quinta-feira, 30 de abril de 2020

Y - O Último Homem: Os Porquês e os Portantos (Brian K. Vaughan, Pia Guerra e José Marzán Jr.)

Yorick tem finalmente as respostas sobre o motivo da praga que exterminou (quase) todos os homens do planeta. Agora, falta-lhe reencontrar a namorada que, durante todo esse tempo de busca, nunca lhe saiu do pensamento. Mas essa última fase do caminho não está isenta de perigos. Há quem continue à sua procura, alguns devido aos laços que os unem, mas outros com motivações mais duvidosas. E os anos passaram, de facto, o que significa que nem Yorick nem Beth são os mesmos que quando tudo começou. E o que devia ser um final feliz transforma-se em algo de muito diferente...
É o volume final de uma série toda ela cheia de surpresas, por isso seria, à partida, expectável que continuasse a surpreender. Mas provavelmente não desta forma. É que, ao longo de todo o caminho, com todos os altos e baixos da busca de Yorick por respostas, houve algo que se manteve mesmo nos momentos mais difíceis: o estranho e delicioso sentido de humor do protagonista, capaz de conferir leveza até aos momentos mais sombrios. E, juntando a isto o verdadeiro crescimento interior demonstrado por Yorick, era inevitável chegar a este ponto a torcer por um final limpo e tranquilo para alguém que passou por tanta coisa. Bem... não vou, obviamente, dizer como termina. Direi, sim, que é muito mais complexo e emocionalmente marcante do que o esperado. E também estranhamente adequado.
É também algo de particularmente notável a forma como, neste último volume, o cerne da história se desloca da busca por uma resposta global para a construção de um destino pessoal. Yorick, Beth, a agente 355, Hero... todas as personagens encontram neste último volume o seu derradeiro caminho, o que é particularmente interessante tendo em conta que a conclusão se projecta para sessenta anos no futuro. Mas também neste aspecto é Yorick que se destaca, com o reencontro, as derradeiras revelações e os confrontos finais a darem lugar a uma conclusão mais profunda e pessoal, em que os laços do caminho deixam a sua última marca, abrindo portas a um último vislumbre do artista de fugas que tantas aventuras protagonizou.
E importa ainda olhar uma última vez para o factor visual e, sobretudo, para a expressividade dos rostos. Há pequenas coisas que se tornam mais evidentes do que nunca: as semelhanças entre Yorick e Hero, a forma como as emoções se espelham nos rostos e até as ligeiras diferenças entre o Yorick original e o seu... legado, por assim dizer... fazem com que até o mais pequeno dos momentos pareça transbordar de vida. Além disso, há entre as personagens coisas que ficam por dizer, mas que se vêem na forma como as suas expressões são desenhadas.
Intenso, pessoal e cheio de surpresas, é, sem dúvida, um final à altura das altas expectativas criadas pelos volumes anteriores desta longa série. E é também o destino adequado - ainda que não o expectável - para um núcleo de personagens que, nesta longa jornada, se foi gradualmente tornando inesquecível. Yorick Brown termina aqui a sua história... mas continua na memória de quem a ler.

Autores: Brian K. Vaughan, Pia Guerra e José Marzán Jr. 
Origem: Aquisição pessoal

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Max Einstein - O Gangue dos Rebeldes (James Patterson e Chris Grabenstein)

