, aos capítulos curtos, que parecem reflectir as perceções e reflexões dos protagonistas, e em parte também devido à forma quase impressionista como a história é traçada - a partir de momentos, impressões, memórias que se perpetuam e até objectos com um significado especial. O que é certo é que, de impressão em impressão, a história vai-se moldando com uma naturalidade quase inefável, insinuando-se aos poucos no pensamento e acabando por abrir discretamente caminho até ao coração.
Tendo em conta esta forma de contar a história, não é propriamente uma surpresa que fiquem algumas questões em aberto, sobretudo sobre as várias personagens que se vão cruzando com Yui e Takeshi. Mas a verdade é que também isto faz sentido, além de ser um reflexo mais que adequado da vida e da fugacidade das relações. E, sendo certo que estas múltiplas passagens parecem, a espaços, um pouco breves, também é verdade que nada lhes falta em termos de percurso essencial.
Ainda um outro aspecto que não surpreende, mas que surge de forma particularmente brilhante, é o peso emocional de toda a história - e o seu contraste com a leveza que parece também nunca cessar. Trata-se de uma história de luto e de perda - e também de memória e de reconstrução. A emoção está, por isso, sempre à espreita e faz com que seja impossível não querer que tudo corra bem para estas personagens a quem já tanto foi tirado. Se corre? Bem... para isso, é preciso ler.
Surpreendentemente leve, mas repleto de momentos de beleza, eis, pois, um livro aparentemente simples, mas que, além de transbordante de emoção, é uma lembrança perfeita do que realmente importa. Cativante e descontraída quanto baste, mas cheia de nostalgia, sentimento e amor, uma história feita de momentos. E que, como eles, perdura.

domingo, 14 de fevereiro de 2021

A História de Uma Serva - Novela Gráfica (Margaret Atwood e Renée Nault)

Em tempos, teve uma vida normal. Uma filha, um companheiro, um emprego, um nome. Agora, tudo isso desapareceu. Reduzida à sua capacidade de gerar filhos, passou a ser simplesmente Defred, uma Serva ao serviço do Comandante e da sua mulher, a quem tem como única missão dar um filho. Mas ainda se lembra de como era antes e, embora possa parecer que tudo foi reduzido ao autoritarismo da fé, Defred não é a única a recordar-se. E a querer resistir, ainda que apenas nas pequenas coisas. Até porque obedecer a todas as regras está longe de ser garantia de segurança.
Sendo a adaptação de um livro brilhante e de uma história que se tornou também conhecida noutros formatos, a primeira pergunta que surge ao partir para esta leitura é inevitável: estará à altura? Bem, está. Supera, aliás, todas as expectativas, ao dar ainda mais vida e intensidade, através da arte espantosa, e do equilíbrio entre singularidade e fidelidade ao original, a uma história que é, por natureza, impressionante.
Tudo o que impressionou no romance original está também presente nesta novela gráfica, desde a impressionante e assustadora construção do sistema à forma como a importância da memória é realçada, passando pela sempre actual e pertinente questão de quão facilmente podem ser perdidos os direitos conquistados que temos como certos. E as próprias palavras são familiares, apesar das diferenças de formato. É fácil reconhecer aqui as frases mais marcantes do romance. E, assim, nada falta em nenhuma das versões, ainda que sejam naturalmente distintas - e naturalmente complementares.
Quanto ao aspecto visual, basta um primeiro folhear para reconhecer o cuidado em caracterizar o mais exactamente possível os vários aspectos desta sociedade. Mas o impacto não fica por aí. As variações na estrutura, associadas ao vermelho que transborda das páginas e a um toque quase onírico que, a espaços, quase parece transformar em imagens os pensamentos da protagonista, fazem com que todo o percurso fique gravado na memória. E não importa se já se conhecia a história ou não, pois, mesmo conhecendo, a impressão que fica é a de uma familiaridade tingida (a vermelho, naturalmente) com algo de singular e de novo.
Simultaneamente familiar e inesperada, mais actual do que nunca nos seus temas intemporais, memorável nas palavras, arrebatadora na arte e fiel ao original, mas capaz de o transformar em algo de novo. Assim é esta versão de A História de uma Serva: a mesma, mas diferente; a mesma, mas intensificada; a mesma, mas magistral de uma forma totalmente nova. Sublime, em suma.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Desobediência Civil (Henry David Thoreau)

