sexta-feira, 30 de novembro de 2018

São Lágrimas, Senhor, São Lágrimas (Fernando Correia)

Basta ligar a televisão ou abrir um jornal para nos cruzarmos com estas histórias recorrentes: casos de violência doméstica que acabam em morte, mesmo quando previamente sinalizados, situações em que o medo continuado fez com que tudo se descobrisse demasiado tarde e também as batalhas jurídicas que se seguem à denúncia. Mas quebrar o silêncio é o primeiro passo e é essa a mensagem que, através das histórias reais reunidas neste livro, o autor pretende transmitir. O resultado é um livro perturbador - mas muito, muito relevante.
Sendo um livro relativamente breve, e que contém várias histórias, um dos aspectos mais marcantes prende-se com a capacidade de, em poucas páginas, conter uma vida inteira sem nunca parecer que há algo por dizer ou outro lado da história. Os factos são os factos - puros e duros - e é a estes, bem como ao impacto emocional que têm, que o autor se cinge, o que faz com que a mensagem sobressaia com mais intensidade. 
Há, aliás, um contraste curioso na forma como este livro está estruturado. A introdução que o autor faz a cada história, com o seu registo como que pensativo, quase poético, contrasta fortemente com a brutalidade dos casos. E, se isto cria uma espécie de efeito de choque - como se de dois mundos diferentes se tratasse - também realça o verdadeiro âmago da questão. A violência existe e, às vezes, vem de onde - e como - menos se espera. Conhecer os casos, conhecer as histórias, é por isso fundamental.
Às histórias, une-as o demónio da violência doméstica. O resto é diferente: diferentes meios, diferentes classes sociais, gente de poucos estudos e com cursos superiores, fortes e vulneráveis, mas todos susceptíveis. O que reforça também outra faceta da mensagem: a violência existe e não apenas nos meios instruídos. Às vezes, está onde menos se imagina e não é mais nem menos importante por afectar alguém com uma posição mais (ou menos) privilegiada.
Trata-se, em suma, de um livro relevante e de uma importante chamada de atenção, e basta isso para justificar a leitura. Mas é também um livro marcante, não só pela mensagem que transmite, mas, acima de tudo, pela forma precisa e clara como retrata os diferentes casos - e as angústias a eles associadas. Vale a pena, pois, ler este livro. E pensar... principalmente pensar.

Autor: Fernando Correia
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Então, Boa Noite (Mário Zambujal)

Afonso Júlio é um homem peculiar. Devido a uma alegada plasticidade dos neurónios, passa as noites acordado e, de dia, dorme profundamente. Ora, isso traz inconvenientes, não só profissionais, mas ao nível dos relacionamentos amorosos. E, como se não bastasse esta circunstância invulgar, Afonso Júlio vê-se agora a braços com uns quantos assuntos a resolver. O padrinho deixou-lhe uma carta que, com três anos de atraso, acaba de lhe chegar às mãos e que o incumbe de cobrar uma dívida e de casar com uma desconhecida sobrinha. E a mulher dos seus sonhos desapareceu, cabendo-lhe agora a tarefa de a encontrar. Tudo nos seus horários bizarros em que a noite começa ao amanhecer.
Com o seu protagonista invulgar e uma história cheia de peripécias, tanto no que respeita à difícil "missão" de Afonso Júlio como às histórias do seu passado, este é um livro que cativa, em primeiro lugar, pelo delicioso sentido de humor. É difícil resistir às aventuras de Afonso, com a sua atribulada vida nocturna (ou diurna?) e os seus complicados amores. Além disso, há algo de fascinante em acompanhar o percurso de um herói com traços que são tudo menos heróicos. Seja no ocasional episódio de conflito, seja nos grandes gestos de sedução, Afonso Júlio está longe de ser o herói másculo e cheio de coragem. E talvez seja por ser tudo menos isso que é tão fácil torcer para que o caminho lhe corra bem.
Também particularmente cativante é a leveza da escrita, com o seu ajuste perfeito às peculiaridades da história. Afonso Júlio pode ter uma série de sarilhos para resolver, mas são sarilhos que, associados à sua muito invulgar personalidade, proporcionam momentos divertidíssimos. E, assim, a leveza da forma como o enredo é narrado ajusta-se perfeitamente ao estranho e delicioso humor das circunstâncias e a brevidade e simplicidade das soluções só as torna mais surpreendentes. 
E, claro, há sempre a relação entre o protagonista e as mulheres, algo que parece ser característico dos "bons malandros" do autor. É como que um elo comum entre diferentes histórias que, embora únicas e distintas, parecem reforçar o laço sempre presente de uma malandrice bastante inofensiva.
Somadas as partes, fica naturalmente a melhor das impressões: a de uma história leve, divertida e cheia de surpresas. Invulgar, como o seu noctívago protagonista, e muito, muito cativante, um livro para devorar de uma assentada. E que recomendo, naturalmente. 

Autor: Mário Zambujal
Origem: Recebido para crítica

Divulgação: Novidade Emporium

Prepare-se para uma história envolvente, uma mistura de romance de época e de aventuras em ambiente palaciano onde personagens fortes e tramas surpreendentes prendem o leitor a cada momento. Leónia Lencastre, inteligente e corajosa neta bastarda do rei, e Alexandre Toledo destemido Cavaleiro da Ordem e defensor do Reino, são protagonistas de um intrincado enredo onde ódios, lutas e traições polarizam toda a acção. Conseguirá o amor vencer as duras batalhas que têm que enfrentar?

terça-feira, 27 de novembro de 2018

Os Dados Estão Lançados (Jean-Paul Sartre)

Pierre, chefe de um grupo de conspiradores contra o regime prestes a entrar em acção, vê a sua obra interrompida por uma inesperada traição. No mesmo dia, Ève, uma senhora da sociedade, é envenenada pelo marido ambicioso. E, do outro lado da morte, descobrem não só estas revelações difíceis, mas também uma inesperada esperança. Foram, na verdade, feitos um para o outro e estipulam as regras que, não se tendo encontrado em vida, deverão ter uma nova oportunidade - vinte e quatro horas - para se amarem, se quiserem retomar a sua vida humana. Só que os dados estão lançados e o que parecia uma paixão fácil na morte revela-se bastante mais complexa em vida. Principalmente porque ambos têm assuntos inacabados a resolver.
Quando ouvimos falar em Jean-Paul Sartre, nome maior do existencialismo, imaginamos a contemplação das grandes questões da vida e da morte, do sentido ou da falta dele. E talvez por isso imaginemos também uma obra mais densa, mais elaborada. Era esse, pelo menos, o meu caso. Surpreende, por isso, logo às primeiras páginas a envolvência e a fluidez deste pequeno livro onde todos os acontecimentos se cingem ao essencial e os sentidos - simbólicos, emocionais, pessoais ou universais - surgem da acção, mais do que propriamente da introspecção. Surpreendentemente viciante seria, pois, uma boa forma de começar a descrever esta história.
Surpreende também o contraste vincado entre a leveza e a intensidade de um enredo onde há sempre algo de notável a acontecer com a presença evidente dos grandes temas que estão, de facto, lá. Basta a premissa, aliás: a morte, do outro lado da vida, enquanto lugar de observação impotente, de conformismo e indiferença, de vago divertimento com as tribulações dos vivos. O amor, intenso quando tudo o que existe é o par, mas muito mais complicado quando outros valores se levantam. A luta por uma causa, o espírito de sacrifício - e, por outro lado, o egoísmo, a ambição, a traição. Tudo numa história relativamente breve, e tudo mais em actos do que em reflexões. E, por isso mesmo, tudo tão marcante.
E, claro, isto leva ao lado emocional, também ele surpreendentemente forte. Bastam as circunstâncias de Eve para despertar empatia e as de Pierre para gerar uma certa admiração. E, à medida que a história evolui, primeiro para a descoberta da morte, depois para as possibilidades do amor e da correcção dos males, também as emoções se tornam mais intensas. É absurdamente fácil sentir com os protagonistas: a confusão, o afecto, a ternura, a ira... a resignação. Pois basta o título para nos dizer que haverá nesta história inevitáveis - mas nem essa certeza faz com que deixemos de torcer para que as coisas possam ser diferentes.
Nem sempre é precisa uma grande complexidade para dar forma a um grande livro  - até porque a complexidade emerge, às vezes, das coisas mais simples. É esse o caso deste Os Dados Estão Lançados: história intensa, envolvente, viciante e cheia de grandes questões nas pequenas coisas. Um livro notável, em suma. 

