sexta-feira, 31 de maio de 2019

Percy Jackson e a Maldição do Titã (Rick Riordan)

Percy começou finalmente a adaptar-se à sua nova vida rodeada de deuses e heróis, mas isso não quer dizer que lhe sobre tempo para descontrair. A sua mais recente missão tem como objectivo encontrar dois poderosos irmãos e trazê-los para o campo, onde estarão em segurança. Mas cedo as coisas começam a correr mal. Nico e Bianca di Angelo são efectivamente resgatados, mas, pelo caminho, Annabeth desaparece e é só graças à inesperada aparição de Artemis e das suas Caçadoras que a coisa não corre ainda pior. Agora, há uma nova missão a cumprir: travar os planos de Cronos, recuperar Annabeth, seguir os passos de Artemis e encontrar o monstro capaz de destruir os deuses... antes que seja demasiado tarde.
Parte do que torna estes livros tão viciantes, e a cada novo volume o impacto torna-se um pouco mais intenso, é a forma como o autor consegue conjugar o seu ritmo de acção constante com um desenvolvimento bastante eficaz das personagens e daquilo que as move - sem esquecer, claro, um surpreendentemente complexo mundo com base na mitologia grega, mas transposto para o contexto actual. Um dos primeiros resultados deste equilíbrio é a facilidade de entender o desconcerto das personagens (principalmente das novas, mas de Percy também) ante as sucessivas revelações que vão surgindo, além, claro, de tornar todo o enredo muito mais cativante. E isto é mais do que suficiente para manter acesa a curiosidade capítulo após capítulo e livro após livro.
Claro que, ao terceiro volume, os protagonistas já são bastante familiares, o que torna ainda mais fácil entrar no ritmo da história (não que alguma vez tenha sido difícil). Mas há também novas personagens a surgir, o que, além de tornar a história mais surpreendente, acrescenta novos desafios e dificuldades, novas dúvidas e novos elos de ligação. Thalia assumiu agora o seu lugar neste mundo, mas eis que entra Zoe. E Bianca. E Nico. Com eles, vêm novas possibilidades, uma nova missão e novas tensões e afectos a despontar. Afinal, parte da jornada destes heróis é também de auto-descoberta - o que, no caso destas personagens, significa também um grande crescimento.
É um cenário surpreendentemente vasto aquele em que esta história assenta. No entanto, há sempre movimento. Há sempre algo a acontecer. Quase não há, aliás, tempo para respirar. Os momentos de acção são constantes e pontuados por rasgos de emotividade e de um humor delicioso. O resultado é, pois, também aqui um estranho equilíbrio: o facto de haver sempre um passo seguinte à espera faz com que seja impossível parar de ler. Os momentos de dúvida, de perda ou de simples e divertida cumplicidade acrescentam um laço emocional mais profundo, tornando as personagens mais vivas e a história mais empolgante.
Viciante será, pois, uma palavra adequada para descrever este livro que, à semelhança dos anteriores, proporciona uma grande, divertida e muito marcante aventura. Com as suas personagens memoráveis, a sua história sempre surpreendente e a sua nova - e deliciosa - visão da mitologia, cativa desde os primeiros parágrafos e não deixa de surpreender até ao fim. Muito bom.

Autor: Rick Riordan
Origem: Aquisição pessoal

quinta-feira, 30 de maio de 2019

As Três Mortes de Um Homem Banal (Nuno Amaral Jorge)

Rafael é um homem de quarenta anos perfeitamente normal, talvez até menos ambicioso do que a maioria. Tem uma relação tensa com a família, um grupo de amigos leais com os quais partilha problemas e os pequenos grandes sucessos da vida e uma mulher que, mesmo tendo saído da sua vida, continua a ser uma obsessão para ele. Tem ainda uma amiga a quem, em tempos, fez uma promessa terrível e que agora lhe está a cobrar essa promessa. É assim que começa o ano em que tudo mudará na sua vida: com uma promessa que precisa de cumprir, uma série de tumultos e desencontros na sua vida amorosa e um abalo feroz no seu núcleo de amigos. E que fará Rafael quando o mundo começar a desabar e um abismo se abrir debaixo dos seus pés?
Com o seu protagonista ambíguo e uma história que segue múltiplas linhas sem se cingir a nenhuma (à semelhança da personalidade da personagem principal), este é um livro difícil de descrever. Centra-se numa única personagem, mas constrói mundos inteiros à sua volta. Roça possibilidades de mistério, de crime, aproxima-se de uma faceta mais sombria, mas mantém-se no delicado equilíbrio entre as coisas ditas e as coisas por dizer. E, assim, estabelece para as suas personagens uma moralidade ambígua que é transportada para a história propriamente dita - onde tudo parece ser a promessa de um fim próximo, mas nada acaba verdadeiramente.
Domina a ambiguidade então, ao ponto de o final ser todo ele um grande ponto de interrogação acerca dos passos e do (possível) futuro do protagonista. E, ainda assim, tudo parece ter um equilíbrio eficaz. Aos momentos mais dramáticos contrapõem-se rasgos de profunda introspecção. Às escolhas difíceis e aos grandes picos de emoção opõem-se rasgos de um humor tão inesperado quanto eficiente. E se, no que toca a resoluções finais, tudo é curiosidade insatisfeita, não deixa de ficar, ainda assim, a impressão de que esse enigma global faz sentido. A vida continua... ou será que não? E as personagens? Não serão elas mais complexas do que uma simples história com princípio, meio e fim?
Parte do que torna este equilíbrio tão perfeito é, naturalmente, o registo da escrita. Ao narrar a história maioritariamente pela voz de Rafael, o autor abre a porta do seu complexo e conturbado interior. Os pensamentos tornam-se mais vivos, a confusão e a ambiguidade mais claras. E isto faz com que, mesmo quando não é fácil entender o comportamento das personagens, as motivações e o mecanismo interior que as faz mover estejam sempre bem presentes. Além disso, esta escrita introspectiva, de análise interior, a contrastar com a brutalidade dos momentos mais duros, proporciona também todo um conjunto de frases memoráveis - daquelas que dão vontade de ter um caderninho ao lado para anotar.
Não é uma leitura fácil, e muito menos fácil de descrever. Mas, com a sua viagem aos abismos pessoais e a fluidez de uma escrita que mergulha de cabeça na ambiguidade do pensamento das personagens, é um livro estranhamente cativante, tanto na história que conta como nos motivos do que deixa sem resposta. Leva o seu tempo, mas compensa amplamente a demora. E acaba por ficar na memória, tanto pela estranha viagem do protagonista como pelas belas palavras usadas para a contar.

Autor: Nuno Amaral Jorge
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Y - O Último Homem: Entre Mulheres (Brian K. Vaughan, Pia Guerra, José Marzán Jr. e Goran Sudzuka)

Agora que estão na posse de uma explicação para a sobrevivência de Yorick, a salvação do mundo e o regresso dos homens parece ser uma possibilidade um pouco menos remota. Mas quando a origem dessa possível cura - o macaco Ampersand - é raptada por uma estranha ninja, Yorick e as suas companheiras vêem-se obrigados a segui-la. O destino parece ser o Japão. E, para lá chegar, terão de apanhar boleia num barco que transporta medicamentos. Mas o conceito de medicamento em tempos como aqueles... bem, é relativo. E o que julgam saber sobre as suas anfitriãs pode muito bem estar completamente errado.
Parte do que torna esta série tão memorável é o facto de, após seis livros de desenvolvimentos, que fazem com que já conheçamos o essencial sobre as personagens principais, continuar a haver todo um mundo de surpresas para desvendar. E não só no que diz respeito ao que se passa no mundo: sim, toda a situação do barco está cheia de surpresas, bem como o que se passa com Beth e até alguns lampejos do passado. Mas as surpresas estendem-se também ao pessoal e podem muito bem desequilibrar a dinâmica das relações estabelecidas até ao momento.
É também notável o facto de haver espaço para uma construção sólida - e complexa quanto baste - das personagens sem nunca perder de vista o ritmo de acção constante, com explosões, cenas de pancadaria e até um vago lampejo das histórias de super-heróis a contrastar com o que se passa na cabeça das personagens. E, claro, mantém-se também o eficiente equilíbrio entre o necessário lado sombrio associado às circunstâncias e o deliciosamente desconcertante sentido de humor - de Yorick principalmente, mas não só.
E é interessante ver também como esta evolução se repercute no todo, não só nos diálogos, mas também na própria arte. Claro que o facto de haver um novo autor neste volume pode explicar algumas das mudanças, mas o que fica na retina é a forma como a expressão das personagens - mais uma vez, principalmente de Yorick - parece reflectir também o seu crescimento. Há como que uma maior seriedade, que, além de espelhar a crescente percepção de que as coisas não estão nada fáceis, faz com que os momentos de humor, os sorrisos, aqueles rasgos de perplexidade que tão bem conseguem quebrar a tensão, se tornem também mais valiosos - e memoráveis.
Trata-se, pois, e como já vem sendo habitual, de mais um volume que corresponde inteiramente às expectativas, continuando a prometer muito de bom para os próximos desenvolvimentos, mas encontrando o equilíbrio necessário para completar uma fase do ciclo total. Cativante, cheio de acção e de surpresas e com um núcleo de personagens simplesmente delicioso, um livro - e uma série - que não posso deixar de recomendar.