Ao longo da história, não faltaram movimentos de protesto e de luta, conflitos ideológicos e guerras movidas a interesse. Não faltaram estados a impor obediência e vozes que se ergueram contra a opressão. E a resistência pode ser ou não pacífica, mas, se há quem diga que violência gera violência, que outras formas existem de resistir? Bem, este breve livro, que, apesar de escrito no século XIX e com um contexto histórico muito distinto, não deixa, ainda assim, de ser bastante actual, explora esta questão, reflectindo a luta pessoal do autor e, através dela, levantando várias questões pertinentes.
Sendo certo que o aspecto mais importante de um livro é sempre o conteúdo, importa, neste caso, salientar o aspecto visual. Ovelhas e rebanhos têm sido termos recorrentes nos últimos tempos, por vezes associados a discursos negacionistas, e a presença destes animaizinhos na capa (e no interior também) contribui para despertar a curiosidade para uma perspectiva diferente - e mais lúcida - da (des)obediência face ao que se entende como uma injustiça. Porque é disso que trata a resistência de Thoreau e, vista no seu contexto, é fácil compreender as suas motivações. Quanto ao material para reflexão, esse prolonga-se até ao nosso próprio tempo.
Claro que, sendo uma luta motivada por uma causa específica, existe sempre a limitação do contexto. Para a ultrapassar, contudo, abundam as notas explicativas, que permitem entender melhor essas especificidades e também fazer comparações com o nosso mundo actual. E, se os porquês são específicos, já as ideias gerais são muito mais abrangentes. E é isso que faz com que esta pequena leitura tenha também o seu quê de intemporal.
Uma última referência para dizer que algo que não falta nas oitenta páginas deste Desobediência Civil são frases memoráveis, sendo muitas delas destacadas ao longo do livro. Isto contribui não só para o impacto visual, mas sobretudo para facilitar a absorção das ideias mais pertinentes. O que, num livro como este, é algo particularmente positivo.
Tudo somado, fica a impressão de uma leitura de contrastes: vem do passado, mas é muito actual; é muito breve, mas não lhe falta profundidade; lê-se num instante, mas fica no pensamento durante muito tempo. E não é a data que importa, mas sim a pertinência. E, nesse aspecto, vale muito a pena ler este pequeno livro.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Stumptown - Volume Dois (Greg Rucka e Matthew Southworth)

Dex Parios acaba de se mudar para o seu novo escritório, mas o primeiro cliente a aparecer-lhe à frente é alguém que não pode aceitar, pois está ligado a um barão do crime. Felizmente, não é o único cliente a bater-lhe à porta. Quando uma famosa guitarrista decide contratá-la para encontrar a sua guitarra perdida ou roubada - a que carinhosamente trata por bebé - Dex não hesita em aceitar o caso, até porque, como sempre, o dinheiro dá-lhe muito jeito. Mas a guitarra perdida traz outras complicações associadas. Complicações com a DEA, uma dupla de agressores pouco competentes e o mistério de como uma digressão acaba por servir de base a negócios menos... harmoniosos. Dex está disposta a seguir a pista... e isso só pode significar sarilhos.
Um dos aspectos mais interessantes desta série, e algo que vem já do volume anterior, é a forma como as imperfeições da protagonista tornam tudo mais empolgante. Dex Parios não é propriamente a mais eficaz das detectives e tem uma tendência natural para se meter em sarilhos, o que significa que, onde quer que a investigação a possa levar, uma coisa é certa: as coisas não vão correr conforme o planeado. E este desvio dos planos significa fugas precipitadas, momentos de tensão bastante perigosos e o ocasional momento divertido protagonizado pelo peculiar sentido de humor da protagonista.
Tudo isto significa movimento e é esse mesmo movimento o aspecto que mais se destaca em termos visuais. Há, aliás, algures pelo caminho uma intensa e perigosa perseguição que muda por completo o ângulo da aventura. E, se é verdade que o facto de haver sempre muito a acontecer faz com que alguns desenvolvimentos pareçam um pouco apressados, também o é que faz com que seja impossível parar de ler.
Quanto ao caso propriamente dito, importa dizer que é essencialmente independente do do volume anterior, pelo que pode ser lido isoladamente, mas tem alguns pequenos elos de ligação com o passado - e algumas sugestões de problemas no futuro. Faz, pois, sentido ler a série por ordem, até para acompanhar os desenvolvimentos de Dex.
Somadas as partes, fica a impressão de uma aventura intensa, de ritmo alucinante e cheia de surpresas, ainda que com algumas relações deixadas por explorar. Mas, uma vez que a série não termina aqui, faz todo o sentido que assim seja, já que tudo parece indicar que há ainda muito de bom para descobrir sobre Dex Parios e a sua agência de investigações.