Autor: Jean-Paul Sartre
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

O Todo ou o Seu Nada (Amadeu Lopes Sabino)

Náufrago, professor, jornalista, escritor. Autor de obras marcantes e criador de outras que pouco passaram do título. Célebre no seu tempo pela autoria de Fogo no Mar, João Falcato levaria uma vida de mudanças constantes, de maior ou menor mediania e deixaria sobretudo as suas marcas naqueles que o conheceram mais de perto. Como o narrador desta exacta história.
Espécie de romance biográfico, que mistura factos, ideias e ficções, este é um livro que desperta sentimentos ambíguos. Enquanto romance, gera uma inevitável sensação de distância, não só pelas longas exposições de ideias e contextos políticos, mas pela às vezes parca empatia que desperta para com o seu protagonista. Enquanto biografia, é precisamente o pormenor do contexto que torna a leitura interessante. 
Talvez a maior qualidade do livro esteja na escrita e na forma como, quando menos se espera, faz surgir de uma longa divagação uma frase memorável ou um momento de especial impacto que conferem a tudo uma nova perspectiva. Nem sempre é fácil admirar a personagem, com as suas relações conflituosas (principalmente no que ao casamento diz respeito) e a estranha mistura de ambição e desinteresse que parece moldar todos os seus planos. Além disso, as longas deambulações pelas questões políticas e sociais - embora relevantes, principalmente no que toca à forma como reflectem a mentalidade da época - reforçam a sensação de distância face a uma figura que, já de si, não desperta grandes proximidades. Ainda assim, há momentos notáveis, sendo o final o mais interessante de todos eles.
Olhando, por outro lado, para o aspecto biográfico, há ainda uma outra característica que se destaca: é que não é só a vida de João Falcato que é contada nas páginas deste romance. É todo o contexto do tempo e de outras figuras sonantes da sua época. Há, pois, muito de interessante a descobrir - no contexto político, nas formas de pensamento, no contraste entre aspirações de mudança e pensamentos ainda colados ao passado - e uma visão bastante clara da época abrangida por este livro. 
Talvez não seja o mais envolvente dos romances, até porque a sua figura central não é - nem parece que pretendesse sê-lo - um herói. É, ainda assim, uma leitura interessante, não só pelo vasto conhecimento contido, mas também pelos momentos notáveis que fazem com que tudo valha a pena. Interessante e com as suas surpresas, leva o seu tempo... mas vale a pena ler. 

Autor: Amadeu Lopes Sabino
Origem: Recebido para crítica

domingo, 25 de novembro de 2018

Teresa de Calcutá (Maria Isabel Sánchez Vegara e Natascha Rosenberg)

Desde pequena que Agnes sonhava ajudar os outros e, inspirada pelo exemplo de um padre missionário, viria a deixar a sua terra natal e a construir uma imensa missão de auxílio aos mais necessitados. Ficaria conhecida como Madre Teresa de Calcutá e viria a ser canonizada. Esta é a sua história contada aos mais novos.
Parecem ser características desta colecção a escrita simples com rima, as ilustrações bonitas e cheias de cor e a simplicidade que enfatiza o essencial. São também estas as características que mais se destacam neste livro em específico, onde, contada em poucas páginas, é possível ficar com uma ideia clara da história de Teresa de Calcutá e, ao mesmo tempo, com uma mensagem muito positiva de amor e ajuda.
É, naturalmente, um livro pensado para os mais pequenos, bastante breve e relativamente simples. Mas é também um daqueles livros que conseguem evocar nos leitores mais velhos a agradável sensação de um regresso à infância. Lembram-se? De quanto bastavam umas poucas páginas para nos fazer sonhar e viajar e aprender também? Pois este é um livro pequeno, mas desperta essa mesma sensação, não só pelo percurso da sua protagonista, mas pela forma colorida e cativante como este é contado.
Cinge-se ao essencial, claro, como é natural num livro infantil. Mas tem também este condão: o de despertar a curiosidade sobre a vida da sua protagonista. Lendo este pequeno livro, aprende-se a linha essencial da história. Mais tarde, haverá espaço e livros - há sempre livros - para descobrir o pormenor.
A colecção chama-se Meninas Pequenas, Grandes Sonhos. E é também disso que trata este livro: da história de uma menina que concebeu - e realizou - um grande sonho, deixando assim a sua marca no mundo. Uma história bonita, cativante e muito interessante.  

Autores: Maria Isabel Sánchez Vegara e Natascha Rosenberg
Origem: Recebido para crítica

sábado, 24 de novembro de 2018

Os Templários (Dan Jones)

Nasceram como uma ordem de pobres cavaleiros destinada a proteger os peregrinos durante as suas viagens à Terra Santa, mas protagonizariam uma ascensão imensa e uma queda ainda mais estrondosa. Grandes guerreiros, homens influentes, dotados de disciplina e organização incomparáveis, inspirariam admiração e ódio. E, cada vez mais embrenhados nas malhas do poder, cairiam às mãos de uma outra ambição. Esta é a história dos Templários - peregrinos, combatentes, banqueiros e hereges - das origens ao seu amargo fim.
Bastante extenso e muito completo, uma das primeiras coisas que importa destacar acerca deste livro é a organização. Abrangendo grandes conflitos e tendo como protagonista uma organização espalhada por vastos territórios, é apenas natural que percorra diferentes períodos e diferentes locais - referindo, por vezes, acontecimentos simultâneos em diferentes territórios. A organização cronológica permite, por isso, uma visão mais clara do todo, acompanhando os diferentes ramos e facetas da Ordem e também o crescimento - e desmoronamento - das suas amplas relações.
Uma vez que abrange um vasto período de tempo, uma ordem numerosa e as vastas movimentações das cruzadas, é apenas de esperar uma abundância de nomes e datas. Também aqui sobressai a estrutura do livro, que, com a sua organização clara e escrita acessível, permite assimilar facilmente todos os pormenores e proporciona uma leitura envolvente e agradável, quase como se de um romance se tratasse. Além disso, a história em si tem muito de cativante, desde os relatos das grandes batalhas ao inevitavelmente sombrio processo que conduziria à extinção da Ordem. 
Trata-se de um retrato estritamente histórico, o que significa que tenta não tomar partidos (embora, na fase final, seja difícil não se ficar com uma opinião... pouco abonatória... acerca de Filipe, o Belo) e que se cinge essencialmente aos factos. Assim, o que acontece é que os aspectos míticos frequentemente associados aos Templários - a guarda do Santo Graal, a adoração de Baphomet, entre outros - são remetidos apenas para um epílogo que analisa o legado templário no imaginário das pessoas. O resto é história pura e dura - e mais do que suficiente para fascinar.
Completo, cativante e esclarecedor, eis, pois, uma belíssima forma de conhecer a fundo a complexa e fascinante história dos Templários, com todas as movimentações militares, políticas e também religiosas (ou não fosse o apogeu da Ordem no tempo das grandes cruzadas). Muito interessante, em suma. E muito bom.

Título: Os Templários
Autor: Dan Jones
Origem: Recebido para crítica

Para mais informações sobre o livro Os Templários, clique aqui.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

O Príncipe Piloto (Henrique Sequerra)

Segundo filho de D. Luís, Afonso de Bragança nunca esteve destinado a reinar e, por isso, construiu uma vida diferente. Embora menos eficiente nos estudos e mais concentrado nos conhecimentos práticos, deixaria, à sua maneira, uma marca no seu tempo, tanto antes como depois da entrada do automóvel em Portugal. Piloto exímio, muito faria para popularizar esse novo engenho. E, entre tempos conturbados e uma iminente mudança de regime, manter-se-ia discreto, mas leal aos seus, até ao exílio e à derradeira ruptura.
Dividido entre a história de D. Afonso e a história mais ampla do desenvolvimento automóvel em Portugal, este é um livro que gera duas impressões distintas. Se em ambas as facetas a escrita é clara e agradável, já o conhecimento transmitido gera impactos diferentes quanto aos dois temas. No que toca à história dos Bragança, é apenas natural que se reconheçam alguns aspectos - quanto mais não seja das aulas de História - e o clima de tensão e mudança em que a vida do príncipe decorre confere à leitura a mesma fluidez de um romance. Já no que toca ao automóvel, surge uma maior quantidade de elementos específicos, nomeadamente no que respeita ao conhecimento dos modelos, o que pode ser um pouco confuso para quem, como eu, perceber pouco da matéria.
Não deixa, ainda assim, de ser um livro muito interessante em ambos os aspectos. Não sendo demasiado extenso, é bastante completo, quer na abordagem aos primeiros anos da indústria automóvel, quer na história dos últimos dias dos Bragança enquanto reis (e um pouco além). Além disso, o vasto conjunto de fotografias e ilustrações que acompanha o texto permite uma visualização mais clara não só das personagens, mas de certos aspectos específicos (como, por exemplo, a publicidade) do mundo automóvel desse período.
Claro que, ao centrar a história em Afonso, ficam muitas questões em aberto no que toca aos outros membros da família real. Ainda assim, é contado o suficiente para se ficar com uma boa ideia das relações - e tensões - entre os diferentes elementos, bem como do contexto global da época. O resto... bem, o resto justificaria mais um - ou vários - livros. Aqui fica o essencial, e isso basta.
Fica, pois, a impressão de um livro claro, acessível e de muito agradável leitura sobre os últimos dias da monarquia e os primeiros do automóvel em Portugal. Relativamente breve, mas bastante complexo, um livro muito interessante.