Autores: Brian K. Vaughan, Pia Guerra, José Marzán Jr. e Goran Sudzuka
Origem: Aquisição pessoal

terça-feira, 28 de maio de 2019

O Elmer e os Hipopótamos (David McKee)

Os elefantes estão zangados porque os hipopótamos se mudaram para o seu rio e parece não haver espaço suficiente para todos. Por isso, querem que o Elmer os mande embora. Mas o rio dos hipopótamos secou e isso significa que não basta mandá-los embora: é preciso fazer alguma coisa para os ajudar. Em busca de respostas, o Elmer vai até ao rio dos hipopótamos e descobre que há pedras a bloquear a passagem da água. Um problema que, com a ajuda de todos e muito trabalho, talvez possa afinal ser resolvido.
Sempre muito simples, mas muito eficazes nas lições que pretendem transmitir, as histórias do Elmer têm sempre na mensagem uma das suas grandes forças. Este livro não é excepção. Desta vez, trata-se de ajudar os outros, aqueles a quem um fenómeno destrutivo deixou sem condições para permanecer no seu lar. Soa familiar? Pois, de facto o tema não podia ser mais actual. E, além de realçar aos mais novos a importância da entreajuda e de cuidar daqueles que mais precisam, a lição deste livro pode facilmente transpor-se para o nosso mundo actual. Talvez nunca tenha sido tão necessária, aliás.
Mas há mais qualidades além da importância da mensagem, e não deixa de ser interessante ver quanto se pode retirar de um livro tão breve. Além de uma grande lição, trata-se também de uma história leve e divertida, em que as personagens se juntam para resolver um problema e, ao fazê-lo, dão vida às suas pequenas aventuras. Além disso, o texto pode ser bastante sucinto, mas as ilustrações bonitas e coloridas acrescentam a esta pequena história um vasto cenário - razão pela qual, sendo embora um livro infantil, esta história é capaz de fazer sorrir leitores de todas as idades.
Breve e muito simples, mas com uma grande lição e uma história cativante e cheia de cor, trata-se, pois, de uma belíssima leitura para os mais novos. E também para recordar aos não tão novos que os valores nunca deixam de ser relevantes.

Autor: David McKee
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 27 de maio de 2019

Ghost (Jason Reynolds)

Castle Cranshaw - Ghost - nunca teve uma vida fácil e isso fez com que o seu percurso escolar se tornasse problemático. Mas as coisas estão prestes a mudar. Um dia, ao passar pelos treinos de uma equipa de atletismo, vê-se subitamente intrigado. Afinal, correr é algo que ele sempre fez bem, principalmente porque houve momentos em que não teve alternativa. E, impelido a correr nesse treino, apesar de não fazer parte dos Defenders, Ghost impressiona tanto a equipa como o treinador. Só que pertencer à equipa é muito mais do que correr e, para continuar a fazer parte dos Defenders, Ghost terá de se manter fora de sarilhos. O que não é tão fácil como parece.
Relativamente breve e narrado na primeira pessoa, este é um livro que se define, em grande medida, pela simplicidade. Sendo o protagonista quem conta a sua história, o percurso define-se, em muitos aspectos, pela visão limitada que tem do mundo. Mas se, por um lado, isto faz com que fiquem aspectos que podiam ter sido mais desenvolvidos (como a história do treinador e de alguns dos colegas), tem também o muito intrigante condão de realçar a evolução do protagonista. No início, Ghost pouco sabe sobre o atletismo, nunca pertenceu a uma equipa e vê-se por aquilo que tem - ou, no caso, que não tem. E este é um importante ponto de partida, porque, através dos erros e da correcção desses erros, Ghost poderá vir a tornar-se uma pessoa melhor.
Trata-se também de uma história que vive mais do caminho do que propriamente da meta. O final é, aliás, a perfeita imagem desta ideia, pois deixa em aberto uma enorme questão. Ainda assim, o percurso em si está cheio de grandes momentos e de revelações, desde as situações divertidas às mais tensas e emotivas, o que faz com que a leitura flua com uma naturalidade cativante. E, sim, a história não tem um fim claro e absoluto - mas tem muitos momentos marcantes e um crescimento que se completa.
Ainda um outro ponto que importa referir acerca desta história, principalmente tratando-se de um livro juvenil, é a mensagem positiva - mas não demasiado. É sempre importante transmitir os valores correctos, mas ao fazê-lo através de uma personagem imperfeita, que comete erros, o autor realça também as dificuldades. Fazer a escolha certa nem sempre é fácil. E os erros podem ser corrigidos. Mais do que uma personagem heróica e imaculada, Ghost é alguém que está a aprender os valores certos. E isso torna-o mais real e torna a sua história mais marcante.
Simples quanto baste, mas suficientemente ambíguo para tornar reais as histórias das personagens, trata-se, pois, de uma leitura leve e envolvente, mas cheia de momentos marcantes. Uma cativante história de descoberta pessoal - e de crescimento. Acima de tudo, de crescimento.

Título: Ghost
Autor: Jason Reynolds
Origem: Recebido para crítica

Divulgação: Novidade Planeta

Uma história de amor irresistível, que é também o retrato de uma geração que cresceu sem redes sociais.

Pode uma paixão da adolescência marcar o resto da vida?
Festivais de Verão, tardes na praia, experiências limite com drogas, traições e festas misturam-se com amores improváveis e velhas amizades. Um romance intemporal nos cenários de Lisboa, Cascais e Madrid, que mostra tudo o que pode esconder-se atrás da vida aparentemente normal de uma rapariga… como tu.

«Beijamo-nos ao som daquela música que ouvia em casa sozinha deitada na minha cama. Durante o resto da vida, não importaria o que estivesse a fazer ou onde, quando ouvisse os primeiros acordes (…), recordar-me-ia do olhar do Afonso fixado em mim, da sua mão no meu rosto, do meu coração a tremer e de me sentir a rapariga mais feliz do mundo. Porque Lisboa está cheia de bares a abarrotar de miúdas bonitas que, num piscar de olhos, se colocariam de gatas a ronronar nas suas pernas. Mas ele viu-me a mim.»

Helena Magalhães nasceu em Lisboa em 1985 e tem-se dedicado ao jornalismo e à escrita. Começou pela imprensa feminina, passou para o digital e encontrou o seu lugar na literatura. Em 2017 lançou o primeiro livro, Diz-lhe Que Não, uma sátira às relações modernas que se tornou um fenómeno nas redes sociais. O seu objectivo de vida? Colocar a geração digital a ler mais. Criou um Book Gang no Instagram para incentivar os portugueses a voltarem a apaixonar-se pelos livros.
Freelancer e storyteller, colabora para alguns jornais, cria histórias para marcas e empresas e escreve no seu blog www.helenamagalhaes.com.

domingo, 26 de maio de 2019

Dor Fantasma (Thomas Enger)

Regressar ao trabalho não bastou para dispersar os fantasmas de Henning Juul. Continua à procura de uma explicação e de um responsável para o incêndio que causou a morte do filho e o deixou com marcas para a vida. E parece haver finalmente a possibilidade de uma resposta. Tore Pulli, condenado por homicídio e a aguardar recurso, contactou-o com uma proposta irrecusável: se Henning provar a sua inocência, Tore dir-lhe-á o que sabe sobre o que realmente aconteceu. Relutante e desconfiado, Henning vê-se, ainda assim, a investigar o caso, mas, poucas semanas depois, Pulli é morto na prisão. A sua única oportunidade parece ter-se evaporado - mas deixou para trás uma história que vale a pena seguir.
Muito à semelhança do que acontece no anterior Em Chamas, este é um livro que cativa não só pelo caso propriamente dito, e pelas suas cada vez mais vastas ramificações, mas principalmente pelo protagonista e pela situação delicada em que se encontra. Há, aliás, um elemento novo, já que à busca de Henning por respostas para o incêndio (e consequente envolvimento emocional em tudo o que diz respeito a esta questão) junta-se uma segunda história igualmente empática: a de Thorleif Brenden e dos seus esforços por proteger a família.
Ambos são, à sua maneira, personagens vulneráveis, pelo que o contraste entre os dois percursos (embora o de Brenden se cinja a este livro, enquanto o de Henning está longe de ter terminado) confere ao enredo um impacto emocional particularmente forte. E, além de tornar a história mais viciante com esta maior proximidade relativamente a dois dos principais intervenientes, esta empatia gerada confere-lhe também um ambiente mais sombrio. É como se a intriga e à morte estivessem à espreita ao virar de cada esquina. O que, num livro como este, em que tudo começa com uma morte e as ramificações se vão prolongando numa intriga cada vez mais complexa, pode não ser uma surpresa, mas adquire contornos devastadores face à força emocional dos grandes momentos.
E há ainda o ritmo da narrativa, com a alternância entre diferentes perspectivas, a sucessão de grandes revelações, a corrida contra o tempo e o equilíbrio entre a aura sombria que paira sobre toda a história e os deliciosos momentos de humor a tornar a leitura absurdamente viciante. Henning gera empatia e preocupação. Os mistérios geram curiosidade e também uma certa vontade de ver os criminosos pagar pelo que fizeram. E o resultado é uma leitura impossível de largar tal é a intensidade da história e das muitas surpresas nela contidas.
No fim, a história de Henning não termina e são muitas as possibilidades para os volumes que se seguirão. Mas a sensação que fica é a de uma conclusão adequada, que põe termo a uma parte do percurso - e, muito especificamente, à questão da possível inocência de Tore Pulli - ao mesmo tempo que gera grandes expectativas para o futuro. Intenso, viciante e cheio de surpresas, um livro irresistível.