A Max é um jovem génio. Não importa que não conheça o seu passado, nem as dificuldades por que já passou. A sua mente é brilhante e foi precisamente isso que a transportou para um mundo novo. Agora, escolhida por um benfeitor milionário para liderar os projectos de uma organização dedicada a fazer o bem pelo mundo, Max tem finalmente a oportunidade de pôr em funcionamento os complexos mecanismos do seu pensamento. Mas isso não significa que esteja segura. Os seus inimigos continuam a persegui-la, na esperança de a persuadirem a trabalhar para a sua sinistra organização. Felizmente, está rodeada de bons amigos - e tão geniais como ela.
Uma das primeiras coisas a sobressair das aventuras da Max Einstein - e deste volume em particular - é a visão positiva e optimista do mundo que move os protagonistas. São uma organização dedicada a resolver os problemas do mundo, trazendo esperança às pessoas e contribuindo para um mundo melhor. Poderá parecer até algo inocente, num mundo onde - à semelhança dos adversários da Max - a ganância parece ter o domínio. Mas é precisamente esta luta contra as possibilidades - e a brilhante capacidade das personagens de enfrentar cada problema com ideias surpreendentes e inovadoras - que torna estas aventuras tão empolgantes.
Escusado será dizer que, sendo uma aventura com vista a melhorar o mundo, é uma história repleta de temas importantes. Neste caso, trata-se da importância da água potável o elo de ligação entre as missões do grupo da Max. E é interessante notar que, além de ponto de partida para algumas situações intensas e muitas ideias geniais, serve também de base para a reflexão sobre questões como os efeitos da poluição e a influência de certas corporações que fazem negócio a partir de algo que devia ser de todos. É, acima de tudo, um livro de aventuras, mas com uma base bastante mais profunda do que à partida se esperava. E é também uma forma leve - e eficaz - de abordar temas bem sérios.
Importa, ainda assim, não esquecer o lado mais leve, porque é, afinal, de uma história que se trata. E, além das aventuras, dos mistérios (sobretudo no que respeita ao passado da Max) e das ideias brilhantes que, aos poucos, vão mudando o mundo, há ainda um outro aspecto que se destaca: o humor. Todo o livro tem um tom bastante leve, auxiliado pela escrita directa e pelos capítulos relativamente curtos que tão característicos são de James Patterson. Mas há rasgos de humor que são efectivamente geniais, não só pela precisão com que surgem, mas sobretudo pela forma como realçam os laços de amizade e de (relativa) harmonia entre os vários elementos do grupo da Max.
Leve, empolgante e muito divertido: assim se poderá descrever esta nova aventura da Max Einstein e do seu grupo de génios. Uma aventura de esperança e de optimismo que prova com exactidão que é possível falar de coisas sérias sem perder de vista a leveza e a simplicidade. 

Autores: James Patterson e Chris Grabenstein
Origem: Aquisição pessoal

terça-feira, 28 de abril de 2020

Dias que Voam Outono (Fernando André Gonçalves)

Jérôme Bourbon tinha uma vida serena, com o seu cargo de professor universitário e a sua relação feliz, mas tudo mudou com a morte de Isabelle, que o mergulhou numa profunda escuridão. Será uma inesperada descoberta a arrancá-lo do abismo - um quadro à venda numa feira de velharias, pintado por alguém que partilha o seu nome. Por impulso, ou talvez pela força do destino, Jérôme dá por si a seguir os passos do seu homónimo, a comprar a casa do pintor e a partir, sem outra bagagem além do quadro, rumo a uma nova cidade. Aí, encontrará novos mistérios, a fascinante história da vida do seu homónimo - com quem tem, afinal, tanto em comum - e a possibilidade de um amor que, para existir, lhe exigirá que tudo aquilo que foi fique no passado.
Uma das primeiras coisas que importa realçar sobre este livro é que não é propriamente fácil de descrever. Contém no seu interior demasiadas vertentes para o enquadrar numa exposição simples. Alonga-se na introspecção, não só do protagonista, mas também do pintor cujo rasto ele segue, o que lhe confere um registo ao mesmo tempo pausado e intimista. Acrescenta-lhe uma história de amor perdido e de outro que aspira a desabrochar, o que proporciona momentos de estranha emotividade. E junta-lhe ainda mistérios e enigmas em abundância, que vão da identidade do pintor aos quadros escondidos e à história pessoal de um sobrevivente do Holocausto cuja relação com o pintor é surpreendentemente próxima. São múltiplos fios diferentes a convergir para o mesmo centro, e o resultado é algo complexo, mas também equilibrado.
Também a escrita se encaixa nesta espécie de descrição, pois tem, ao mesmo tempo, um encadeamento cativante e a complexidade de uma visão que tanto se demora em acontecimentos concretos como em longas meditações e abstracções. É certo que isto torna a leitura um pouco mais densa, mas confere-lhe também profundidade, o que não deixa de ser particularmente interessante tendo em conta o rumo da história destas personagens.
E há ainda um último ponto que importa referir. Há, ao longo de toda a narrativa, uma discreta presença que não é bem espiritual, mas que traça laços profundos entre vidas. Esta presença vai-se adensando e torna-se particularmente relevante no final que, deixando embora muito em aberto, atinge um equilíbrio estranhamente eficaz. Jérôme e Jérôme dão-se finalmente a conhecer na sua unicidade - mas é aí que as suas vidas convergem. Não são, por isso, as perguntas sem resposta que ficam no pensamento, mas as possibilidades de um fim que é o mais adequado a todo o percurso.
Pausado, complexo e sobretudo profundo nas suas contemplações, é um livro que exigirá o seu tempo. Mas, na sua teia certeira de vidas e de pensamentos - marcados pelo único elo universal da passagem do tempo - vai-se gradualmente entranhando na memória e é lá que fica uma vez terminada a leitura. Vale a pena, sem dúvida, conhecer esta história. E, sobretudo, os mistérios que encerra.