Autor: Henrique Sequerra
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

A Sereia de Brighton (Dorothy Koomson)

Quando, após uma saída sem autorização, Nell e a sua amiga Jude encontraram um cadáver na praia e, depois de denunciarem o caso à polícia, passaram por uma experiência traumática, estavam longe de imaginar o que se seguiria: o desaparecimento de Jude e uma perseguição à família de Nell por parte de um polícia particularmente preconceituoso. Agora, vinte e cinco anos passados, o fantasma da Sereia de Brighton continua a pairar sobre a vida de Nell e todas as suas acções. Por isso, ela está decidida a descobrir finalmente o que aconteceu. Só que as respostas são complexas, principalmente quando se trabalha sozinha - ou com aliados indesejáveis. E, quando Nell começa a aproximar-se da verdade, novos perigos começam também a surgir... vindos de onde menos espera.
Alternando entre períodos diferentes e acompanhando, essencialmente, duas perspectivas também muito distintas, este é um livro que, apesar de relativamente extenso, facilmente cativa. Primeiro, pela aura de mistério que nasce logo desde os primeiros capítulos. E depois, e principalmente, pelas muitas emoções fortes que a história desperta.
É fácil simpatizar com Nell desde o início, com a descoberta do cadáver e todos os subsequentes traumas da sua vida a fazerem sobressair um caminho árduo e difícil. E o mesmo se aplica a Macy, embora com reacções totalmente distintas. Este é, aliás, um bom ponto de partida para destacar uma das principais qualidades desta história: a construção de um enredo em que nenhuma das personagens é perfeita e todas (ou quase) são passíveis de suspeita, mas em que muitas delas têm grandes qualidades redentoras e uma bondade intrínseca que se torna mais impressionante por nascer também de imperfeições. 
Claro que há também vilões: afinal, há cadáveres abandonados que precisam de explicação. Mas também daqui surge algo de impressionante: por um lado, os responsáveis dos crimes são totalmente inesperados, sendo que aquilo que parecia ser a natureza dessas personagens é afinal uma ilusão. Por outro, o sempre presente John Pope, com os seus preconceitos e comportamento abusivo, está do que deveria ser o lado certo - mas nem isso o redime face aos seus comportamentos. 
Importa ainda destacar um outro aspecto. Tendo na base uma série de crimes, é apenas natural que grande parte do enredo gire em torno do mistério. Mas a verdade é que há muito mais à volta disso: questões de racismo e de preconceito, grandes segredos capazes de condicionar uma vida, problemas de ansiedade também eles capazes de abalar tudo e ainda a sempre complicada - e profundamente afectuosa - relação entre irmãs. Tudo entrelaçado de forma equilibrada, cativante e cheia de emoção.
Tudo somado, fica a melhor das impressões: a de uma história envolvente e equilibrada, com um grande mistério por base e um enredo que é muito mais do que a mera resolução de um caso. Intenso, emotivo e cheio de surpresas, uma história de fantasmas que perduram - e de amor fraternal para lá das dificuldades. Muito bom. 

Autora: Dorothy Koomson
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Frida Khalo (Maria Isabel Sánchez Vegara e Gee Fan Eng)

Será possível contar a história de uma vida em poucas frases e umas quantas - ainda que expressivas - imagens? Depende. Se o objectivo for percorrer exaustivamente todos os factos, então provavelmente não. Mas se o que se pretende é contar as linhas gerais e dar a conhecer - principalmente os mais novos, mas não só - uma figura importante, então não só é possível fazê-lo, mas também dar-lhe o encanto de um quase conto de fadas. É o que acontece neste livro que, de forma muito breve, mas muito cativante, apresenta Frida Kahlo aos seus jovens - e não tão jovens - leitores.
Um dos aspectos mais bonitos deste livro é que, com as suas frases sucintas, mas com ritmo e rima quase melodiosos, e as ilustrações cheias de cor, é tão capaz de encantar os jovens leitores que nunca antes ouviram falar em Frida como aqueles de nós que, embora há muito passada a infância, descobrimos nas coisas simples a magia de tempos mais inocentes. Ler este pequeno livro é quase como um regresso à infância, ao tempo em que bastavam algumas frases para aprender algo de novo. E é isso que se pretende, afinal. Aprender - e aprender de forma cativante.
Também muito interessante é notar que, apesar da evidente brevidade, não parece faltar lá nada. Pode estar resumido em poucas linhas, mas o percurso de Frida Kahlo está todo neste livro - seja no breve texto, seja nas belas imagens que o complementam. E há além disso uma concentração no sonho - e na ideia de que todos os sonhos são possíveis - que transmite inevitavelmente uma mensagem muito positiva.
Bonito, interessante e com uma mensagem forte: é esta, pois, a impressão que fica deste livro pensado para dar a conhecer aos mais novos a história de uma Menina Pequena com Grandes Sonhos. Uma breve e muito agradável leitura para os mais pequenos... e não só. 

Título: Frida Kahlo
Autores: Maria Isabel Sánchez Vegara e Gee Fan Eng
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Little (Edward Carey)

Tendo perdido os pais muito nova, a pequena Anne Marie Grosholtz dá por si a agarrar-se ao peculiar Doutor Curtius e às suas criações de cera como modo de vida. Mas, quando Curtius se dedica a fazer cabeças de cera, a sua situação torna-se demasiado delicada e vê-se forçado a fugir com Marie para Paris. Aí, conhecem a ambiciosa Viúva Picot e a vida de Marie muda para sempre. Em tempos aprendiz de Curtius, é agora apenas uma criada numa casa estranha. Mas tem, ainda assim, os seus sonhos e os seus talentos, e o mundo à sua volta está a mudar tão depressa que Marie terá, por fim, de encontrar o seu lugar no mundo. Como manter esse lugar, contudo, quando o mundo parece estar a desabar sob o peso da Revolução - e a morte espreita a cada esquina?
Contado do ponto de vista de Marie e acompanhando grande parte da sua vida, um dos aspectos mais impressionantes deste livro é a forma como consegue retratar um período inteiro pelos olhos de uma única perspectiva pessoal. Durante grande parte do seu tempo em Paris, Marie é pouco mais que uma criada, mas as suas percepções da iminente Revolução transmitem com absoluta clareza as tensões e medos da época. Além disso, a história de Marie começa antes e acaba depois desse período, pelo que é possível ver o contraste entre diferentes momentos e a forma como a sua vida (e as daqueles que a rodeiam) muda dramática e inesperadamente.
Marie é também uma personagem muito carismática. Conhecemo-la enquanto criança, vulnerável e exposta, e vemo-la aguentar muito. Esses momentos aproximam-nos dela: sentimos a sua tristeza, os seus medos, a sua perda... o seu amor. A delicada relação de Marie com Curtius, e depois com Edmond, a longa batalha pelo seu lugar contra a Viúva Picot, a luta pela sobrevivência quando tudo ameaça desabar... Marie é vulnerável, mas é forte, e isto torna-se mais impressionante devido ao cenário e às personagens em seu redor. Personagens que, elas mesmas peculiares, deixam também a sua marca nos seus comportamentos e escolhas - nos gestos de amor e nas traições.
O conteúdo é sempre o mais importante, mas, neste caso, há dois aspectos formais que importa mencionar. Primeiro a escrita: bela, expressiva, cheia de emoção e de poesia, mas com um ritmo natural que encaixa perfeitamente na história. E depois as ilustrações: também belas e peculiares, complementando a história com recordações visuais do estranho e fascinante mundo em que Marie se move. Tudo se torna mais marcante devido a estes elementos. O resto... O resto é tudo Marie.
Talvez houvesse mais a dizer sobre esta belíssima história, mas não sem estragar a experiência da descoberta. Fica, pois, esta soma de todas as partes: uma história cativante, bonita e comovente. Uma pequena maravilha, em suma. 