Título: Dor Fantasma
Autor: Thomas Enger
Origem: Recebido para crítica

sábado, 25 de maio de 2019

A Única História (Julian Barnes)

Na esperança de que Paul viesse a conhecer uma rapariga agradável, os pais inscreveram-no num clube de ténis. Mas Paul acabaria por frustrar as expectativas, interessando-se antes por uma mulher casada de quarenta e muitos. Susan tem uma natureza divertida e um carisma que o atrai imediatamente. A diferença de idades é grande, mas são ambos inexperientes à sua maneira. E, contra tudo e contra todos, um amor profundo começa a nascer, desafiando convenções, as pessoas mais próximas e até a própria natureza de cada um deles. Mas amar mais é sofrer mais. O tempo passa, as divergências e dificuldades começam a manifestar-se... e o amor ardente capaz de superar todas as barreiras transforma-se em algo mais baço.
Basta um olhar à premissa deste livro para perceber que dificilmente se tratará de uma história de amor convencional. Não o é, de facto. Mas isso não se deve apenas à diferença de idade entre os protagonistas ou até mesmo às diferenças de temperamento e aos comportamentos destrutivos em que começam a incorrer. Não. A própria essência do que os une é peculiar, pois é uma história onde o amor não é perfeito, tal como as personagens não o são, e onde instintos de protecção e de devoção profunda convivem e se misturam com actos e decisões de puro egoísmo.
Talvez seja por isso que nenhum dos protagonistas desperta uma empatia duradoura, criando antes uma proximidade a espaços. Susan nos seus momentos divertidos, no impacto da violência e na sua própria visão fugaz mas certeira de como aquilo não poderá ser para sempre. Paul na lembrança de que tem apenas dezanove anos, de que sabe muito menos do que pensa e nos fugazes laivos de afecto que surgem por entre os passos mais cruéis. Não são pessoas absolutamente boas - têm um lado bom e um lado mau, e às vezes é este último a ganhar. Mas, se isso os distancia um pouco, a verdade é que também os torna mais realistas.
Há ainda uma outra faceta peculiar que diz respeito ao equilíbrio entre interior e exterior. Um dos elementos dominantes na narrativa é o quebrar das regras implícitas resultante da diferença de idades entre Susan e Paul, o que implica um julgamento externo, mas toda a essência da história parece viver mais do que se passa no interior dos protagonistas. O olhar que percorre a narrativa é o de Paul, as dúvidas, as decisões, os recuos e os comportamentos são essencialmente seus, tal como o são os pensamentos mais notáveis. E, do equilíbrio entre estas duas facetas, o que emerge é um registo muito introspectivo - o registo de quem recorda - que ora roça os abismos do sentimento mais profundo, ora ascende ao pragmatismo das coisas palpáveis. E note-se que Paul pode até tentar convencer-se a si mesmo da bondade das suas decisões - mas, mesmo da sua perspectiva, essas decisões são questionadas.
Terminada a leitura, fica uma estranha sensação de ambiguidade, de ter percorrido um caminho na companhia de alguém de quem não gostamos assim tanto, mas que, de certa forma, compreendemos. É essa possivelmente a grande força deste livro: a de fazer de uma moral ambígua e que questiona os próprios preceitos da moral a história de um percurso notável. Surpreendente, equilibrado e com vários momentos notáveis, acaba, quase sem querer, por se tornar também uma memória. Marcante, à sua maneira. Como as de Paul.

Autor: Julian Barnes
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 24 de maio de 2019

O Legado de Júpiter: Revolta (Mark Millar e Frank Quitely)

Ter os super-heróis a governar até podia parecer uma ideia promissora... mas não desta forma. Brandon e Walter transformaram o país num sistema autoritário e, com alguém tão impulsivo na liderança, não tarda a que ideia de dominar o mundo ganhe forma. Mas nem toda a resistência foi vencida. Chloe, Hutch e o seu poderoso filho estão decididos a enfrentar Brandon, nem que isso signifique reunir todos os super-vilões e, com eles, formar a resistência possível. Serão suficientes, ainda assim? E, com uma parte do passado a vir à superfície, será que o aliado que procuram estará disponível para os ajudar?
Um dos aspectos mais interessantes deste livro é a forma como confere ao mundo dos super-heróis uma intrigante ambiguidade moral. Afinal, foram os super-heróis a tomar o poder e a impor um regime autoritário. Mas a forma como o enredo evolui, transpondo vilões para o papel de resistentes e pondo em evidência as limitações de julgar o mundo por padrões lineares, torna tudo bastante mais intrigante. E, claro, isto acontece sem nunca perder de vista aquilo que se espera de uma história de super-heróis: acção, fatos peculiares, grandes cenas de porrada e explosões. Muitas explosões.
Não deixa, pois, também de ser surpreendente o equilíbrio entre estas facetas e o lado ambíguo da história. São abundantes as cores e os fatos garridos - afinal, se há coisa que não falta neste livro são super-heróis. Mas há também um contraste vincado no retrato das personagens mais importantes e nos traços que definem as suas expressões. Hutch e Chloe podem ser os líderes da resistência, mas são também pessoas a lutar por uma vida melhor. O pai de Hutch pode ter sido, em tempos, um super-vilão e pode ter-se isolado na sua aparente indiferença - mas bastam algumas palavras certeiras de Jason para que tudo mude. E quanto a Brandon... bem, Brandon parece corresponder em todos os seus aspectos à ideia do génio louco... só que a parte do génio não é assim tão linear.
E depois há o ritmo e a surpresa que é, numa história contida em apenas dois volumes e em que grande parte das cenas são de acção, descobrir que tudo tem precisamente a medida certa. Há aspectos que são desenvolvidos de forma mais concisa, mas tudo o que há de importante está lá, seja numa memória fugaz que surge no momento certo, seja num breve diálogo capaz de desencadear grandes coisas. E o fim... bem, pode não ser exactamente o mais surpreendente, mas é surpreendentemente certo, como se tudo encaixasse nos sítios certos para dar às personagens a melhor resolução possível.
Às vezes, não é preciso ir muito longe nem prolongar muito as coisas para se obter uma história notável. É o que acontece neste livro e no anterior, em que as coisas surgem de forma relativamente concisa, mas com as medidas certas de emoção e de humor a complementar o seu viciante ritmo de acção constante. O resultado é, como disse, notável. E uma esplêndida história para descobrir.

Autores: Mark Millar e Frank Quitely
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Turbulent Wake (Paul E. Hardisty)

Aviso prévio: esta opinião faz parte da minha participação na blog tour do livro Turbulent Wake, daí que esteja escrita também em inglês. Para a versão portuguesa, basta andar um bocadinho mais para baixo.

Ethan Scofield’s life seems to have come to a turning point. His marriage is over and even is relationship with his daughter seems to be compromised. And now he is about to be confronted with a truth he never imagined. His father has always been distant, but now, after his death, he left him a manuscript full of stories. Stories that are actually his own. And, as Ethan starts reading about Warren, the boy who becomes an engineer, falls in love and finds himself changing without really losing his nature, life seems to obtain a new meaning. Not only his father’s life, which he never really knew. But his own – and the choices ahead.
Having recently read Reconciliation for the Dead, one of the first things that come to mind when reading this book is how close – and yet how different – it is from Claymore Straker’s story. This one is a much more introspective tale, more like an inner vision of life, and life’s mistakes. However, there are a few points in common between Warren’s path, and his journeys throughout the world, and Straker’s. Also, they both seem to be in some sort of redemption path, albeit a very different one.
Familiar, but altogether different. And also quite remarkable in its overall construction. Ethan and Warren come from different times. Life has separated them. And, yet, they seem to have so much in common. From the failed relationships to the apparent distance in their lives, they seem to have hit the very same spots that made them vulnerable and alone. And this is also part of what makes this reading memorable: none of them are perfect. Actually, there are some ideas and behaviors that are hard to understand. But this makes them more human and their paths more complex. And even that relative redemption arc… Well, redemption doesn’t always mean erasing the past. It means living with it.
But the greatest quality of all is on the writing itself. Describing beautiful and devastated scenarios, states of mind that go from an adventurous passion to the deepest inner darkness, merging two different points of view and balancing their differences and similarities with perfect precision. Providing beautiful and memorable quotes and a quite accurate analysis of the main characters’ inner lives. And, in the end, writing and story seem to achieve the perfect balance: revealing the great truths, and expressing the feelings behind them all.
A Turbulent Wake then: a quite accurate definition for life in general, and for this characters’ lives in particular. And also a quite impressive story, of hard truths, mistakes and its consequences and the ever present nostalgia of things left undone and words left unsaid. Beautifully written, perfectly balanced and with very realistic characters, a memorable read overall.