Título: Dias que Voam Outono
Autor: Fernando André Gonçalves
Origem: Recebido para crítica

domingo, 26 de abril de 2020

Gideon Falls, Vol. 2: Pecados Originais (Jeff Lemire, Andrea Sorrentino e Dave Stewart)

Traumas e descobertas parecem, à primeira vista, ter ficado para trás, como um pesadelo que lentamente se esbate, enquanto, num outro local de identidade semelhante, há quem procure explicações e, quem sabe, até uma reconstrução. Tudo converge para o mistério do Celeiro Negro, o mesmo que, a cada aparição, deixa morte e caos à sua passagem e parece apelar de formas similares à consciência de um padre e de um jovem mentalmente instável. Tudo é loucura - mas nada é fruto da imaginação. E, se o Celeiro existe, o que é e quem o habita? E qual será o preço de o reencontrar?
Sendo certo que uma das grandes forças deste livro é a intensidade e a vastidão do mistério que contém, não é, ainda assim, este mistério o que mais se destaca ao embarcar nesta leitura. É uma das suas facetas, claro, e parte do que lhe confere intensidade, mas, mais do que a história e as possíveis perguntas e respostas, há algo de tão singularmente especial na arte desta série - e deste volume em particular - que é impossível não ficar de olhos presos às imagens, ao encadeamento que não podia estar mais longe dos quadros lineares e sucessivos, ao contraste de luz e escuridão nas cores, ao vermelho que parece reflectir na perfeição a perigosidade do Celeiro e, sobretudo, aos enquadramentos singulares em que os momentos fulcrais são apresentados. Espirais de ADN, imagens que se estilhaçam em minúsculas partículas, círculos convergentes para uma única resposta - tudo isto vem imediatamente à memória ao primeiro olhar. E, tendo em conta a peculiaridade da história propriamente dita, não há dúvidas de que esta construção singular reforça infinitamente o seu impacto.
Olhemos então para a história e para as personagens que a povoam. Tudo parece assentar numa sucessão de reflexos, em que as histórias dos dois protagonistas se vão aproximando cada vez mais a cada revelação. O que é o Celeiro e que tipo de influência exerce continua a ser um grande enigma, mas desenvolvimentos e revelações não faltam e tudo culmina, aliás, num final particularmente poderoso. Que deixa tudo em aberto, é certo, mas que abre portas a uma fase seguinte que não pode ser senão absolutamente nova.
E há o grande mistério, claro, e a forma como se equilibra com os fantasmas interiores das personagens. A influência do Celeiro é incognoscível, ainda que seja óbvio que não é propriamente benéfica. Mas, para além deste mistério central, e da forma como a sua teia se estende para as personagens principais, há ainda os percursos pessoais de cada um: a difícil relação de Norton com a sua pretensa loucura; o passado do padre, que o leva a mudar constantemente de lugar; e as improváveis alianças que se vão formando, movidas pela própria percepção do inexplicável e do que parece ser, afinal, uma loucura comum. Porque é verdade que tudo fica em aberto, mas há já uma certeza: nada disto corresponde propriamente à definição de normal.
O que fica é, pois, a imagem de um livro feito todo ele de sombras memoráveis. Visualmente poderosíssimo, intrigante no mistério e marcante no delicado equilíbrio de forças entre as vulnerabilidades pessoais e a imperiosa necessidade de respostas, é tão sombrio como singular e fascinante. E é precisamente isso que o torna tão bom.