Título: Little
Autor: Edward Carey
Origem: Recebido para crítica

domingo, 18 de novembro de 2018

O Meu Coração Entre Dois Mundos (Jojo Moyes)

Louisa Clark tomou finalmente a decisão de viver sem medos e dizer sim às coisas e, por isso, acabada de chegar a Nova Iorque, está pronta a dar início a uma nova vida. Mas bastam alguns dias para perceber que, além de tudo ser novo, é também muito mais complicado do que esperava. Como se não bastassem as regras e complicações da vida dos super ricos, Agnes Gopnik, a mulher para quem trabalha, guarda grandes segredos e, embora a sua fragilidade a leve a querer fazer de Louisa uma amiga, talvez Lou devesse ter bem presente que continua, afinal, a fazer parte do pessoal. Além disso, a relação que criou com Sam começa também a manifestar o peso da distância... principalmente a partir do momento em que tanto Lou como Sam se cruzam com novas pessoas. À medida que o tempo passa e os meandros da vida começam a ganhar uma nova forma, Louisa terá de descobrir o seu lugar no mundo - e se prefere viver à imagem dos que a rodeiam ou como a pessoa que realmente é.
Sendo a continuidade da história de Viver Sem Ti, também sequela de um livro aparentemente completo, uma das primeiras coisas a destacar neste livro será inevitavelmente a forma como consegue acrescentar coisas novas - e uma nova fase de crescimento - a uma história que podia perfeitamente ter acabado em Viver Depois de Ti. A vida continuou para Lou e não deixa de ser notável a forma como a autora consegue construir novas histórias para ela quando a figura central que deu ao primeiro livro um tão grande impacto já não está presente. Ou será que está?
É que parte do que torna estes livros tão cativantes é que, pese embora a ausência de Will, a sua memória agora mais discreta continua a funcionar como força motriz nas decisões mais importantes. E, assim, o elo de ligação entre os três livros torna-se mais forte, sem que nenhum deles se torne repetitivo. Além disso, cada fase da vida de Lou é um todo em si mesma, e um todo cheio de aventuras, experiências e descobertas, o que faz com que seja difícil não querer continuar a acompanhar esta peculiar e tão cativante protagonista.
Há um pouco de tudo nesta história, desde o contraste entre a vida dos super ricos e a dos trabalhadores numa cidade dura aos erros que assombram toda uma vida, mas que podem sempre ser corrigidos, passando, é claro, por toda uma sequência de sucessos, fracassos e novos sucessos. Lou tem uma vida intensa e preenchida e cada episódio que protagoniza deixa, à sua maneira única, uma grande marca. O mesmo se aplica, aliás, às personagens que a rodeiam, já que, embora de forma mais discreta, também elas protagonizam vários momentos marcantes.
E parece ser aqui que Louisa encontra finalmente o seu caminho, por entre situações divertidas, momentos profundamente emotivos e uma mistura de nostalgia e de esperança que torna tudo tão mais impressionante. No fim, fica a sensação de ter viajado com Louisa até Nova Iorque, sentido com ela os seus desgostos e frustrações e acompanhado, enfim, as grandes descobertas e revelações da sua vida. 
Cativante, emotivo, cheio de surpresas e de momentos deliciosos, trata-se, pois, do fim de ciclo ideal para uma protagonista muito querida. E uma lição, também, de certa forma, sobre o valor da identidade própria num mundo que, às vezes, se impõe demasiado. Muito bom. 

Autora: Jojo Moyes
Origem: Recebido para crítica

sábado, 17 de novembro de 2018

Homo Creator (Edward O. Wilson)

A capacidade de pensar e de criar faz parte do que torna a espécie humana tão avançada. Mas de onde vem a criatividade? E de que forma se enquadra na possibilidade de um sentido - ou de uma explicação - para a condição humana? Recorrendo a exemplos da natureza, à sua própria experiência e ao percurso evolutivo das ciências e das humanidades, o autor debruça-se sobre estas e outras questões para tentar dar uma explicação mais precisa acerca das origens genéticas, bem como das influências ambientais, da criatividade. E recorre a um passado muito distante - para contemplar, talvez, um possível futuro.
Provavelmente o aspecto mais interessante deste livro é a forma como o autor conjuga múltiplos elementos - da história, da ciência, da filosofia e da sua própria experiência pessoal - para traçar uma análise bastante vasta das origens e mecanismos da criatividade. Não se cinge, aliás, à criatividade, debruçando-se sobre a natureza das humanidades, o seu conflito com a ciência e até o impacto destas duas grandes áreas no equilíbrio económico e social dos dias de hoje. Recua até aos primórdios da evolução da espécie humana, debruçando-se depois sobre as perspectivas da ciência moderna. E tudo de forma acessível e interessante, sem nunca se tornar monótono ou maçador.
Esta expansão para diferentes aspectos - embora todos eles pertinentes - tem uma contrapartida: a sensação de que sobre todos eles haveria mais a desenvolver. Ainda assim, não parece que o objectivo seja uma exploração exaustiva, mas antes uma visão global. E nesse sentido, o livro cumpre plenamente o seu objectivo, traçando hipóteses para as origens e o futuro da criatividade e também para o desenvolvimento das humanidades na era da ciência.
Importa ainda destacar dois aspectos que, embora possam parecer menores na perspectiva global, contribuem em muito para tornar a leitura mais interessante: a fluidez de uma escrita que não se perde em demasiados pormenores e o recurso a experiências pessoais, o que permite não só uma percepção mais clara, mas também uma sensação de maior proximidade relativamente às descobertas narradas.
Finda a leitura, fica a impressão de um livro abrangente e esclarecedor, escrito de forma acessível e com muito de interessante a considerar. Uma boa leitura, em suma, e uma bela perspectiva das origens da criatividade. 

Título: Homo Creator
Autor: Edward O. Wilson
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Obras Completas, volume I (Maria Judite de Carvalho)

Quando se começa a descobrir um autor de obra vasta, é difícil, às vezes, decidir por onde começar. Este livro resolve facilmente esse problema. Primeiro volume das obras completas de Maria Judite de Carvalho, aqui se reúnem os livros Tanta Gente, Mariana e As Palavras Poupadas, ambos colectâneas de contos e ambos obras deveras relevantes.
E o primeiro conto é precisamente o que dá título ao primeiro livro. Tanta Gente, Mariana apresenta a vida de uma mulher só no meio do mundo, uma vida de enganos, desamores e da indiferente crueldade da normativa social. Relativamente longo, mas magnificamente escrito, transporta-nos para o pensamento - e para o coração, principalmente - de Mariana, fazendo-nos sentir as suas esperanças e desejos e, por isso, também a imensidade da sua desolação. Cativante, angustiante e emotivo, um conto verdadeiramente memorável.
Bastante mais breve é A Vida e o Sonho, história de Adérito e das linhas que separam o sonho da vida real. Introspectivo, questiona escolhas próprias e alheias, pondo o protagonista em destaque como alguém com um grande e indefinível sonho, mas preso a uma realidade a que nunca conseguirá escapar. É isso que torna marcante este pequeno conto: a peculiaridade das circunstâncias do protagonista e a forma como, dessas circunstâncias, surge um sentimento quase universal.
Segue-se A Avó Cândida, também uma história de amores profanos, mas estes preservados em segredo até ao raiar do derradeiro dia. Começa por mostrar os desgostos de Clara, mas é a história da Avó que lhe confere um tão intenso final. E deixa também uma pequena reflexão: que segredos se escondem, afinal, sob a fachada da moralidade?
A Mãe fala de uma mulher sem filhos e de um caso amoroso destinado à tragédia. Relativamente breve, mas bastante introspectivo, consegue, ao mesmo tempo que surpreende com as revelações finais, questionar as pequenas rotinas e indiferenças do quotidiano das relações.
A Menina Arminda fala de uma mulher atingida pela tragédia e pelas subsequentes tragédias inspiradas por esse acontecimento inicial. Melancólico, feito de tristeza tanto nas palavras como nos acontecimentos, marca, em primeiro lugar, pela forma como retrata a durabilidade de um único momento. Depois, pelos contrastes entre indiferença e estranha lealdade e, acima de tudo, pela forma como de um erro nascem outros, culminando num final devastador.
Noite de Natal conta uma história de vício e violência em que, numa noite de suposta paz, todos os sonhos e esperanças se desfazem. Angustiante, como a situação das protagonistas, marca pela forma como, embora encaminhado para uma conclusão previsível, reflecte em cada momento todo o peso das trágicas circunstâncias.
Segue-se Desencontro, e basta o título para adivinhar que não será propriamente uma história de final feliz. Os protagonistas são um homem habituado a uma vida errante e uma mulher que esperou... e depois deixou de esperar. Trata-se de um encontro final e o que mais impressiona é a forma como convenções e modos de pensamento distintos criam um contraste tão forte entre a posição de ambos. E, claro, como nenhum deles é exactamente quem pensava ser.
O último conto deste primeiro livro é O Passeio no Domingo, história de uma transgressão planeada e de como a vida às vezes tem outros planos. Pausado, embora relativamente breve, é pelo inesperado das circunstâncias, em contraste com a vida meticulosamente planeada do protagonista, que este conto se destaca. Pois, questionando pela primeira vez as normas da sua vida, Marcelino acaba por... encontrar algo diferente do que esperava.
Passando agora a As Palavras Poupadas. Também neste segundo livro, o título é comum ao do primeiro conto. As Palavras Poupadas conta a história de Graça, uma mulher cuja vida é feita de silêncios, de segredos e de pequenas transgressões familiares. Uma vida de regras impostas e ultrapassadas e, por isso, uma história feita de grandes descobertas e pequenas tensões, num relato extenso e pausado, mas estranhamente fascinante e também capaz de gerar emoções intensas
Segue-se Uma História de Amor, muito breve conto de amor e morte, de um amor "ridículo", como dizia o poeta, e de consequências igualmente absurdas. Dividido entre o tom de benevolente diversão da narradora e a estranha crueldade da conclusão, é como se contivesse vidas inteiras nas suas poucas páginas, deixando uma marca intensa e poderosa ao chegar ao final da história.
Uma Varanda com Flores fala de uma tragédia e de uma dúvida perdida nas memórias de uma velinha. Misterioso, por um lado, devido à resposta que se procura, e por outro profundamente triste, cativa pela forma como estas duas facetas se conjugam para dar forma à desolação da vida.
Segue-se Choveu Esta Tarde, breve reencontro com um passado que deixou marcas, mas também a certeza de que a vida continua. Marca, além da belíssima escrita que caracteriza todos estes contos, pela facilidade com que nos transporta para dentro da cabeça da protagonista, com toda a sua saudade daquele passado.
É sobre a velhice e o isolamento que A Sombra da Árvore se debruça, na história de um acto desesperado contada com a tristeza e a ternura de quem contempla os sentimentos mais difíceis. É fácil compreender a angústia de Firmino e é talvez por isso que o final tem um tão grande impacto. E é também uma história que faz pensar - na vida, na morte e na passagem de uma para a outra.
Surge depois A Noiva Inconsolável, história de uma solidão profunda e de um estranho amor que subitamente - ou talvez não - se desfez. Cativa, acima de tudo, por dois aspectos: pelo retrato breve, mas muitíssimo certeiro, da hipocrisia que, por vezes, se manifesta nas relações sociais, e pela forma como retrata a possibilidade de se estar só no meio das outras pessoas. Bastante profundo, principalmente tendo em conta a brevidade.
O Aniversário Natalício, por sua vez, fala, como o título indica, de um dia de aniversário. Um aniversário onde os sucessos e fracassos da vida são profundamente analisados e que culmina num momento... peculiar. Pese embora a estranheza do final, é nas introspecções de Boaventura e na sua análise da passagem do tempo que está a grande força deste conto, ainda que fique uma certa curiosidade insatisfeita acerca da carta misteriosa.
Segue-se Câmara Ardente, história da morte de um homem autoritário e das marcas que deixa naqueles que se reuniram para o velar. Partindo de um momento dramático para mergulhar nas vidas e sentimentos das várias personagens, culmina num final enigmático que torna tudo ainda mais notável.
E tudo termina em Viagem, provavelmente o conto mais sombrio do livro e também o mais surpreendente. Fala de uma viagem de avião povoada por perspectivas trágicas da parte do protagonista, e mostra sentimentos sombrios, ressentimentos secretos... e uma certa expectativa que acaba por, inesperadamente, se cumprir.
Três pontos unem o conjunto de todos estes contos: uma escrita belíssima, uma visão profunda e perspicaz dos recessos mais escondidos da natureza humana e um conjunto de episódios e circunstâncias tão capazes de gerar sentimentos fortes como momentos de profunda introspecção. A soma é mais do que suficiente para justificar o valor desta leitura tão marcante como intensa e surpreendente. E uma clara recomendação.