A vida de Ethan Scofield parece ter atingido um ponto de viragem. O seu casamento acabou e até a relação com a filha parece estar agora comprometida. E eis que está prestes a ser confrontado com uma verdade que nunca imaginou. O pai sempre foi uma pessoa distante, mas agora, após a sua morte, deixou-lhe um manuscrito cheio de histórias. Histórias que são, na verdade, as suas. E, à medida que Ethan começa a ler sobre Warren, o rapaz que se tornou um engenheiro, apaixonou-se e deu por si a mudar sem realmente perder a sua natureza, a vida parece adquirir um novo sentido. Não só a vida do pai, que nunca conheceu realmente. Mas a sua também - e as escolhas que tem pela frente.
Tendo lido recentemente o livro Reconciliation for the Dead, uma das primeiras coisas que vêm à cabeça ao ler este livro é quão próxima - e quão diferente - é esta história da de Claymore Straker. Trata-se de um livro muito mais introspectivo, mais como uma visão interna da vida, e dos erros cometidos durante a vida. Mas há alguns pontos em comum entre o caminho de Warren e as suas viagens pelo mundo, e os de Straker. Além disso, ambos parecem estar a percorrer uma espécie de caminho de redenção, embora muito diferente.
Familiar, mas essencialmente diferente, então. E também bastante notável na sua construção global. Ethan e Warren vêm de épocas diferentes. A vida separou-os. E, no entanto, parecem ter tanto em comum. Das relações falhadas à aparente distância nas suas vidas, que parecem ter tocado os mesmos pontos que os deixam vulneráveis e sós. E também isto faz parte do que torna a leitura memorável: nenhum dos dois é perfeito. Na verdade, há até algumas ideias e comportamentos que são difíceis de entender. Mas isto torna-os mais humanos e faz com que os seus caminhos sejam mais complexos. E até essa relativa redenção... Bem, redenção nem sempre significa apagar o passado. Significa viver com ele.
Mas a maior qualidade de todas está na escrita em si. Na descrição de cenários belos e devastados, estados de espírito que vão de uma paixão aventureira às mais profundas trevas interiores, fundindo dois pontos de vista diferentes e equilibrando com uma precisão perfeita as suas diferenças e semelhanças. Proporcionando frases belas e memoráveis e uma análise bastante precisa da vida interior dos protagonistas. E, no fim, escrita e enredo parecem atingir o equilíbrio perfeito: revelando as grandes verdades e exprimindo os sentimentos subjacentes.
Um despertar turbulento, então: uma definição bastante precisa para a vida em geral, e para as destes protagonistas em particular. E também uma história bastante impressionante, de verdades difíceis, erros e as suas consequências, e a sempre presente nostalgia das coisas deixadas por fazer e das palavras deixadas por dizer. Maravilhosamente escrito, com um equilíbrio perfeito e personagens muito realistas, uma leitura memorável, em suma.

Título: Turbulent Wake
Autor: Paul E. Hardisty
Origem: Recebido para crítica

Divulgação: Novidade Marcador

Ruby nunca quis os superpoderes que quase lhe custaram a vida, embora agora tenha de recorrer a eles diariamente, em missões perigosas contra o governo corrupto que a trancou em Thurmond. Os outros chamam-lhe líder, mas ela não se sente como tal, sabe que é um monstro.
Quando lhe confiam um segredo explosivo, Ruby tem de afastar-se da Liga das Crianças e embarcar numa missão difícil. A informação crucial acerca da doença que matou a maioria das crianças nos Estados Unidos está guardada num único local: uma pen nas mãos de Liam Stewart, o rapaz que Ruby achava que conhecia, respeitava e amava... e a abandonou.
Ruby inicia uma viagem através do país numa tentativa desesperada de encontrá-lo, dividida entre os velhos amigos e as suas novas promessas. E se ganhar a guerra significa perder-se a si mesma?

Alexandra Bracken nasceu e cresceu no Arizona, Estados Unidos. Depois de terminar o ensino secundário, frequentou a Universidade William & Mary, na Virgínia, onde se formou em Inglês e História. Escreveu o seu primeiro romance no último ano de faculdade e depois mudou-se para Nova Iorque, onde trabalhou numa editora de livros infantis. Após seis anos, arriscou e decidiu passar a escrever a tempo inteiro. Actualmente, vive no Arizona, com o seu cão, Tennyson, numa casa cheia de livros.

Para mais informações, consulte o site da Marcador Editora aqui.

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Tudo o que Sei Sobre o Amor (Dolly Alderton)

Ao longo dos seus trinta anos, Dolly Alderton passou por um pouco de tudo, desde as primeiras experiências de conhecer alguém via MSN aos tempos das festas loucas, onde álcool, droga e todo o tipo de excessos eram a certeza de se ser alguém interessante, passando pelo crescimento em comum com as amigas e pelos pontos de divergência entre os respectivos caminhos. Ao longo do trajecto, Dolly descobriu-se a si mesma, aprendeu umas quantas lições difíceis e encontrou uma imagem de si mesma muito diferente da rapariga das festas dos seus vinte anos. É dessas experiências - dessas memórias - que este livro é feito.
Centrado essencialmente num percurso de descoberta pessoal, ainda que com vários pontos onde é fácil sentir uma certa proximidade, este não é o tipo de livro que gere empatia imediata - a não ser que se tenha uma história semelhante à da autora. Uma vez que as memórias seguem a linha da sua própria vida, a parte inicial dedica-se, sobretudo, aos abundantes excessos, bem como a algumas obsessões pouco saudáveis, o que, de uma perspectiva mais adulta, pode parecer-se perigosamente com uma glorificação desse tipo de comportamento. Ainda assim, com o avançar das memórias e o crescimento da autora, torna-se claro que não é disso que se trata. Os excessos e os comportamentos destrutivos fizeram parte do seu próprio percurso - e das lições que se seguiram. Por isso, no fim a imagem que fica é, acima de tudo, essa: a de um crescimento.
É também quando as histórias ganham um cariz mais maduro que as grandes lições começam a ganhar forma. O crescimento da amizade com Farly, a descoberta de uma vida mais serena, até mesmo a dura lição de uma perda que, não sendo própria, se vive como pessoal - em tudo isso há algo de memorável, não só pelos acontecimentos em si, mas principalmente pelas lições que contêm. Além disso, casos como o de Florence e do casamento de Farly lembram também que a vida nem sempre é como planeamos - e que superar e adaptar são também duras, mas essenciais lições de vida.
E, claro, importa ainda falar um pouco sobre a escrita e como o tom descontraído - quase excessivamente descontraído - que tão bem se ajusta ao relato dos excessos iniciais amadurece também à medida que as histórias se tornam mais profundas. O sentido de humor, uma das principais qualidades deste livro, nunca se desvanece, mas parece encontrar um equilíbrio mais eficaz, à semelhança do que acontece à protagonista de todas estas memórias.
Não é um livro que prenda desde o início, mas é, ainda assim, um livro cheio de lições memoráveis. E, tal como os percalços da juventude de Dolly nos lembram momentos de menor responsabilidade, também o seu crescimento - a nível de amor e não só - lembra a importância de crescer para uma vida onde nada é previsível. Levam o seu tempo a desvendar, é verdade, mas as lições estão lá. E é isso, afinal, o que mais importa.

Autora: Dolly Alderton
Origem: Recebido para crítica

Divulgação: Novidade Presença

Costa Oriental de África, 1670
Num tempo de aventuras cruéis e muita bravura, um homem viaja por terra e por mar em perseguição do seu maior inimigo...
O Golden Bough, capitaneado por Henry «Hal» Courtney, navega em direcção ao sul, desde a Etiópia até Zanzibar. No convés inferior, dormem a tripulação e a destemida guerreira Judith Nazet, a amada de Hal. À luz da Lua, Hal avista um veleiro que passa muito perto. Apesar da trégua precária entre ingleses e holandeses, ele pressente o perigo... o Bough é invadido e a tripulação tem de lutar homem a homem para defender o navio e as suas vidas.
Em breve, porém, Hal irá confrontar-se com uma ameaça ainda maior, quando descobre que o seu inimigo mortal continua vivo e que está determinado a vingar-se. Ele terá de perseguir a sua némesis através do deserto e da savana, do submundo sórdido dos mercados de escravos de Zanzibar e das águas infestadas de tubarões , pondo em risco a sua própria vida a cada passo. Será, no entanto, preciso mais que umas grilhetas de escravo para conter Hal Courtney...
Um livro apaixonante, onde Wilbur Smith, o mestre da acção e do suspense, revela uma vez mais o seu peculiar talento para o drama de acção e a narrativa épica.

Wilbur Smith nasceu, em 1933, na Rodésia do Norte, actualmente República da Zâmbia. Tornou-se escritor a tempo inteiro em 1964, desde logo alcançando grande êxito. A partir de então, escreveu mais de trinta
romances, a que dedicou um trabalho de meticulosa pesquisa nas inúmeras expedições que tem empreendido por todo o mundo. A sua obra encontra-se traduzida para vinte e seis línguas e publicada em sessenta países, tendo vendido cerca de 135 milhões de exemplares. Depois de A Lei do Deserto, Vingança de Sangue, No Rasto do Predador, O Deus do Deserto e Faraó, a Editorial Presença lança agora O Leão De Ouro, um romance magnífico e imperdível.