Título: Gideon Falls, Vol. 2: Pecados Originais
Autores: Jeff Lemire, Andrea Sorrentino e Dave Stewart
Origem: Recebido para crítica

sábado, 25 de abril de 2020

O Prazer da Leitura (Marcel Proust)

A leitura pode ser muitas coisas: escapismo, abstracção, fonte de aprendizagem, base para reflexão, manancial de conhecimento, inspiração e companhia, entre muitas outras coisas. E é, naturalmente, um prazer. Mas ver o prazer da leitura, e sobretudo da leitura dos clássicos, pela pena de um autor que é, ele mesmo, clássico acrescenta complexidade e profundidade a esta ponderação. E o que é, afinal, um prazer muito simples torna-se denso e complexo, ressoando de formas inesperadas.
Algo que importa referir, à partida, sobre este livro é que parece ter sido pensado como prefácio a uma outra obra. Não surpreendem por isso as muitas referências que surgem ao longo do texto, tal como não surpreende a relativa brevidade. Surpreende, sim, que num livro tão curto sejam tão complexos e elaborados os pontos de vista, tão detalhadas as descrições e tantas as citações e autores referidos. E, sendo certo que a leitura adquire um registo bastante pausado, também o é que não faltam as frases memoráveis, bem como a visão global de que o prazer da leitura como um todo pode ser algo de muito mais vasto do que a simples experiência pessoal.
Há também um contraste entre as diferentes etapas abordadas no livro, com um ênfase especial dado às leituras da infância e à forma como, mais do que a memória dos livros, fica a memória do que se passava quando os estávamos a ler. É este o aspecto mais marcante deste texto. Afinal, já nos aconteceu a todos associar um determinado livro a um certo acontecimento que sucedeu quando o estávamos a ler, certo? E não apenas na infância. Mas há um outro aspecto a enfatizar desta parte: é que é a mais pessoal de todo o texto, bem como a mais fluida. E, por isso, também a que mais nitidamente fica na memória.
Quanto aos muitos autores e citações apresentadas, poderá tratar-se de um factor difícil de acompanhar caso não se conheça muito bem o seu percurso. É que, além dos nomes propriamente ditos, muitas das citações surgem em francês ou latim - o que exige alguma pesquisa para descobrir o seu significado. O resultado é como que um contraste vincado entre uma primeira parte de grande proximidade e uma que se afasta para fontes mais longínquas - tendo, ainda assim, como elo comum a leitura nas suas múltiplas vertentes.
Eis, pois, um livro que, sob a sua aparente brevidade, esconde uma surpreendente e complexa vastidão. E, por isso, um livro surpreendentemente exigente, mas particularmente interessante na sua abordagem ao prazer da leitura.

Autor: Marcel Proust
Origem: Aquisição pessoal

quinta-feira, 23 de abril de 2020

O Teu Corpo é Teu! (Rachel Brian)

O consentimento é, na verdade, uma coisa muito simples - ou, pelo menos, devia sê-lo para todos. O nosso corpo é nosso e quem define os limites somos nós. E o mesmo se aplica a todos os outros: tal como os nossos limites são para manter, também não devemos tentar forçar os limites dos outros. Simples, não é? Mas muitíssimo importante. E se existem até adultos com dificuldade em entender este conceito, mais importante se torna explicá-lo de forma clara e acessível aos mais novos. É precisamente isso que este livro faz.
Pese embora o facto de ser um livro nitidamente pensado para os mais novos, e construído como tal, algo que cedo se torna evidente é que se trata de uma leitura relevante e esclarecedora para leitores de todas as idades. É que, se é verdade que as questões abordadas são no fundo bastante simples, e a forma como são descritas realça ainda mais a sua clareza, também o é que basta um olhar rápido às notícias do nosso mundo para perceber que estes limites tão claros nem sempre são respeitados. Há, pois, muito a aprender com este livro - e está muito longe de ser apenas para crianças.
Outro aspecto a sobressair desta leitura é a capacidade da autora de abordar de forma clara um tema sério, proporcionando, ainda assim, uma leitura leve e divertida. Além disso, os vários exemplos de consentimento, aplicados a coisas tão simples e surpreendentes como umas cócegas ou levar com uma tarte na cara, põem em evidência que a questão dos limites e da autonomia não se aplica apenas a um contexto específico - e muito menos a esse grande e muito específico grupo de pessoas que são os desconhecidos.
Mas importa, sobretudo, realçar duas facetas: primeiro, a forma clara e acessível com que os vários aspectos do consentimento (limites, possibilidade de mudar de ideias, procura de apoio, ausência de culpa) são abordados, ilustrando com exemplos as questões essenciais e apontando ainda formas de procurar ajuda em caso de necessidade; depois, a forma propriamente dita, com as ilustrações simples, mas claras e divertidas, a dar muito mais vida às ideias do que o mero texto escrito poderia fazer.
Pensado para os mais novos, mas relevante para todos os leitores, trata-se, pois, de uma forma acessível e cativante de abordar uma questão que não só é importantíssima como - pelo menos para os adultos - devia ser evidente. E basta este simples facto para que este livro mereça uma forte recomendação.