Autora: Maria Judite de Carvalho
Origem: Recebido para crítica

Vencedor do passatempo Não Há Rosas sem Espinhos

Pois é, terminou mais um passatempo. E é mais uma vez chegada a hora de anunciar quem vai receber um exemplar do livro Não Há Rosas sem Espinhos.

E o vencedor é...

15. Bruno Moura (Águas Santas)

Parabéns e boa leitura!

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Segredos Mortais (Robert Bryndza)

Passou muito pouco tempo desde a resolução de um caso penoso, mas o crime não pára nem no Natal e, por isso, também Erika Foster o não fará. E o novo caso tem também contornos sinistros. Uma bailarina burlesca foi brutalmente assassinada à porta de casa e, embora não fosse alguém que despertasse grandes simpatias, Marissa tinha grandes aspirações e algumas ligações fortes. Não faltam por isso suspeitos e o caso torna-se ainda mais complexo com a descoberta de que há relatos de vários ataques por parte de alguém que usa uma máscara de gás... tal como o assassino de Marissa. Erika terá de reunir a sua equipa, seguir as pistas e descobrir o culpado. Ao mesmo tempo que lida com os seus próprios problemas pessoais.
Nunca deixa de ser impressionante a forma como, quando se começa a ler um novo livro dessa série, a sensação que fica é a mesma de ao ler o primeiro. Já conhecemos Erika, conhecemos o seu percurso pessoal e também os seus grandes casos, e conhecemos ainda as pessoas que a rodeiam. E, ainda assim, há sempre uma impressão de surpresa, não só por o caso ser totalmente novo, mas porque a vida parece evoluir a cada novo livro, mostrando-nos novas facetas das personagens. Cria-se assim um muito interessante equilíbrio: a familiaridade de regressar a um muito querido núcleo de personagens e a novidade de um novo e surpreendente percurso.
Parte do que torna Erika Foster uma figura tão carismática é o seu passado - o de antes do primeiro livro e os acontecimentos dos volumes anteriores. É, por isso, particularmente interessante acompanhar a evolução da protagonista, principalmente neste livro, que ocorre pouco depois de um último caso traumático e em que, embora sem qualquer relação com o caso em si, a vida pessoal de Erika adquire um papel tão preponderante. Além disso, estes elementos pessoais influenciam directamente o curso da história, seja por pequenas tensões com outras personagens, seja por passos que essas situações impõem. A história ganha impacto por ser mais do que apenas o caso, e isto deve-se também à marca deixada pelas personagens.
Mas passando ao caso. Como já vem sendo habitual, a linha principal do enredo é uma investigação com princípio, meio e fim, e é em torno dela que a narrativa se move. Assim sendo, importa destacar os seus elementos centrais. Misterioso e com laivos sinistros (potenciados pela presença da máscara de gás e pelo factor medo a ela associado), intriga desde o primeiro capítulo e vai surpreendendo a cada nova revelação. Seguem-se pistas, encontram-se e descartam-se suspeitos, correm-se perigos, falha-se, obtêm-se respostas... e no fim... bem, no fim, tudo é inesperado, não só porque nada fazia prever aquilo, mas porque tudo se ajusta na perfeição a certos comportamentos das personagens. 
E, claro, tudo é narrado com a maior naturalidade, seja um momento de perigo e de terror, seja uma discussão pessoal, seja ainda um pequeno rasgo de inesperada emoção ou introspecção por parte da protagonista. Os capítulos curtos e o enredo intenso conferem à leitura um ritmo viciante. A mistura de humor e de emoção dão-lhe um toque pessoal. E, no fim, tudo encaixa nos sítios certos, o caso resolve-se... como tem de ser... e a viagem revelou-se mais do que satisfatória.
É uma espécie de magia descobrir, ao sexto volume de uma série, todas as qualidades (e mais) que nos prenderam no primeiro e descobrir que, embora conhecendo tão bem as personagens, elas nunca nos deixam de surpreender. Quanto a Erika Foster... vale muito a pena conhecer Erika Foster e os seus casos. E este está mais que à altura dos melhores.

Autor: Robert Bryndza
Origem: Recebido para crítica

Divulgação: Novidade Saída de Emergência

Séculos antes dos acontecimentos de A Guerra dos Tronos, a Casa Targaryen – a única família de senhores dos dragões a sobreviver à Perdição de Valíria – fez de Pedra do Dragão a sua residência. Sangue & Fogo inicia a sua narração com a história do lendário Aegon, o Conquistador, criador do Trono de Ferro, e prossegue com o relato das gerações de Targaryen que lutaram para manter o icónico trono, até à guerra civil que praticamente destruiu esta dinastia. O que aconteceu realmente durante a Dança dos Dragões? Porque se tornou tão perigoso visitar Valíria depois da Perdição? Qual a origem dos três ovos de dragão de Daenerys? Estas são apenas algumas questões a que esta obra essencial dá resposta pela mão de um reconhecido meistre da Cidadela e das trinta e quatro ilustrações a preto e branco. Sangue & Fogo apresenta pela primeira vez o relato completo da dinastia Targaryen, permitindo uma compreensão perfeita da fascinante, dinâmica e por vezes sangrenta história de Westeros.

GEORGE R. R. MARTIN trabalhou dez anos em Hollywood como argumentista e produtor de séries e filmes de grande sucesso. Autor de várias colectâneas de contos e noveletas, foi em meados dos anos 90 que começou a sua obra mais famosa, As Crónicas de Gelo e Fogo. É a saga de fantasia mais vendida da actualidade e uma adaptação televisiva de grande sucesso foi produzida pela HBO. Autor multifacetado, a sua obra estende-se a géneros como o horror, a fantasia, a ficção científica. O autor vive no Novo México, com a sua mulher, Parris.