Giles Kristian é autor da famosa série Raven, constituída por romances centrados no universo viquingue, e de dois romances sobre a Guerra Civil inglesa. Vive em Leicestershire, no Reino Unido.

Para mais informações, consulte o site da Editorial Presença aqui.

terça-feira, 21 de maio de 2019

O Silêncio das Águas (Brittainy C. Cherry)

Na vida, basta um momento e tudo muda. O que costumava ser uma voz corajosa e sem barreiras transforma-se num silêncio tão profundo como as águas mais insondáveis. E o tempo passa e, ainda que a vida continue, cada momento é passado no limiar do afogamento. É assim para Maggie May, que, quando era criança, assistiu a um crime e, em resultado, perdeu a voz e a capacidade de sair de casa. A sua única âncora é Brooks, o amigo do irmão que se tornou também o seu melhor amigo. Agora, porém, ambos cresceram e a amizade ameaça tornar-se em algo mais. Mas Maggie não fala nem sai de casa e Brooks tem um futuro de sucessos musicais à sua espera. Como poderão continuar juntos, se fazê-lo significa puxar o outro para baixo? E se os papéis se inverterem, será Maggie capaz de fazer o mesmo que Brooks fez ao longo de vinte longos anos?
História de amor jovem e de crescimento para lá das dificuldades, uma das primeiras coisas a marcar neste livro é o facto de se estender muito para lá da história de amor entre os protagonistas. Sim, há amor, um amor sem reservas, e ver este amor crescer por entre tribulações é algo de mágico. Mas há também algo muito mais profundo do que a descoberta de um primeiro amor. Brooks e Maggie descobrem-se a si mesmos, nos bons momentos e nos maus, no trauma e na superação. E, ao fazê-lo, tornam-se força e exemplo para os que os rodeiam e que, às vezes, também não sabem muito bem como lidar com eles.
A história começa com os protagonistas ainda muito jovens e abrange um longo período de tempo. Ainda assim, consegue um equilíbrio surpreendentemente eficaz: há partes das vidas das personagens que são percorridas de forma mais sucinta, mas nunca fica a impressão de uma história demasiado apressada. Muito pelo contrário. Esta passagem do tempo permite realçar o melhor do seu crescimento: Maggie, parada no tempo do seu trauma, descobre o amor, aprende a perdoar, torna-se ela mesma salvadora e acaba por ter de confrontar aquilo que a moldou; Brooks, que podia ter ficado de fora a assistir, torna-se amigo, amado, confidente... e depois aprende com Maggie a lidar com as suas próprias sombras. E o amor entre ambos torna-se também uma voz - uma voz capaz de abalar todos aqueles que acompanharam o percurso de ambos.
Tendo tudo isto em conta, não é propriamente uma surpresa que a grande marca deste livro seja a emoção. Há sentimentos fortes à espreita ao virar de cada página, momentos comoventes, rasgos de pura emotividade. É possível sofrer com os protagonistas, sentir com eles, partilhar do seu crescimento. E, claro, o resultado é que se torna impossível largar a leitura, tal é a força com que estamos a torcer para que tudo acabe bem. Além disso, a estes rasgos de emoção acrescenta-se ainda um muito agradável sentido de humor, que, além de acrescentar leveza nos momentos em que esta é mais necessária, realça uma característica particularmente marcante das personagens: a capacidade de rir por entre as sombras.
Amor, crescimento e superação: são estes, em suma, os ingredientes que tornam esta leitura tão marcante. O amor paciente que tudo supera, o crescimento da passagem à idade adulta e a superação das sombras que, durante muito tempo, impuseram a sua autoridade. O resultado é um livro cativante, comovente e repleto de momentos memoráveis. Muito bom, em suma.

Autora: Brittainy C. Cherry
Origem: Recebido para crítica

Para mais informações sobre o livro O Silêncio das Águas, clique aqui.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

A Rapariga sem Pele (Mads Peder Nordbo)

Quando a primeira múmia viquinge - e o que pode muito bem ser a resposta para uma lacuna da História - é encontrada na Gronelândia, o jornalista Matthew Cave é destacado para seguir o caso. Mas a história está prestes a tornar-se em algo muito mais sombrio. Primeiro, a múmia desaparece, sendo encontrado no seu lugar o corpo esventrado do polícia que ficara a guardar o local. Depois, a mesma múmia é encontrada - com os órgãos do morto dentro e a certeza de que afinal é muito posterior ao dos homens do norte. E eis que Matthew se vê sem a sua história, mas com um outro caso para acompanhar. É que tudo parece estar ligado a uma série de homicídios macabros nos anos 70. Crimes esses que serviram para esconder outros segredos igualmente sombrios.
Viciante seria uma boa palavra para começar a descrever este livro, já que, mergulhando de cabeça na intensidade que definirá todo o enredo, consegue, desde as primeiras páginas, captar a atenção para nunca mais alargar. Primeiro são as circunstâncias da descoberta, associadas à história pessoal de Matthew, que basta, por si só, para gerar empatia. E depois, à medida que a trama se desenrola e os segredos e intrigas começam a vir à tona, é praticamente impossível parar de ler antes de saber o que acontece a seguir. O resultado é um livro que se lê quase de uma assentada e que fica na memória tanto pelos aspectos mais negros como pela intensidade constante que pauta toda a narrativa.
Matthew é um protagonista carismático e basta a sua história - e a sua incapacidade de obedecer quando lhe dizem para parar - para fazer com que a leitura valha a pena. Mas há mais. Ao intercalar a sua história com a de Jakob, o autor consegue construir uma visão mais próxima - e mais empolgante - dos crimes do passado, o que, além de adensar o mistério, faz com as grandes revelações ganhem outra força. Além disso, a presença da misteriosa Tupaarnaq, também ela com o seu passado sombrio, acrescenta ainda um outro toque de perigo, além de reforçar também o impacto das revelações. Afinal, também ela está no centro de um crime.
Há ainda um outro ponto a realçar: não são só as mortes em si que têm uma vincada faceta macabra. As razões que as provocaram são igualmente perturbadoras, com questões como o abuso de menores, a influência política como forma de encobrir o inimaginável e até mesmo a facilidade com que o sistema olha para o outro lado se confrontado com os motivos certos acrescentam a uma história cuja premissa é já bastante negra uma faceta ainda mais sombria. E é aqui que o equilíbrio se torna excepcional: na forma séria como o autor aborda estas questões sem nunca perder de vista o ritmo intenso de uma história que se quer viciante.
Fica, pois, um impacto poderoso e a impressão de uma leitura que, embora de ritmo acelerado e em que há sempre algo de importante a acontecer, as grandes questões estão sempre presentes e nunca são subestimadas. Notável na construção das personagens e extraordinário no equilíbrio entre as várias facetas e momentos da história, um livro intenso, intrigante e que recomendo sem reservas.

Autor: Mads Peder Nordbo
Origem: Recebido para crítica

domingo, 19 de maio de 2019

Descender, Vol. 3: Singularidades (Jeff Lemire e Dustin Nguyen)

TIM-21 pensava ter encontrado um refúgio temporário, mas, mais uma vez, as coisas acabaram por seguir um rumo inesperado. Agora, tudo pende num equilíbrio delicado. E é neste ponto de viragem que o tempo pára e todos os pensamentos se voltam para o passado. Afinal, pode haver relações desconhecidas que as personagens desconhecem e o passado que os une talvez seja a chave para o que virá depois. TIM-22, Telsa, Bandit, Andy, Effie e até mesmo o Broca: todos têm uma história antes do momento em que os seus caminhos voltaram a cruzar-se. E, nessa história, estão as pistas para o futuro.
Poder-se-á, talvez, dizer que este terceiro livro funciona, em certa medida, como um volume de transição: afinal, em termos da linha principal da história, as coisas não evoluem muito. Ainda assim, uma das primeiras coisas a sobressair é que, pese embora esse facto, há muito de novo - e muito de marcante - a descobrir neste livro. Afinal, o passado faz parte do que nos define. E o passado destas personagens é, em muitos aspectos, assombroso.
Sendo um olhar aos diferentes passados, há dois elementos que se destacam. O primeiro é o conjunto de revelações pertinentes - e uma ou outra reviravolta - que irão seguramente influenciar os acontecimentos futuros. O segundo, e talvez o mais importante, é a intensa carga emocional associada a todas estas memórias. Da antiga vida de TIM-22 ao passado comum de Andy e Effie, passando pelas dilacerantes cenas de Bandit sozinho e à procura na colónia mineira e pela posição de Broca ante a forma como foi tratado pelos humanos (ou por um humano em particular), há toda uma vastidão de momentos memoráveis, capazes de despertar emoções fortes e de potenciar ainda mais a já forte empatia que estas personagens despertam. Estendendo-a, aliás, a personagens que anteriormente não pareciam merecê-la.
E eis que, mais uma vez, entra a questão da expressividade e a forma como as personagens são retratadas. As expressões das personagens ao longo dos acontecimentos são uma porta aberta para todas estas emoções. E, além disso, há ainda uma outra faceta: Bandit e Broca são robôs sem aspecto humano e, ainda assim, esta expressividade estende-se também a eles. A parte dedicada a Bandit é, aliás, particularmente marcante, porque, sendo embora um robô, é praticamente impossível não o ver como um cão como qualquer outro - sozinho, perdido, à procura de afecto.
Pode parecer uma pausa na história principal, mas tudo o que contém é relevante. E, com a sua vastíssima força emotiva e os muitos desenvolvimentos interessantes, tudo aquilo que acrescenta à história é bom, tudo é belo e tudo fica na memória. Acabando, por isso, por surpreender, ao mesmo tempo que corresponde e supera as expectativas. Muito bom.