Autora: Rachel Brian
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 22 de abril de 2020

O Passado (Tessa Hadley)

Será, à partida, a última reunião familiar na casa onde os quatro irmãos cresceram, mas os laços de sangue que os unem não significam necessariamente umas férias tranquilas para Harriet, Alice, Fran e Roland. Fran levou os filhos. Alice, o filho do antigo namorado. Harriet foi sozinha, mas decidida a partir mais cedo. E Roland levou a nova mulher e a filha resultante de um casamento anterior. Entre todos, geram-se tensões e mistérios, não só sobre o que devem fazer à casa onde se encontram, mas sobretudo nas sombras de um passado que persiste em manifestar-se nas relações actuais. Pelo caminho, haverá quem descubra o amor e o desencanto. E, no fim, todos levarão na alma algo de diferente.
Uma das primeiras coisas que importa realçar acerca deste livro é que, apesar de não ser particularmente longo, exigirá algum tempo, não só pelo ritmo algo pausado e descritivo que a autora confere à narrativa, mas sobretudo pela complexidade das próprias relações. Não há um único protagonista - nem sequer quatro. Todas as personagens, presentes e passadas, assumem um papel importante. E, sendo certo que demora algum tempo a assimilar as relações e histórias pessoais de cada um, também o é que é essa mesma complexidade que confere profundidade à leitura.
Não é só às relações que a complexidade se cinge. Há para cada personagem uma evidente ambiguidade, com aversões que se tornam empatias e vice-versa, escolhas de moralidade dúbia, mas que se revelam a uma nova perspectiva devido à idade dos intervenientes e até uma teia de afectos e manipulações que gera o estranho desejo simultâneo de aproximação e afastamento. Nada é linear nesta família - nem as relações, nem as personalidades. E, quando a história se embrenha no passado, vêm à superfície novas semelhanças - bem como um certo mistério que nunca chega a ser totalmente desvendado sobre o passado dos quatro irmãos.
É como se nada fosse fácil na vida destas personagens, nem mesmo os laços que as unem àqueles em cuja companhia cresceram - ou estão a crescer. E é talvez desta impressão sombria, a de múltiplas vidas traçadas na sombra, que resulta a estranha e fascinante impressão que permanece ao longo de toda a leitura: a de um mergulho lento na vida das personagens, pausado e ambíguo, por certo, mas com rasgos de estranha intensidade e um percurso estranhamente memorável.
Exigirá o seu tempo, mas vale cada minuto. Pois, com a sua teia de relações complexas, descobertas misteriosas e personalidades em constante crescimento, não deixa de fascinar pela profunda ambiguidade e pela intensidade das tensões que unem estas personagens. Vale a pena, sem dúvida, conhecer esta família.

Título: O Passado
Autora: Tessa Hadley
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 21 de abril de 2020

Y - O Último Homem: Mãe Terra (Brian K. Vaughan, Pia Guerra, Goran Sudzuka e José Marzán Jr.)