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Moonshine, Vol. 1: Sangue e Whisky (Brian Azzarello e Eduardo Risso)

Quando, em plena vigência da lei seca, Lou Pirlo é enviado pelo seu chefe para fazer um acordo com um homem que parece produzir uma bebida particularmente potente, Lou sente que está finalmente a merecer um pouco da confiança que sempre almejou. Mas as coisas não tardam a descontrolar-se. Holt, o homem que procura, é uma personagem estranha e o mesmo se aplica à família que o rodeia. Pior, não está nem um bocadinho interessado em fazer acordos. Já o chefe de Lou não aceita um não como resposta. E há coisas estranhas a acontecer - coisas fatais. E insistir em ficar, mesmo que seja por não ter alternativa, pode trazer a Lou consequências dramáticas.
Todos conhecemos uma ou outra história de mafiosos: fatos, armas, negócios obscuros e propostas... irrecusáveis. Também já ouvimos ou lemos histórias de lobisomens, com as suas transformações em noites de lua cheia e as ferozes consequências que daí resultam. Tudo interessante, certo? Agora imagine-se uma história em que estes dois elementos se combinam - e de forma poderosamente eficaz. O resultado é uma leitura viciante, intensa e cheia de surpresas.
Basta esta premissa e a forma como é desenvolvida para tornar a leitura cativante. Ao ambiente tenso juntam-se grandes momentos de acção, uma aura de mistério que confere a cada revelação um grande impacto e um emergir de possibilidades a cada novo desenvolvimento. Bastaria isto para que a leitura valesse a pena, até porque, com o seu ritmo intenso e personagens intrigantes, a história é praticamente irresistível. Mas há dois aspectos que importa destacar: a arte e a construção das personagens (principalmente do protagonista).
Da arte, sobressai a forma como reflecte na perfeição o contraste entre os dois mundos. Os fatos elegantes, a pose das personagens citadinas, as expressões sobranceiras (em oposição às expressões que surgem... noutras circunstâncias) evocam perfeitamente o ambiente das histórias de mafiosos. Até na cor isto se sente. E depois há o sangue, o fogo, as trevas, as grandes cenas de acção e violência naturalmente associadas à natureza feroz dos lobisomens. Poderiam ser dois mundos diferentes, mas surgem juntos neste livro - e que bem que eles ficam juntos.
Da construção de Lou, destaca-se uma estranhamente fascinante ambiguidade. O papel que desempenha, a relação com os seus "donos" e a forma como interage com algumas das outras personagens, fazem de Lou o tipo de figura que não desperta propriamente empatia instantânea. E mais, com o desenrolar da história, as complexidades começam a vir à tona, mas desengane-se quem espera uma transformação em herói. Lou é moralmente ambíguo e, curiosamente, é isso que o torna tão interessante. Pois, mesmo nos momentos de cobardia, de (tentativa de) manipulação e de pura e simples indiferença, há algo nele que nos faz querer saber mais. E, quando a vulnerabilidade surge... bem, é nesses momentos que o melhor de Lou se manifesta.
Somadas as partes, fica a impressão do mais promissor dos inícios. Intenso, cheio de surpresas, visualmente fascinante e com uma história capaz de fundir dois mundos num equilíbrio praticamente perfeito, deixa uma vontade quase irresistível de descobrir o que acontece a seguir. E é também dessa matéria que as melhores séries são feitas. 

Autores: Brian Azzarello e Eduardo Risso
Origem: Recebido para crítica

Divulgação: Novidade Quinta Essência

É Véspera de Natal. O vento faz rodopiar a neve sobre as ruas de Londres. À porta de uma casa em Angel Lane, uma bebé abandonada, embrulhada numa manta, aguarda a sua sorte…
Angel, cujo nome se deve à rua onde é encontrada, parece destinada a ter uma vida miserável. Embora seja acolhida numa casa cheia de amor, um cruel golpe do Destino atira-a novamente para as ruas da cidade, onde todos os dias luta para sobreviver.
E agora que o Inverno se aproxima, Angel treme de frio enquanto tenta vender azevinho a quem passa, na esperança de que alguém se compadeça dela. Podia estar mais confortável, pois possui uma jóia valiosa – um anel de ouro e rubi que vinha escondido na sua manta de bebé – mas prefere morrer à fome a abdicar do único laço que a prende às suas misteriosas origens…
Uma história baseada no clássico “A Menina dos Fósforos”, trata temas intemporais: o abandono infantil, a luta pela sobrevivência e o poder da bondade.
Um romance pleno de ternura, perfeito para as longas noites de Inverno.

Dilly Court cresceu em Londres e começou a trabalhar como argumentista para anúncios de televisão. Quando se dedicou aos romances, obteve um inesperado sucesso, e nunca mais deixou de escrever, quer sob o seu nome verdadeiro, quer sob o seu pseudónimo, Lily Baxter. Hoje em dia já tem quatro netos  - dos seus dois filhos – e vive no Dorset com o marido, passando grande parte do tempo a escrever ou a fazer longas caminhadas com o seu labrador, Barley.

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Mãe, Promete-me que Lês (Luís Osório)

Escrever, ao estilo de uma kafkiana Carta ao Pai, uma carta à mãe há muito perdida, mergulhando nas boas e más memórias do passado para ajustar, talvez, as contas que foram deixadas por saldar: é esta a linha essencial deste livro. Um livro que, vasculhando memórias intransmissíveis, dificilmente poderia ser mais pessoal, mas que, ainda assim, parece evocar sentimentos mais vastos e familiares, independentemente das divergências. Pois podem-se conhecer ou não as figuras mais célebres, que as relações, essas, são universais. E é este equilíbrio entre o íntimo e o global que torna esta leitura tão cativante.
Uma das primeiras coisas a surpreender neste livro é que, embora centrado em memórias pessoais, se lê como se de um romance se tratasse. Apresenta-nos as suas figuras - o autor, os elementos da família, os amigos, a sempre presente Mãe - como personagens completamente novas. São-no, aliás, para quem lê. E assim, o que acontece é que o mergulho que o autor da carta faz nas suas próprias memórias transporta-nos a essa mesma viagem, levando-nos a conhecer as suas principais figuras e os sentimentos muitas vezes complexos a elas associados.
É concebível que, ao escrever sobre uma pessoa amada que partiu, pudesse surgir a tentação de embelezar as coisas. Não é o que acontece aqui. Lembrando, mais uma vez, a carta de Kafka, também aqui há espaço para todo o tipo de sentimentos e memórias: afectos e ódios, laivos de ternura e grandes traumas. E o caminho é longo - é uma vida inteira - , mas há tanto para descobrir e tantos (e tão fortes) sentimentos por trás que é quase como viver também um pouco dessa vida. É um percurso único, sim, e absolutamente pessoal - mas é fácil encontrar pontos de empatia. E é isso afinal que fala ao coração.
Importa ainda falar da escrita em si, até porque, num registo tão pessoal, a forma como as coisas são ditas ganha outro peso. É de uma carta que se trata - de uma longa carta ao passado, talvez - e, assim sendo, faz todo o sentido o registo intimista do texto. Faz também sentido o divagar entre diferentes momentos, pois é de memória que se trata, não de uma história linear, e é também isso que cria a muito interessante sensação de ter entrado nas memórias sentimentais do autor - pois não mostra só as recordações, mas também os sentimentos que elas provocam.
Não é um romance, mas poderia sê-lo. Porquê? Porque é como descobrir toda uma vida de raiz. Com o seu registo pessoal e introspectivo, o seu deambular por memórias únicas, mas com pontos e sentimentos comuns a muitas outras vidas, e a abertura de quem fala a alguém muito amado, mas muito distante, é quase como ver alguém contar uma história a si mesmo. Tornando-a real para todos os que a lerem. 

Autor: Luís Osório
Origem: Recebido para crítica

domingo, 11 de novembro de 2018

Artemis (Andy Weir)

Jazz Bashara pode não ter a mais moralmente correcta das vidas, mas, para continuar a viver na cidade lunar de Artemis, está disposta a fazer qualquer coisa. Graças a uns quantos trabalhos mal pagos e ao seu negócio de contrabando, tem conseguido manter-se à tona, mas, quando falha um exame, a sua melhor hipótese desvanece-se subitamente. Agora, precisa de encontrar outra forma de saldar uma dívida antiga e, quando menos espera, um dos seus melhores clientes propõe-lhe um trabalho acima de todas as expectativas: bem pago, à altura das suas capacidades... e altamente ilegal. Jazz não consegue resistir. Só que há muito que não sabe acerca desse trabalho e, quando as coisas começam a descontrolar-se, pode estar em risco o futuro de Artemis. Para não falar da vida da própria Jazz.
Um pouco à semelhança do que acontece em O Marciano, um dos aspectos mais cativantes deste livro é a forma como o autor consegue conjugar uma boa dose de ciência (com explicações bastante detalhadas) e um cenário completamente novo, o que implica umas quantas descrições extensas, com um enredo cheio de acção e de surpresas e um núcleo de personagens muito interessantes. Não é difícil de prever que a soma de todas estas partes será uma leitura viciante. O que talvez já surpreenda é a forma como tudo parece encaixar na perfeição, com os momentos de tensão e de perigo a contrastar com o delicioso sentido de humor da protagonista e com os rasgos de emoção que surgem precisamente nos momentos certos. 
Dificilmente se poderia pedir algo mais diferente que uma cidade na Lua. E, contudo, tudo flui com naturalidade. O sistema que rege Artemis fascina desde as primeiras revelações e vai-se tornando cada vez mais intrigante à medida que mais dos seus estranhos meandros se vão tornando visíveis. Além disso, há várias questões pertinentes a transpor para a realidade terrestre, desde as movimentações de Jazz na economia paralela aos planos económicos da administradora - passando, é claro, pela estranhamente eficaz forma de justiça de Rudy.
E, claro, há as personagens propriamente ditas. Algo que cedo se torna evidente é que não há personagens perfeitas nesta história (ainda que Rudy, com a sua estranha dedicação à justiça, possa aproximar-se um bocadinho disso). Basta a profissão de Jazz para estabelecer a sua ambiguidade moral, mas as circunstâncias levam a que outras personagens sejam também testadas nesse aspecto. E não é só a moral complexa que as torna notáveis: as relações delicadas, a forma como uma situação de perigo faz com que certos elementos do passado venham à tona, as amizades, os conflitos e as reconciliações possíveis, tudo isto faz parte do que confere intensidade à história. E não é só Jazz a fascinar com as suas peculiaridades. Há rasgos de brilhantismo nos diálogos de algumas personagens, principalmente no muito peculiar Svoboda, com a sua natureza paradoxalmente inocente. 
Intrigante desde as primeiras páginas, cresce em intensidade e complexidade sem nunca perder a leveza viciante, nem mesmo no impressionante final. E é isso que torna este livro tão notável: o equilíbrio entre muitas (e deliciosas facetas) que, juntas, formam um todo maior. E muito, muito bom. 