domingo, 7 de fevereiro de 2021

Éramos Felizes e Não Sabíamos (Pedro Vieira)

Éramos felizes e não sabíamos. Seria uma afirmação mais do que adequada para a nostalgia que acompanha inevitavelmente estes estranhos dias de confinamento e outras complicações covidianas. Mas não. Trata-se de um livro de 2012 e as crónicas nele contidas são de outros dias antes do fim. (E há sempre um fim à espreita, não é verdade?) Nesse tempo, as crises eram outras, e eram também diferentes - bem, a maioria - as figuras de maior protagonismo. Mas é impossível não ler este livro sem ficar com duas sensações mais ou menos contraditórias, mais ou menos convergentes: a de uma memória ainda muito viva daqueles tempos e a de que muitos pontos de vista continuam ainda a ser absurdamente actuais.
Para quem, naquele ano da (des)graça (ou seguintes) era espectador do Inferno, estas crónicas não são propriamente novidade. Mas também aqui sobressaem dois aspectos. Primeiro, que é absurdamente fácil ouvir a voz do autor na cabeça à medida que se vão lendo os textos e imaginar o movimento dos desenhos no ecrã da televisão (ainda que haja também um desses ditos desenhos a acompanhar cada crónica). E segundo, que os textos resultam igualmente bem neste formato, sem voz nem movimento, mas com a mesma precisão implacável no humor e na ironia.
Mas é preciso conhecer o programa e o estilo e tudo o mais? Não, de todo. O tom e o ritmo das palavras transmitem a mesma exacta impressão. E quanto ao conteúdo, bem... 2012 já vai longe (era para ser o fim do mundo, não era?), mas os temas continuam bem presentes nas nossas vidas, ainda que com outros protagonistas. E fica ainda uma outra sensação curiosa para quem se lembra deste passado não muito distante. É que, neste eterno ciclo de génesis e de apocalipses, dias de glória, crises, recuperações e volta tudo ao início outra vez, temos sempre a tal sensação de nostalgia, de que dantes é que era bom. Lá está... Éramos felizes e não sabíamos.
Não importam os anos que passaram desde a publicação, pois continua a ser um livro muito actual. Talvez não nos acontecimentos propriamente ditos, mas sobretudo nos comportamentos, hábitos e... bem, complexidades que se reflectem em cada um deles e que facilmente se poderiam transpor para outros acontecimentos presentes. Junte-se a isto o ritmo e os já referidos humor e ironia implacáveis e o resultado é simplesmente muito bom.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Divulgação: Ashia - Sobrenatural, de Ana Jenifer

Encontramo-nos com três personagens principais em Ashia, as três são diferentes, mas partilham os mesmos genes e as mesmas ambições. Elas vão entrar em mundos desconhecidos, sacrificando tudo o que são pelo bem dos outros. Mesmo assim nada as pode deter, elas são poderosas, fortes e corajosas, ou isso pensam.

Mas os problemas estão ao virar da esquina, e basta um único elemento para que tudo comece a correr mal, para que nada seja normal novamente, para mudar de vida ou para criar um mundo novo. O único que se pode esperar é que tudo volte a ser como era no passado, mas será isso possível? E se for, será que esse é o desejo das personagens?

Dormir num Mar de Estrelas - Volume Um (Christopher Paolini)