Passaram quatro anos desde que um misterioso acontecimento eliminou todos os homens do planeta. Bem, quase todos. E as respostas parecem finalmente estar um pouco mais perto. Yorick, Ampersand e as suas improváveis companheiras estão agora na China, em busca da mãe da doutora Allison e de um conjunto de respostas que talvez abram caminho à reposição do equilíbrio. Mas o passado de Allison voltou para a assombrar e uma antiga rivalidade familiar traz várias das muito procuradas respostas... que não serão certamente as mais desejadas. O fim está próximo... ou, pelo menos, o fim do mistério. Mas o caminho de Yorick ainda não acabou. E o mistério do desaparecimento dos homens não é o único a precisar de respostas.
Parece ser um traço comum (e delicioso, diga-se de passagem) às séries de Brian K. Vaughan esta capacidade de, após muitos volumes e uma profunda familiaridade com as personagens, acrescentar, ainda assim, sempre algo de novo. Nesta série, paira sobretudo o grande porquê - porque desapareceram os homens? - mas há muito mais para além desse grande mistério. E as grandes revelações deste livro sobre a família de Allison, associadas ao já habitual ritmo de acção constante, cheio de movimento e do habitual sentido de humor de Yorick, conferem-lhe uma profundidade emocional mais intensa, que vem acrescentar impacto a uma história que é já toda ela cheia de surpresas.
Outro aspecto característico desta série é a oscilação entre diferentes percursos. Pode ser Yorick o protagonista, mas está muito longe de ser a única personagem relevante. E; além de acrescentar um poderoso contraste visual, pois os cenários distintos permitem uma variação de tons e de expressões que acrescenta à experiência visual um contexto mais vasto, esta divisão entre diferentes caminhos vai insinuando redes de ligação e de contacto que, de contornos ainda esbatidos, prometem grandes revelações para o volume final. E, claro, tal como não é a única personagem relevante, Yorick não é o único a despertar uma forte sensação de empatia. E se isto era expectável das personagens que vêm do início, não deixa de ser também uma grande surpresa a entrada em cena de figuras aparentemente secundárias, mas igualmente capazes de despertar emoções intensas.
Mas por algum motivo é Yorick o protagonista e há um aspecto que nunca deixa de se destacar: o seu estranho - e estranhamente delicioso - sentido de humor. Menos evidente do que noutros volumes, até porque a situação tem vindo a crescer em gravidade, manifesta-se, ainda assim, nos momentos certos (e momentos certos não quer dizer momentos seguros, entenda-se). Além disso, há toda uma expressividade nas expressões de Yorick (e das outras personagens também, mas neste caso é ele que interessa) que faz com que essas observações peculiares ganhem um outro impacto. Como se no-las dissesse directamente.
É o penúltimo volume e revelações não faltam. Mas tem, sobretudo, a mesma força, a mesma envolvência e o mesmo equilíbrio eficaz entre movimento e expectativa, entre acção e mistério, entre humor e emoção. E, claro, as mesmas personagens fortes numa corrida em busca da verdade que se afigura já inevitavelmente surpreendente. Se vale a pena continuar a seguir esta série? Oh, sem dúvida alguma.

Autores: Brian K. Vaughan, Pia Guerra, Goran Sudzuka e José Marzán Jr. 
Origem: Aquisição pessoal

domingo, 19 de abril de 2020

Chapéus Há Muitos, Unicórnio! (Dana Simpson)

A Bia e a sua amiga Pureza - que, diga-se de passagem, é um unicórnio - já estão habituadas a viver pequenas grandes aventuras juntas. Pequenas porque pode ser algo tão simples como um passeio à chuva. Grandes, porque contêm sempre uma revelação. E magia, claro. Porque as capacidades da Pureza vão desde a mera contemplação da sua estonteante beleza a iluminar a casa quando falha a luz, passando por uma influência discreta nos presentes que a Bia recebe e pela maior magia de todas: a amizade. Esta é mais uma das cativantes aventuras deste duo improvável e enternecedor.
Há dois aspectos que sobressaem sempre ao ler um destes livros - e este novo volume não é excepção. O primeiro é a forma como, embora composto por vários episódios breves, constrói, ainda assim, uma linha sequencial para a vida da Bia e da Pureza. São histórias breves e simples que, em conjunto, formam um todo maior, mas que também podem ser lidas de forma mais ou menos independente (ainda que a maioria se estenda por algumas páginas). Faz, de certa forma, lembrar Calvin e Hobbes, mas com... bem... um unicórnio. Além disso, há outro ponto em comum: a inocência. É tudo muito simples, as histórias são bastante breves, mas importa ter sempre presente que as protagonistas são uma miúda e um unicórnio. Mostram, por isso, uma inocência que, além de particularmente enternecedora, faz todo o sentido num livro como este.
Este equilíbrio de simplicidade e inocência faz especial sentido tendo em conta que se trata de um livro juvenil. Mas tem também uma outra faceta: às vezes, não são precisas muitas palavras para dizer uma grande verdade. E a verdade é que, nas aventuras da Bia e do seu unicórnio, há sempre uma presença mais ou menos discreta de mensagens e valores positivos que não só são importantes de transmitir aos mais novos como também de lembrar àqueles de nós que já deixámos a juventude para trás.
E, claro, há ainda aquele ponto para que é impossível deixar de olhar: a ilustração. Havendo um unicórnio envolvido, é apenas expectável que cor e brilho não faltem. Mas também aqui se nota o tal equilíbrio entre simplicidade e inocência, sem grandes elaborações nos cenários, mas com uma expressividade surpreendente a dar vida às personagens. Além, é claro, das particularidades de algumas das personagens (como, por exemplo, um dragão de aspecto surpreendentemente fofo que diz "rau"), que são algo de particularmente cativante.
Leve e simples, inocente e enternecedor, trata-se, em suma, de mais um conjunto de pequenas histórias que formam, ao todo, uma história maior. A história de uma amizade improvável, mas muito verdadeira, e de toda a magia que daí pode resultar.