Título: Artemis
Autor: Andy Weir
Origem: Recebido para crítica

sábado, 10 de novembro de 2018

A Nossa Vida em Sete Dias (Francesca Hornak)

É a primeira vez em muito tempo que os Birch vão passar o Natal juntos, embora não seja uma opção totalmente voluntária. Olivia esteve na Libéria numa missão humanitária e agora tem de passar - juntamente com toda a família - uma semana de quarentena. E a verdade é que as relações não são propriamente fáceis. Principalmente quando todos parecem guardar algum segredo. Olivia não cumpriu estritamente as regras na Libéria. Andrew, o pai, acaba de descobrir que tem um filho que nunca conheceu. Emma foi diagnosticada com um cancro. E Phoebe, a sempre caprichosa irmã, acaba de ser pedida em casamento, mas não está tão feliz quanto devia. Fechados na mesma casa, não é o amor que os une que vem a tona, mas os pequenos atritos e as grandes irritações. E eis que, quando parece que a situação não pode piorar, os segredos começam a vir à tona...
Acompanhando a perspectiva das diferentes personagens e, portanto, também os seus diferentes sentimentos, este é um livro que surpreende, em primeiro lugar, por estar tão longe da harmonia familiar perfeita. Com os seus segredos e conflitos familiares, bastam alguns capítulos para perceber que os Birch não são propriamente uma família feliz. E é precisamente este ponto de partida que torna a história tão interessante: é que podem nem sempre gostar muito uns dos outros, mas são família, e os dias passados na companhia forçada uns dos outros, abrem caminho a uma muito interessante evolução.
Tendo em conta que tudo começa com atritos e divergências, a impressão inicial será sempre a de se estar a descobrir uma família disfuncional. Mas isso rapidamente muda. À medida que a história progride e as emoções das diferentes personagens vêm à tona, o que parecia disfuncional acaba por se revelar apenas complexo e também os atritos começam a dar lugar a uma ligação mais forte. Além disso, com os segredos e as dificuldades, vem também um percurso de aproximação e um crescendo emocional que faz com que as personagens que, de início, não nos diziam assim tanto, se tornam surpreendentemente memoráveis. Não deixam de ter os seus defeitos, claro, mas é precisamente isso que as torna tão reais.
Fica também a muito cativante (e surpreendente) sensação de se estar a acompanhar uma história completa e muito mais vasta do que apenas os sete dias da quarentena. Há temas relevantes e pequenos rasgos de leveza, grandes alegrias e ainda maiores sofrimentos, expectativas, motivos de ansiedade, afastamentos e aproximações. É, como diz o título, uma vida em (um pouco mais de) sete dias, com todas as descobertas, angústias e revelações que isso implica. E, entre os momentos divertidos e as explosões de emoção, as tensões e reconciliações e o final avassalador, as personagens tornam-se muito, muito mais próximas... e a história muito, muito marcante. 
História de conflitos e afectos familiares, mas, acima de tudo, de vidas vulneráveis, trata-se, pois, de uma leitura cativante, surpreendente e repleta de momentos memoráveis. Marcante, divertido e comovente em todos os momentos certos, um livro para recordar por muito tempo. Muito bom. 

Autora: Francesca Hornak
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Outcast, Vol. 4: Sob a Asa do Diabo (Robert Kirkman e Paul Azaceta)

Ainda ninguém sabe ao certo o que eles são, mas tudo indica que são legião e estão espalhados por toda a parte. O que procuram é também um enigma, mas há algo que os atrai para os Proscritos e, ao que parece, também a filha de Kyle Barnes possui os mesmos dons que ele. Quanto a Kyle... está numa situação delicada. E o seu único verdadeiro aliado, o reverendo Anderson, terá de correr grandes riscos se quiser ajudá-lo. Principalmente porque também ele está a lutar com os seus demónios... 
Nunca deixa de ser impressionante a forma como cada um destes livros parece elevar o enredo a um novo pico de intensidade. Claro que era de esperar que as coisas fossem... tensas... à partida, tendo em conta o final do volume anterior, mas a forma como os autores conduzem a história, entrelaçando grandes momentos de acção com revelações cada vez mais poderosas e uma cada vez maior complexidade no que respeita à mente das principais personagens torna tudo simplesmente irresistível. Começa-se a ler na expectativa de saber o que acontecerá a Kyle... e, sem dar por isso, vemo-nos embrenhados em novas dificuldades, com a certeza de que, com cada resposta dada, virão muitas novas perguntas... e um sem fim de possibilidades para os volumes que se seguirão.
Outro aspecto que surge também em crescendo - e de que maneira! - é a ambiguidade moral das personagens. Se, no primeiro volume, parecia ser suficientemente clara a linha que separava o bem do mal, agora as coisas já não são assim tão simples. Há, aliás, um momento neste livro capaz de pôr tudo em causa. E, claro, tudo muda de um momento para o outro. E, se tudo se encaminha para uma situação cada vez mais difícil, os acontecimentos deste volume específico deixam uma única grande certeza: as coisas vão complicar-se ainda mais.
Torna-se, pois, difícil resistir a esta série, não só pelo enredo cada vez mais viciante, mas também pela forma como tudo, desde as grandes cenas de acção aos momentos de vulnerabilidade, ganha vida no equilíbrio praticamente perfeito entre diálogos e imagem. É fácil reconhecer as emoções na expressão das personagens, sentir a intensidade do momento nos seus gestos, reconhecer até o matiz cada vez mais sombrio das circunstâncias pelos tons que parecem definir cada cenário. Tudo converge nas medidas certas para, no fim... deixar uma vontade quase irresistível de continuar.
Basta Kyle Barnes, com as suas peculiares circunstâncias e a sua natureza cada vez mais intrigante, para tornar esta história irresistível. Mas há um todo mais vasto à sua volta, negro e desolado e, talvez por isso mesmo, repleto de potencial, e uma história tão cheia de possibilidades (e tão hábil nos seus finais em suspenso) que é impossível não querer saber o que acontece a seguir. Tudo construído de forma tão marcante e equilibrada que basta, enfim, uma palavra para caracterizar estes livros: geniais. E altamente recomendados, claro.

Autores: Robert Kirkman e Paul Azaceta
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

O Poder do Nosso Cérebro (Kaja Nordengen)

É no cérebro que se encontram todas as respostas, as bases da personalidade, do que sentimos, do que pensamos, do que comemos e dos vícios que temos. É um órgão verdadeiramente insubstituível e de uma vastíssima complexidade. Mas como funciona? De que forma permite a percepção do mundo e influencia os nossos comportamentos? Estas são apenas algumas das perguntas a que este livro pretende responder.
Escrito por uma neurocientista, mas pensado para um público essencialmente leigo, uma das primeiras coisas que importa destacar acerca deste livro é a acessibilidade. A escrita directa e clara, sem se embrenhar demasiado na gíria científica e explicando as coisas de forma simples (mas não simplista) faz com que os conceitos e mecanismos apresentados sejam de fácil compreensão mesmo para quem não tenha grandes conhecimentos específicos sobre a área. Além disso, as ilustrações ajudam também muito a visualizar certos aspectos, o que torna o conjunto bastante mais esclarecedor e também mais cativante.
Para isso contribui também a forma como a autora expõe a informação, acrescentando à explicação pura e dura exemplos específicos e até pequenos episódios da sua vida pessoal. Há coisas que é mais fácil visualizar pelo exemplo e a autora não hesita a recorrer a casos específicos de modo a tornar mais clara a mensagem que pretende transmitir. E há também a própria organização do livro que, separada entre os diferentes aspectos - personalidade, inteligência, orientação, etc. - torna muito mais fácil voltar atrás caso seja necessário rever algum conceito, bem como assimilar gradualmente o todo.
Esta conjugação de clareza, simplicidade e organização tem um efeito bastante interessante: o de que, apesar da complexidade do tema, tudo é assimilado de forma surpreendentemente fácil. As explicações são fáceis de entender, o registo, cativante e descontraído, prende a atenção do leitor e o equilíbrio entre a acessibilidade da linguagem e a vasta quantidade de informação torna o texto bastante complexo, mas nunca maçador nem cansativo. Assimila-se, pois, com naturalidade - que é sempre a melhor forma de aprender algo.
Trata-se, pois, de um livro acessível e esclarecedor para aprender mais sobre como o cérebro funciona. Interessante e pertinente, de leitura fluída e natural e com um toque de personalidade que não deixa também de surpreender, uma muito boa leitura. Recomendo.