Autores: Jeff Lemire e Dustin Nguyen
Origem: Recebido para crítica

sábado, 18 de maio de 2019

Hotel Silêncio (Auður Ava Ólafsdóttir)

Jónas Ebeneser sente que já não tem nada a perder. Divorciado, sozinho, com uma vida que lhe parece não ter qualquer importância, acaba de descobrir que não é o pai biológico da que julgava ser sua filha e, por isso, decide acabar com a vida. Mas o suicídio não é um acto assim tão simples, e muito menos para alguém que sente a necessidade de consertar tudo o que precisa de conserto. Decide então viajar para o país menos seguro do mundo, onde a guerra fará com que a sua morte rapidamente caia no esquecimento. No Hotel Silêncio, porém, aguarda-o uma outra vida: uma vida onde ele é necessário, ainda que apenas para as pequenas coisas que consegue consertar num país devastado.
Narrado essencialmente da perspectiva do protagonista, e de um protagonista cuja mente está perturbada, este é um livro que vive tanto das impressões como dos acontecimentos. É também um percurso em duas fases: o mergulho no abismo e a recuperação possível. É, por isso, difícil descrever este livro de forma concreta, já que as marcas que deixa devem-se mais às profundezas da alma do protagonista do que propriamente a gestos e actos - ainda que também estes tenham a sua importância.
Há também como que um choque de sentimentos que se reflecte acima de tudo na escrita e que, através dela, é transposto para a narrativa. Tudo é descrito como que de uma certa distância, o que faz com que a situação de Jónas acabe por não despertar uma proximidade imediata, mas essa distância é também reflexo da apatia que parece ter tomado conta do protagonista. Vai-se, por isso, desvanecendo com a mudança de cenário e de interlocutores, sem nunca perder de vista a profunda introspecção que tanto marca a natureza do protagonista, mas mostrando também como que um ténue - mas notável - desabrochar.
No fim, é como se nada terminasse verdadeiramente - excepto aquilo que menos se esperava. O futuro de Jónas, se o tiver, fica à imaginação do leitor. E as possibilidades são surpreendentemente vastas, já que a estadia no Hotel Silêncio fez, involuntariamente, dele uma pessoa diferente. Fica, por isso, uma agradável ambiguidade, onde não há princípio e quase não há fim e onde a derradeira surpresa vem, ainda assim, de onde menos se espera.
Relativamente breve, leva, ainda assim, o seu tempo para assimilar a inesperadamente complexa teia de impressões e de emoções. Mas, cativante desde a primeira página e repleto de momentos e frases memoráveis, acaba, ainda assim, por marcar em todas as suas facetas e por surpreender tanto no que conta como no que deixa por dizer. Uma boa surpresa, em suma, e um livro que vale a pena descobrir.

Título: Hotel Silêncio
Autora: Auður Ava Ólafsdóttir
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 17 de maio de 2019

História de uma Baleia Branca (Luis Sepúlveda)

Era uma vez uma baleia da cor da lua. Habitava as profundezas do oceano, vindo à tona apenas para respirar e para aprender sobre os estranhos seres que, em barcos, se aventuravam cada vez mais longe. Até que recebeu uma missão: proteger o Povo do Mar e as baleias que os protegiam até ao momento da última viagem. Protegê-los dos homens que, avançando cada vez mais, vinham à caça das baleias para lhes retirar o óleo e a gordura. Uma baleia que se tornou protector, e que, na sua luta contra a cobiça dos homens, viria a adquirir um nome e uma reputação terríveis: Mocha Dick.
Basta um primeiro olhar a este livro para se ficar encantado. Porquê? Bem, porque sendo certo que a alma de um livro é, muitas vezes, a sua história, neste caso são as ilustrações o primeiro aspecto a marcar. Basta um breve folhear para despertar a curiosidade para a história associada a estas imagens que são pura magia - e, à medida que a história é desvendada, adquirem também um novo sentido, pois complementam na perfeição a história desta baleia branca.
É uma história relativamente breve e essencialmente bastante simples. Fica, aliás, uma certa curiosidade insatisfeita acerca de partes da história da baleia (embora talvez o nome possa ser uma boa pista de onde procurar mais respostas). Ainda assim, a história parece ter o equilíbrio certo. Ao ser maioritariamente narrada do ponto de vista da baleia, confere uma perspectiva diferente à visão quase romantizada da vida nos baleeiros. Ao cingir-se ao essencial, faz com que os grandes momentos tenham outro impacto. E ao dar conferir à baleia voz e missão ao protagonista, permite uma visão mais emotiva dos acontecimentos: expectativa, missão, fracasso, vingança e um ambíguo depois que formam um todo marcante.
No fundo, tudo gira em torno de um mesmo equilíbrio, em que a simplicidade da escrita se alia ao impacto das imagens para construir uma história capaz de marcar leitores de todas as idades. Não é, aliás, preciso conhecer Moby Dick para apreciar a história desta baleia branca, pois o seu percurso é um todo completo, cheio de aventuras, de descobertas e de emoções fortes, culminando num final que, não sendo propriamente inesperado, é ainda assim também muito marcante.
Marcante será, pois, uma boa palavra para definir este livro que, com o seu eficaz equilíbrio entre texto e ilustração, dá vida a uma história breve, mas notável em tudo o que realmente importa. Simples, cativante e muito bonita, uma boa história, em suma.

Autor: Luis Sepúlveda
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 16 de maio de 2019

Uma Pedra Sobre a Boca (João Moita)

De sombras, de sangue, de fome e até de uma incerta fé: de tudo isto são feitos os poemas deste livro. Poemas onde a brevidade se une a uma construção de imagens tão precisa quanto perturbadora para dar forma a uma visão que é mundo e crença e sentimento sempre de uma forma muito interior. Em poucos versos, parece conter um quadro inteiro. Um quadro tão sombrio quanto eficaz na sua (aparente) simplicidade.
Abrangendo vários anos da poesia do autor, uma das coisas que importa começar por destacar é que, ao longo da leitura, sente-se não só uma viagem pessoal, mas acima de tudo uma evolução estrutural. Aos muito breves e muito sombrios poemas das primeiras páginas sucede-se como que um crescendo que, sem perder de vista os seus matizes mais obscuros, se vai tornando mais descritivo, um pouco mais distante. Início e fim são quase vozes diferentes, ainda que unidas pelo mesmo fio condutor.
Outro aspecto que cedo se torna evidente, e talvez também devido a esta evolução gradual, é a coesão do todo. Cada poema é um todo completo e, se fizermos o exercício de ler o primeiro e o último, as relações não serão lá muito evidentes. Mas, lido de forma sequencial, há neste livro como que uma união, quase como uma via sacra interior que se aproxima de um estranho clímax. Da sombra da introspecção à fome da própria terra, há espaço para imagens pessoais e imagens do mundo. E este contraste entre as duas facetas confere ao todo um sentimento de pertença.
São maioritariamente poemas muito breves, daí que esta sensação de vastidão acabe por resultar também especialmente surpreendente. E, embora não deixe de ficar também a pairar como que uma curiosidade em ver mais a fundo este mundo, o facto de cingir o traçado da imagem a poucos versos torna mais memoráveis as grandes frases - e mais peculiar o estilo global.
Finda a leitura, fica a sensação de uma estranha viagem ao interior, a um interior que tanto consegue roçar os contornos da devoção como a simples aridez da paisagem. Um interior aparentemente simples, mas de complexidade insuspeita, e em que cada poema é um passo rumo a um destino maior. Difícil de descrever, sim, mas bastante memorável.