Autora: Dana Simpson
Origem: Recebido para crítica

sábado, 18 de abril de 2020

As Feministas Também Usam Soutien

De cada vez que se fala em feminismo - sobretudo nas redes sociais -, nunca falham as vozes do protesto a dizer que é um exagero, uma histeria, que as feministas têm é ódio pelos homens e que querem ser superiores a eles. Não falham nem mesmo aqueles que defendem o regresso ao papel submisso da "bela, recatada e do lar" e os que dizem que lutar pelos direitos das mulher é naqueles países de *introduzir destino à escolha*, que aqui a igualmente é mais que garantida. Mas será? Basta olhar para os números da violência doméstica, para certos hábitos e comportamentos que prevalecem e até para coisas tão aparentemente inócuas como a roupa para meninos e para meninas para perceber que os preconceitos subsistem. Este livro reúne um conjunto de pessoas que, como diz a capa, sem medo da igualdade, falam das suas experiências pessoais ou traçam contextos mais vastos, traçam desenhos ou poemas sobre o tema - e trazem também múltiplas perspectivas para uma luta que talvez já não devesse ser necessária - mas é.
O grande ponto forte deste livro - além da óbvia importância do tema - é a diversidade de estilos e perspectivas que apresenta para um tema comum. Não só as formas que variam e surpreendem, mas também o tipo de experiências contadas ou a análise mais política ou filosófica que é acrescentada a estes percursos pessoais. Cada um tem as suas próprias perspectivas - e sobretudo experiências, o que faz com que cada texto acrescente algo de novo. A uni-los está a importância do tema comum e a certeza de que todos têm algo de relevante a acrescentar.
Também a dimensão dos textos varia consideravelmente, bem como a impressão que estes despertam. Alguns, mais extensos e elaborados, tornam-se um pouco mais distantes, enquanto outros, igualmente longos, parecem abrir as portas da vida da autora. Quanto aos mais breves, alguns parecem talvez demasiado simples, enquanto outros alcançam o equilíbrio perfeito através da concisão da sua mensagem. Mas é sempre mais o conteúdo que a forma o que fica na memória e este equilíbrio de diferentes perspectivas unidas em torno de um tema comum revela-se particularmente eficaz na transmissão da sua mensagem.
A impressão que fica é, pois, a de uma leitura leve quanto baste, mas muito pertinente no que pretende transmitir. Um interessante conjunto de perspectivas e testemunhos pessoais e, sobretudo, um realçar da ideia por vezes difícil de entender de que feminismo não é uma palavra feia. É igualdade.

Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Os Beresford - Mister Brown (Emilio Van Der Zuiden)