Kira Návarez está a contar os dias para o regresso a casa, mas o que parece ser uma avaria menor leva-a a uma última saída para o planeta que têm vindo a explorar. Aí, escondida num local discreto, descobre o que é nitidamente uma construção artificial, mas não de origem humana. O que parece ser a descoberta de uma carreira acaba por se tornar em algo muito diferente. É que o que Kira encontrou não é apenas um artefacto. É uma forma de vida... e acaba de a invadir. Em luta pelo controlo de si mesma, Kira vê-se no cerne do que parece ser a reconstrução de uma luta antiga. E a sua batalha interior está prestes a tornar-se numa guerra implacável guerra intergaláctica.
Uma das primeiras coisas que importa referir sobre este livro salta à vista ao olhar para a capa: que se trata apenas do primeiro volume da história. E importa salientar isto porque este é um daqueles livros em que cada capítulo é um novo desenvolvimento e em que a história vai ganhando intensidade a cada nova revelação. Há sempre algo a acontecer e novas ameaças a pairar, o que significa que é bom estarmos preparados para chegar ao fim deste volume com metade da história ainda pela frente: com muitas perguntas, muitas dúvidas... e, claro, muita curiosidade em descobrir o resto.
É também um livro surpreendentemente viciante, se tivermos em conta não só o tamanho como a construção exaustiva de cenários, contextos, mecanismos e outros pormenores mais técnicos. Múltiplas espécies implicam múltiplas divergências, além das complexidades da tecnologia do futuro em que Kira e companhia vivem. Ainda assim, e apesar de toda esta vastidão de pormenores, a história nunca se torna maçadora. É, aliás, fascinante toda esta construção de sistemas. Além disso, não faltam também grandes momentos de acção a contrapor a esta grande dose de informação a assimilar, o que significa que, entre a tensão e os perigos, a emoção das grandes batalhas e a introspecção dos longos silêncios, tudo acaba por ser assimilado de forma gradual, pois tudo pertence ali.
O que me leva ao último ponto de destaque: o impacto emocional. Entre fugas dramáticas, lutas pela vida e grandes explosões, seria, talvez, de esperar que o elo emotivo passasse, por vezes, para segundo plano. Mas não. Em primeiro lugar, é absurdamente fácil sentir empatia face às circunstâncias da protagonista, presa a uma criatura desconhecida que tem dificuldades em controlar, mas com a qual tem de viver, e que lhe retirou todas as suas âncoras. Além disso, não faltam momentos emotivos ao longo do caminho, seja por pequenas falhas ou por grandes revelações. Ao longo desta longa história, Kira Návarez vai-se tornando avassaladoramente próxima e fácil de compreender. E isso faz com que todo o enredo ganhe ainda mais intensidade.
É só o primeiro volume, mas não lhe faltam qualidades. Intenso, cheio de surpresas, vastíssimo na construção do mundo e também na das personagens, prende desde as primeiras páginas e nunca deixa de surpreender, nem mesmo nos pormenores mais intrincados. E é por tudo isto - e também pela emoção que transborda dos mais inesperados momentos - que fica gravado na memória. Tal como a promessa de que muito de bom se seguirá ainda.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

O Castelo dos Animais, Vol. 2: As Margaridas do Inverno (Xavier Dorison e Félix Delep)

O Inverno abateu-se sobre o castelo dos animais. E agora, além do trabalho que sempre tiveram de fazer, todos os animais têm de sacrificar uma hora de trabalho por dia a transportar lenha que depois têm de pagar. Isto se se quiserem aquecer. Mas há quem não esteja de acordo com as injustiças do presidente Sílvio e o que começou por ser uma luta solitária por parte de Miss Bengalore e do seu improvável aliado César começa agora a conquistar novos aliados. Contra a violência dos cães, pretendem agir com outro tipo de resistência. E implica sofrimento, mas, se conseguirem aguentar, todos sentirão as consequências. E algo terá de mudar...
Um dos aspectos mais impressionantes deste livro - à semelhança, naturalmente, do volume anterior - é a forma como transpõe para uma história de animais lutas que são, afinal, profundamente humanas. A luta pelos direitos essenciais protagonizada pelos animais do Castelo reflecte muitas questões pertinentes das lutas que se travaram - e continuam a travar - em diferentes partes do mundo. Além disso, é fácil reconhecer paralelismos com o mais que célebre O Triunfo dos Porcos/A Quinta dos Animais de George Orwell, mas complementados com uma identidade própria que faz com que a história destes livros seja ao mesmo tempo singular e única.
Outro aspecto particularmente marcante é a arte, não só nos vastos cenários e no equilíbrio entre movimento e inércia (que reflecte com uma precisão poderosa o contraste entre o lado da violência e o da resistência pacífica), mas sobretudo numa expressividade surpreendentemente intensa tendo em conta que as personagens são animais. Miss Bengalore, sobretudo, reflecte nos seus traços todo um vasto leque de emoções, o que, mais uma vez, realça o lado humano da história, além de gerar também uma maior empatia.
Em termos de desenvolvimento, escusado será dizer que, sendo apenas o segundo volume, há muito que fica em aberto, mas sobressaem dois aspectos. Primeiro, que, tal como no primeiro volume, este livro parece iniciar e encerrar uma fase de uma luta maior, o que significa que abre com um novo desenvolvimento e culmina com um fim que não é definitivo, mas que resolve essa dase do percurso. Segundo, que é tão grande a curiosidade que fica para o que se seguirá como a intensidade que caracteriza toda esta fase do percurso. E momentos intensos são coisa que não falta ao longo deste caminho.
Intensidade e beleza, emoção e proximidade. São estas as características essenciais desta segunda etapa de uma história que, além de surpreender pela humanidade, cativa da primeira à última página e fica na memória bem depois do fim. Mal posso esperar pelo terceiro volume desta fascinante - e visualmente belíssima - aventura.