Autor: João Moita
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 15 de maio de 2019

Indeh (Ethan Hawke e Greg Ruth)

A guerra é uma velha inimiga da nação Apache, e ainda mais agora que os Olhos Brancos, determinados a tomar posse da terra e de todas as suas riquezas, querem confiná-los a reservas. Mas, embora sejam mais que os gafanhotos, a confiança dos soldados americanos não chega. Não contra Cochise, um chefe destemido e sábio, que tem ao seu lado guerreiros fortes, um dos quais deixaria a sua alcunha gravada na história: Gerónimo. O que começa por ser um massacre transforma-se numa guerra sem tréguas. E, muitas mortes depois, a esperança torna-se cada vez mais ténue: será possível alcançar a paz? A que preço? E por quanto tempo?
Parte do que torna um livro de banda desenhada memorável será sempre e necessariamente o equilíbrio entre a arte e a história, entre diálogos e movimento, por assim dizer. Neste livro específico, este equilíbrio atinge um novo auge. Os diálogos, sucintos, cingindo-se ao essencial, mas sempre com algo de memorável a acrescentar, aliam-se a uma arte tão avassaladoramente expressiva que se torna difícil desviar o olhar, seja no retrato das personagens, nas sequências de guerra, cheias de movimento e morte, ou até na estranha desolação das paisagens de um mundo perdido - pelo menos para os protagonistas.
Isto torna-se especialmente notável se tivermos em conta que se trata de um livro a preto e branco. Às vezes, a cor ajuda a dar vida à história, não é? Bem, neste caso, diga-se que a cor não faz falta nenhuma. Há todo um equilíbrio de tons, mais esbatidos para as memórias, mais intensos para os momentos mais próximos, sempre precisos no traçado de rostos, expressões e movimentos. E isto, além do previsível facto de tornar o livro lindíssimo, tem também o condão de tornar a leitura ainda mais memorável: ver o sofrimento nos rostos das personagens torna a sua dor mais próxima. Ver a firmeza torna mais admirável a sua coragem.
E, claro, há a história em si e toda a visão que implica. Afinal, todos nós vimos uns quantos filmes de índios - aqueles em que os índios são sempre os vilões que é preciso perseguir e abater. Pois bem, este livro inverte por completo essa perspectiva, traçando o percurso de um povo perseguido até aos limites e, como tal, forçado a quebrar também limites para sobreviver. A história de Cochise e do seu povo é memorável em si mesma e também pelo que representa: a visão de que a tantas vezes branqueada história do triunfo da civilização foi tudo... menos civilizada.
Belíssimo, intenso e marcante em todas as suas facetas, cativa desde o primeiro contacto e não deixa de surpreender até ao fim. Basta, pois, um olhar para tornar este livro memorável - e a leitura só reforça esta impressão. 

Título: Indeh
Autores: Ethan Hawke e Greg Ruth
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 14 de maio de 2019

Implacável (Lisa Kleypas)

Devon Ravenel acaba de herdar um título, e com ele uma propriedade tão extensa quanto arruinada. E, embora inicialmente os seus planos sejam livrar-se da sua herança e continuar a levar a mesma vida boémia que até ali, está longe de imaginar quão profundamente a sua vida vai mudar. Quando ele e a viúva do seu falecido antecessor se encontram pela primeira vez, tudo indica que estão destinados a ser inimigos. Mas há algo em Kathleen que o fascina e, quase sem querer, a sua dedicação às irmãs de Theo, bem como a determinação em zelar pelas muitas pessoas que dependem da propriedade, começa a cativar Devon. E, à medida que a relação começa a aprofundar-se, há também algo de mais profundo a ganhar forma: uma atracção que começa por ser física, mas que ameaça estender-se até ao coração.
A passagem de inimigos a amantes não é algo de totalmente novo neste género de romance. E, ainda assim, uma das primeiras coisas a destacar neste livro é a forma como a autora consegue conferir a esta premissa uma identidade única e intransmissível. Talvez porque cada personagem tem um carisma muito seu, ou talvez porque a história gira à volta do que muito mais do que apenas o romance, o que faz com que o amor aconteça de forma gradual, o que é certo é que tudo neste livro - estrutura, enredo, personagens - parece desenvolver-se de forma notavelmente eficaz.
Claro que a alma está nas personagens, e isto aplica-se tanto à sua natureza como à sua evolução. O infame temperamento Ravenel faz de Devon uma figura um tanto ou quanto implacável e dominadora, mas o seu percurso sobressai, acima de tudo, por outros aspectos: a descoberta da responsabilidade, a manifestação de um heroísmo tão inesperado quanto natural na força do momento e também um sentido de humor delicioso, atrás do qual se escondem emoções mais fortes do que o próprio Devon gostaria de admitir. E há algo de semelhante a acontecer para muitas das principais personagens: West, de puro tratante a trabalhador dedicado; Kathleen, que esconde sob a imagem da viúva agarrada às convenções uma faceta de mulher determinada; até Helen, com a sua tímida quietude a esconder um grande coração. Todas as personagens têm algo de notável e todas proporcionam grandes momentos, sejam eles de humor ou de emoção. 
Há também algo que sobressai na história em si: o equilíbrio entre múltiplas facetas. O foco central está, naturalmente, no romance entre Kathleen e Devon, mas há muito mais para além disso. Há a recuperação da propriedade, o catastrófico acidente na base de alguns dos grandes momentos do livro, a história secundária de Helen e Winterborne (que prepara já caminho para um volume seguinte) e até mesmo uma análise de um mundo que se move mais por estatutos e aparências do que pelo verdadeiro valor. Tudo isto torna o enredo mais amplo, as personagens mais complexas e confere ao romance um crescimento gradual que torna tudo também mais autêntico.
Equilibrado, intenso e repleto de momentos deliciosos: assim se poderia descrever, em suma, esta história de atracção e de amor, em que dois protagonistas que inicialmente parecem ter muito pouco em comum se tornam na dupla perfeita. Divertido, emotivo e cheio de surpresas, um livro implacavelmente delicioso. E que recomendo, naturalmente.

Título: Implacável
Autora: Lisa Kleypas
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 13 de maio de 2019

Seca (Neal Shusterman e Jarrod Shusterman)

Há já algum tempo que a seca dura na Califórnia e, apesar de terem sido aprovadas algumas leis para combater o problema, não foram de todo suficientes. Agora, a água deixou de jorrar das torneiras e ninguém sabe ao certo quanto tempo o problema vai durar. Mas uma coisa é certa: sem água não se sobrevive e há quem esteja disposto a tudo para sobreviver. É neste cenário que Alyssa, o seu irmão Garrett, e Kelton, o seu vizinho estranho, se vêem longe do mundo que julgavam conhecer e empurrados para uma brutal luta pela sobrevivência.
Um dos aspectos mais impressionantes deste livro, e também certamente o mais perturbador, é a facilidade com que permite imaginar o cenário desta história transposto para a vida real. A manifestação da catástrofe e a passagem para modo de sobrevivência são manifestamente compreensíveis, mas há um impacto crescente à medida que o lado mais negro e desesperado das pessoas vem à tona. E o mais aterrador de tudo é a rapidez com que tudo acontece. A história abrange muito poucos dias e, contudo, a civilização parece colapsar. E é assustador imaginar isto numa realidade não muito distante.
Parte do que torna isto tão realista é também a construção das personagens. Alyssa, Kelton, Garrett, Jacqui e Henry, as principais figuras deste livro, podem ser vistos como os heróis da narrativa, mas não são propriamente heróis. São personagens a lutar pelas suas vidas postas perante um cenário inimaginável: e isto implica decisões impensáveis, comportamentos (no mínimo) censuráveis e fantasmas que, caso o problema venha a ser superado, perdurarão para sempre. Também isto impressiona, pois, além de recordar que a perfeição não existe, põe o mundo e os acontecimentos narrados numa perspectiva diferente: uma em que tudo é possível nas condições certas.
Até a própria escrita parece maximizar este impacto. Ao contar a história na primeira pessoa, mas de diferentes perspectivas, os autores abrem as portas dos pensamentos, dilemas e decisões das suas personagens, o que contribui em muito para gerar emoções mais fortes. Há quem desperte empatia e há quem desperte aversão. Depois, com o evoluir dos acontecimentos, estes sentimentos vão-se transformando em algo mais ambíguo, mais complexo - como as circunstâncias que desencadearam estas mudanças. E, quando tudo termina, já ninguém é o mesmo. As marcas ficaram, as coisas mudaram. E isso - esse final em que tudo é novo e, mais uma vez, nada é perfeito - torna também a história muito mais realista.
Chega-se, pois, ao fim com a melhor das impressões: a de um livro complexo, mas viciante, com personagens marcantes e um enredo tão surpreendente, mas tão aterradoramente próximo, que é impossível não ficar gravado na memória. Intenso, surpreendente e, principalmente, muito relevante, um livro que não posso deixar de recomendar.