Autora: Kaja Nordengen
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

WE3 (Grant Morrison e Frank Quitely)

O plano era converter animais em máquinas de matar para que estes pudessem travar as guerras em vez dos humanos. E os primeiros testes correram como esperado, aproveitando-se também o pretexto para livrar o mundo de um ou outro ditador. Só que o plano mudou e os três animais usados - um cão, um gato e um coelho - deverão ser agora desactivados. Mas eis que surge a oportunidade de fuga, e tudo o que eles querem é voltar para casa. Perseguidos pelos seus criadores, as armas que os compõem ser-lhes-ão essenciais à sobrevivência. Mas será a descoberta de que não são apenas aquilo o suficiente para os salvar? E onde é "casa", depois de tudo o que lhes foi feito?
Poder-se-ia pensar, à primeira vista, que a ideia de três animais que tentam regressar a casa poderia dar origem a uma história fofinha, mas... não. Não é bem isso. O que este livro apresenta é algo bastante mais complexo, onde converge a visão quase inocente e enternecedora de um animal de estimação que só quer regressar a casa (e há momentos, principalmente protagonizados pelo cão, que são realmente lindos) com a violência desmesurada dos seus criadores e também do que fizeram deles. Abundam, por isso, as imagens de sangue e entranhas... e também os rasgos de emoção, no que acaba por ser uma surpreendente convergência de opostos.
Além deste contraste, outro dos aspectos que tornam esta leitura notável prende-se com a forma como grandes partes da história são vistas do ponto de vista dos protagonistas animais. A forma de comunicação e a forma de pensamento são totalmente distintas das dos momentos em que participam os humanos, o que realça tanto as diferenças como os pontos em comum. Além disso, e sendo principalmente a história de uma fuga (e de uma perseguição), trata-se também de um livro cheio de acção, o que faz com que sobressaiam também as peculiaridades do desenho destas cenas.
O que me leva, claro, a outro ponto que importa realçar: a arte. É uma história que vive mais de acontecimentos do que propriamente dos diálogos (embora haja também alguns diálogos notáveis) e, assim sendo, torna-se crucial a componente visual. Componente essa que surpreende pela diferença, quer na expressividade das personagens (e, mais uma vez, principalmente do cão), quer nas impressionantes cenas de acção que tão facilmente transmitem a intensidade das circunstâncias.
Surgem, naturalmente, algumas limitações devido ao facto de a história se concentrar fundamentalmente na fuga, nomeadamente na curiosidade que fica relativamente à construção do projecto e a algumas das personagens humanas. São, ainda assim, aspectos secundários face ao impacto desta grande e intensa fuga, que culmina num final que, não dando todas as respostas, dá todas as que são realmente necessárias.
Simultaneamente sombria e comovente, trata-se, pois, de uma história intensa, cativante e cheia de surpresas. Além, é claro, de um retrato estranhamente certeiro do contraste entre a possível crueldade humana e o afecto incondicional dos animais. Marcante e surpreendente, um bom livro, em suma.

Título: WE3
Autores: Grant Morrison e Frank Quitely
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Callam, Uma Cidade Brilhante (Val Rosa)

Após um estranho incidente, Alice acorda num hospital diferente de todos os que alguma vez viu. Não sabe onde está, mas uma coisa é certa: tudo é estranho à sua volta. E o mais peculiar de tudo é que todos julgam que ela é outra pessoa, também chamada Alice, mas filha do líder daquele estranho lugar. Callam é uma cidade de magia e de harmonia, mas envolta numa guerra constante. E, ao que tudo indica, os seus inimigos estão a preparar-se para a batalha final. E Alice... bem, Alice não sabe bem o que faz ali, mas a verdade é que está mais ligada àquele mundo do que julga. Mas, se ela não é quem todos julgam que seja, então que é feito da verdadeira Alice?
Com uma escrita cativante e uma intrigante mistura de leveza e de mistério, este é um livro que, com as medidas certas de perigo e de inocência, abre portas para um novo mundo sem nunca perder a naturalidade. A história parte de um ponto de mudança: a protagonista cai subitamente num mundo novo sem conhecer nada do que a rodeia. E, assim, a confusão inicial - e a maravilha da descoberta - transmite-se a quem acompanha as suas aventuras. É fácil sentir com Alice: sentir que está perdida, sentir que começa a entender, sentir, depois, que é preciso fazer alguma coisa. E esta proximidade, aliada a um registo sempre envolvente e com alguns momentos particularmente marcantes, torna a leitura muito, muito interessante.
É também uma história onde as linhas que separam o bem do mal estão bastante bem definidas. Callam e Lirasales são perfeitos opostos e, se isto torna o enredo um pouco mais linear, faz também com que seja mais fácil torcer pelo lado "certo". Além disso, embora os dois lados sejam muito fáceis de identificar, já as possíveis consequências do conflito não são assim tão claras. E, à medida que tudo se encaminha para a batalha final, a história cresce em intensidade, culminando num final bastante forte. 
Haveria talvez mais a explorar neste mundo, já que a história se centra essencialmente na história de Alice (ou das Alices), embora haja outras personagens também muito intrigantes. E é também verdade que o fim deixa algumas questões em aberto, principalmente acerca de Ernando. Mas, pese embora estas possibilidades que ficam no ar (e que deixam, talvez, a possibilidade de novas histórias), a história principal tem, de facto, princípio, meio e um fim satisfatório. E essa é também uma impressão muito agradável: a de que, haja ou não mais histórias sobre este mundo, este livro é um ciclo completo. 
Leve quanto baste, mas intensa e intrigante, trata-se, pois, de uma aventura cheia de acção e segredos, que, pontuada por grandes e pequenas revelações, cativa desde o início ao fim. Uma boa história, portanto, e um belo mundo para descobrir.

Título: Callam, Uma Cidade Brilhante
Autora: Val Rosa
Origem: Recebido para crítica

domingo, 4 de novembro de 2018

O Livro da Ignorância (Vítor J. Rodrigues)

Há mestres que partilham a sua sabedoria. Já Amnésio sente que, sendo a sua sabedoria ínfima e a sua ignorância tão vasta, acha que deve ser esta última o cerne dos seus discursos. E é de ignorância que se trata, mas não no sentido da recusa obstinada de conhecimento. De ignorância, sim, a ignorância das circunstâncias dos outros, dos mecanismos da natureza, da capacidade de moldar ou controlar o universo. Da ignorância que é um sem fim de possibilidades de aprendizagem - que são, afinal, a base deste livro.
Partindo de um não sei e culminando num gostaria de aprender, este é um livro que cativa, em primeiro lugar, pela premissa, a fazer lembrar "o tão célebre só sei que nada sei" e, ao mesmo tempo, o igualmente ilustre "conhece-te a ti mesmo". Amnésio é um profeta que não vê o passado nem o futuro: vê o que não sabe e o que isso lhe permite descobrir. E esta ideia de um profeta que ensina sabedoria - e não necessariamente conhecimento - através da ignorância é algo de particularmente surpreendente.
Também a escrita em si é cativante, com uma simplicidade fluída e que parece embalar-nos ao ritmo de uma quase meditação. Amnésio dá mais perguntas que respostas, mas fá-las com uma sinceridade que faz com que elas ecoem dentro de nós. Além disso, não é um livro que pretenda dar as respostas (embora seja sempre inevitável uma pequena sensação de curiosidade insatisfeita), mas antes incentivar à aceitação e à procura. E, assim sendo, faz sentido esta voz de alguém que ensina interrogando. Interrogando-se a si mesmo, principalmente.
É um livro relativamente breve, mas que parece conter universos inteiros. Como? Através da sempre tão presente ignorância. É que se, como Amnésio, olharmos para a imensidade do mundo, provavelmente chegaremos, também como ele, à conclusão de que é muito mais o que não sabemos. E esta consciencialização da ignorância - mas de uma ignorância repleta de potencial - é algo de particularmente positivo numa actualidade tão apressada e em que são tantas as exigências de conhecimento e de acção.
Cativante e surpreendente, trata-se, portanto, de um livro inspirador, não tanto por convicções específicas, mas pelas vastas portas de potencial que, na sua brevidade, parece querer abrir. O resto fica à vontade do leitor: seguir ou não os passos de Amnésio, do não sei ao gostaria de aprender. 

Autor: Vítor J. Rodrigues
Origem: Recebido para crítica