Título: Seca
Autores: Neal Shusterman e Jarrod Shusterman
Origem: Recebido para crítica

domingo, 12 de maio de 2019

Gallowstree Lane (Kate London)

Há uma guerra territorial a acontecer em Gallowstree Lane e a sua dimensão cedo se torna evidente quando um jovem chamado Spencer se esvai em sangue na rua na sequência de um esfaqueamento. Mas há uma teia sombria a desenrolar-se nesta guerra de gangues. Shakiel, líder de um dos grupos rivais, planeia introduzir armas no país e isto fez que as forças da lei montassem uma grande operação para o travar. Mas, para manter esta operação a salvo, a investigação do homicídio de Spencer tem de ser gerida com cuidados adicionais. E isto implica uma relutante cooperação entre os agentes responsáveis pelas diferentes investigações - e a sua própria guerra territorial, que tem de ser posta de parte em nome do bem maior.
Sendo o terceiro livro da série, com várias referências ao passado e uma linha comum a unir várias personagens, uma das primeiras coisas que importa referir acerca deste livro é que a história central é totalmente independente. Sim, há pequenos momentos e uma evolução pessoal que provavelmente fazem com que valha a pena ler os livros por ordem (eu não li os anteriores... ainda), mas a investigação central é uma história própria e não há nada de essencial que não seja plenamente desenvolvido neste livro.
Há também uma multiplicidade de coisas a acontecer ao longo de toda a história, o que faz com que o início possa parecer um pouco confuso, tornando-se porém rapidamente num crescendo de intensidade e acção que abre caminho para um final bastante avassalador. Além disso, ao seguir várias perspectivas - Kieran, Lizzie, Sarah e até Ryan - a autora consegue fazer com que a história seja mais do que a mera resolução de um caso. É a história destas pessoas, dos seus sentimentos e dificuldades, das suas vidas. E isto torna tudo muito mais intrigante.
O que me leva à principal qualidade deste livro: o desenvolvimento das personagens. No início, praticamente todas despertam sentimentos ambíguos. Kieran em particular não é propriamente a mais adorável das personagens. Mas isto tem dois efeitos muitos positivos: primeiro, numa história em que ninguém é perfeito, é mais fácil entender os seus comportamentos e imaginá-los a mover-se num cenário real. Segundo, não sendo perfeitos, podem evoluir. Podem redimir-se. E fazem-no de forma brilhante.
Começa um pouco pausado, sim, mas cedo se torna viciante, convergindo através de várias linhas para dar forma um final bastante memorável. E, com as suas personagens complexas, o seu caso delicado e o seu equilíbrio eficaz entre pessoal e profissional, acção e reacção, vida e morte, cedo se torna uma leitura memorável. E, definitivamente, uma série que vale a pena descobrir.

Autora: Kate London
Origem: Recebido para crítica

sábado, 11 de maio de 2019

Romanceiro Cigano seguido de Pranto Por Ignacio Sánchez Mejías (Federico García Lorca)

"Verde que te quero verde." Provavelmente já todos ouvimos este verso algures, de forma mais ou menos descontextualizada. A obra a que pertence, essa, talvez já não seja tão conhecida como merecia. E, porém, há tanta beleza e tanto ritmo, tanta história contada em poesia neste livro que é difícil não encontrar nele aquela esquiva qualidade que fala ao coração de quem lê.
Não é propriamente fácil descrever este livro, não só porque a poesia tem um certo encanto que se torna indescritível (e que é particularmente evidente nestes poemas específicos), mas porque há um certo embalo nas palavras que é mais sentido do que pensado. Rima, ritmo, imagens e emoções surgem, ao longo destes poemas, num equilíbrio estranhamente delicado, estranhamente cativante, que se entranha na memória quase sem querer e que lá fica durante muito tempo. Porquê? Pois essa é a parte difícil de explicar.
O mesmo equilíbrio que se sente entre os vários elementos do poema é também transposto para a comparação entre o todo e as partes. Cada poema é um todo completo, com a sua mais ou menos estranha história, o seu ritmo quase melodioso e o seu estranho e delicioso contraste de sombra e luz (física e emocional). Mas há como que um fio condutor a moldar todo o conjunto, algo que também não é propriamente fácil de descrever, mas que passa a sensação de que todos estes poemas pertencem juntos: não só pela obra coesa que constituem, mas porque parecem brotar de uma mesma natureza.
E há ainda um outro aspecto muito específico deste livro que importa destacar: tratando-se de uma edição bilingue, permite ver, lado a lado, original e tradução. Ora, isto permite não só apreciar a mestria - e as dificuldades - de transpor o poema para uma língua diferente, mas também, para quem conhecer minimamente o castelhano, apreciar semelhanças e diferenças, reconhecer as nuances do ritmo em ambas as versões e descobrir que os pontos de união são, afinal, mais do que os de divergência.
Eis, pois, um todo que é o equilíbrio das partes, mas também algo mais vasto que a sua soma. Um conjunto em que cada parte é um todo completo, mas que faz com que, da leitura total, brote uma sensação de fascínio - e também de certa indescritível nostalgia - que faz com que todo o conjunto se torne memorável. Ritmo, rima, imagens e emoções entrelaçadas num equilíbrio brilhante. E não é disso, afinal, que se faz a boa poesia?

Autor: Federico García Lorca
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Ilíada, de Homero, em Poucas Palavras (Roberto Piumini)

Ilíada. O nome nunca nos será estranho, nem o dos seus protagonistas: Ulisses, Menelau, Páris, Heitor. Mas a história, essa, é vasta, ou não se tratasse de um dos grandes épicos. Pode, por isso, ser algo intimidante. O que este livro propõe é um resumo sucinto da história, pensado, talvez, para um público mais jovem, e que funciona, ao mesmo tempo, como síntese e simplificação de uma história vastíssima, mas também como um desafio a descobrir depois o original.
Resumir todo um épico a pouco mais de cem páginas afigura-se, à partida, como difícil. E, olhando para a história tal como ela é aqui apresentada, com todas as suas batalhas, negociações, intervenções divinas e tudo o mais, é inevitável a sensação de que há muito pais para esta história do que aquilo que nos é aqui contado. É, ainda assim, uma história completa, cheia de deuses e heróis, de batalhas intensas e sangrentas e que culmina num final particularmente marcante. Para quem (como eu, admito) ainda não leu o poema original, será um belo ponto de partida para despertar a curiosidade. E, para os mais novos, consegue ser também uma belíssima introdução aos meandros da mitologia grega e da lendária história da guerra de Tróia.
Sendo uma versão resumida em poucas palavras, é apenas de esperar que também a escrita seja bastante simples. Há, ainda assim, um aspecto curioso e que reforça também a vontade de ver até que ponto se trata de um reflexo do original: a abundância de comparações e metáforas que surge ao longo de todo o texto, equiparando a batalha a outro tipo de fenómenos e comportamentos naturais. Ora, sendo que a batalha domina todo o livro, estas comparações não deixam de ter um efeito peculiar: por um lado criando uma espécie de distância de observação, por outro, conferindo um certo toque de poesia ao que é, ao fim e ao cabo, uma simplificação em prosa de um poema.
Terminada a leitura, fica esta agradável impressão: a de se ter captado um breve vislumbre de um todo mais vasto, mas um vislumbre suficientemente claro para ficar a conhecer personagens e acontecimentos. Sucinto, mas completo quanto baste, deixa uma grande vontade de ler o épico que lhe deu origem, proporcionando ao mesmo tempo a sempre agradável sensação de se ter mergulhado de cabeça numa boa história.

Autor: Roberto Piumini
Origem: Recebido para crítica

Para mais informações sobre o livro Ilíada, de Homero, em Poucas Palavras, clique aqui.

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Declarações de Guerra (Vasco Luís Curado)

A guerra colonial, muitas vezes associada aos primórdios da revolução e à forma como tudo mudou, parece ser um tema bastante recorrente em muita da literatura nacional. Mas as memórias, essas, pertencem a quem por lá passou. E é dessas mesmas memórias que se faz este livro: quarenta e oito testemunhos da guerra colonial, vista tal como ela foi pelos combatentes que por lá passaram. Sem rodeios, sem eufemismos, a guerra pura e dura - e as suas consequências.
A primeira coisa que importa destacar acerca deste livro é relativamente óbvia: o facto de se concentrar, acima de tudo, nos testemunhos dos combatentes. Mas isto é também especialmente pertinente, já que esta forma de analisar a guerra consegue deixar alguns sentimentos ambíguos: por um lado, a ausência de explicações para lá das apresentadas nos próprios testemunhos faz com que nem sempre seja fácil ver o contexto global; por outro, este olhar simples e directo às memórias de quem por lá passou, contadas na primeira pessoa e sem virar a cara aos aspectos mais chocantes, permite uma visão mais clara do verdadeiro impacto da guerra, nos que lá ficaram... e nos que lá deixaram pelo menos uma parte de si mesmos.
Nunca será uma leitura fácil, até porque o próprio conteúdo se assegura disso. Há relatos de brutalidade, de ataques devastadores, de feridos, de mortos, de mutilados... Tudo isto é, inevitavelmente, perturbador. E há ainda uma outra faceta igualmente perturbadora, que vem na forma das marcas que ficaram depois. A forma como alguns destes testemunhos se referem com naturalidade a actos de descontrolo e de violência já de regresso ao que se supunha ser a normalidade consegue ser igualmente chocante - sendo, ao mesmo tempo, testemunho das marcas deixadas pelos traumas.
Ficam, por isso, os tais sentimentos ambíguos: talvez um maior contexto permitisse ver certas acções de uma perspectiva diferente, mas, ao narrá-los apenas tal como foram, fica mais clara a dimensão do impacto e das perturbações que ficaram. Além disso, tratando-se de um conjunto de testemunhos, fica também bem evidente o conhecimento limitado que cada um tinha dos comos e dos porquês da guerra - o que não deixa de ser também algo de relevante a ter em conta.
Não, não é uma leitura fácil - nem deve ser. O que é, sim, é um livro bastante relevante não só para ver mais de perto os actos e as consequências de uma guerra, mas também que ela nunca termina realmente para quem por lá passou. Muito pertinente, em suma, e repleto de material para reflexão.

Autor: Vasco Luís Curado
Origem: Recebido para crítica