Tuppence Cowley e Thomas Beresford conheceram-se em circunstâncias delicadas durante a Primeira Guerra Mundial e é também em circunstâncias delicadas - agora financeiras - que se reencontram. Mas, desse encontro casual, nasce uma ideia ousada: tornarem-se no tipo de aventureiros que, pela quantia certa, realizam certas tarefas que as pessoas normais não estão dispostas a levar a cabo. Não esperam é que o seu primeiro caso seja ao serviço das autoridades britânicas. Durante a guerra, uma sobrevivente do naufrágio do Lusitania desapareceu com documentos comprometedores. E agora não são apenas as autoridades que a procuram, mas também uma misteriosa organização cujas intenções são bem menos inofensivas. Cabe, pois, a Tuppence e Thomas descobrir o paradeiro da desaparecida Jane Fish e desvendar a identidade do misterioso Mister Brown.
Um dos aspectos interessantes de ler estas adaptações sem conhecer previamente o original é que todas as surpresas da história - e é, afinal de contas, um mistério - são efectivamente novas. Tudo o é, aliás, desde as personagens à intriga, passando também pelas relações pessoais. E é algo de curioso que, nesta história relativamente breve, há espaço para um pouco de tudo: intriga política, um naufrágio, raciocínio dedutivo, descobertas feitas por acaso e uma surpreendente abundância de amor.
Também o encadeamento visual é particularmente interessante, com os grandes planos do Lusitania a contrastar com os quadros mais pequenos e os tons mais sombrios dos cenários mais... conspiradores. E até um passeio um tanto ou quanto labiríntico em que informação também labiríntica é partilhada. Tudo isto resulta num equilíbrio eficaz entre um texto que é, apesar de tudo, relativamente extenso, mas em que parte das revelações e das surpresas vem também dos contrastes visuais que vão surgindo.
Sendo um livro relativamente breve, é natural que alguns desenvolvimentos decorram com certa rapidez, o que deixa uma vaga impressão de que talvez houvesse um pouco mais a dizer sobre certos pontos. Ainda assim, tendo em conta as linhas essenciais da história, faz sentido que esses aspectos sejam deixados numa certa ambiguidade - refiro-me sobretudo a Jane Fish e aos seus anos de ausência. E a verdade é que os elementos essenciais estão todos lá.
O que fica é, portanto, a impressão de uma leitura relativamente leve, mas muito intrigante e cheia de surpresas. Completa em si mesma, lê-se perfeitamente sem qualquer conhecimento da história que lhe deu origem. E uma coisa é certa: Thomas Beresford e Tuppence Cowley dificilmente poderiam gerar uma melhor primeira impressão.

Autor: Emilio Van Der Zuiden
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 14 de abril de 2020

Uma Mensagem Através da Vedação (Doug Gold)

É em plena guerra e em território ocupado pelos nazis que Bruce e Josefine se conhecem por acaso. Ele é um prisioneiro de guerra, num campo de trabalho onde o confinamento se torna ainda mais pesado devido ao tédio. Ela é uma resistente, pertencente a uma organização que combate os nazis na clandestinidade. E, quando Josefine se dirige ao campo na tentativa de saber notícias do irmão desaparecido, é com Bruce que se depara. Aquela mensagem passada à pressa através da vedação marca apenas um instante no tempo. Mas é também o princípio de algo de profundo que desabrochará com o reencontro. Apesar dos tempos conturbados que ambos vivem...
São inúmeros os livros publicados sobre a Segunda Guerra Mundial, dos romances aos testemunhos, passando pelos livros de divulgação histórica e análises do contexto da época. E é impressionante como, por mais livros que se leiam sobre o tema, é tal o impacto dos horrores desse tempo que é impossível ler com indiferença este tipo de histórias. Este é um livro um pouco diferente, contado na forma de romance, mas seguindo fielmente o percurso de duas figuras reais. E, se esta forma de contar a história a torna mais envolvente, o facto de ser verdadeira dá-lhe um impacto avassalador.
Há também algo de notável nos percursos individuais dos protagonistas desta que é também uma história de amor. O percurso de Bruce, o soldado neozelandês que se alistou quase com leviandade, viu o tédio dos preparativos, o horror do combate e depois as dificuldades do confinamento contrasta com o percurso de Josefine, levada à resistência pela crueldade dos ocupantes e pelo exemplo dos irmãos. À primeira vista, não poderiam ser mais diferentes, mas partilham o mesmo tipo especial de coragem - ainda que se manifeste de formas diferentes. Além disso, o facto de terem vidas tão diferentes faz com que a história de ambos reflicta um contexto mais vasto. Bruce deixa um país tranquilo para ir para a guerra. Josefine viu a guerra invadir-lhe o país. E o facto de virem de mundos diferentes torna ainda mais impressionante o laço criado entre os dois.
É uma história repleta de emoções, que vão do choque face aos momentos mais horríveis à tensão face aos muitos perigos enfrentados, passando também pelos rasgos de leveza introduzidos pelo peculiar sentido de humor de Bruce e também pela frustração burocrática. E é aqui que o facto de a história ser narrada como um romance se destaca: lê-se como um romance, fascina como um romance. Tem toda a envolvência de um romance. Mas sabemos que é uma história real, o que só a torna mais impressionante.
História de amor em tempos de guerra, de esperança em tempos desesperados e da coragem de agir mesmo quando as consequências se afiguram ameaçadoras, eis, pois, um livro que narra, com toda a e envolvência e fluidez de um romance, uma história impressionantemente verídica. Bruce e Josefine passaram por muito no amor e na guerra. Vale muito a pena conhecer a sua história.

Autor: Doug Gold
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Porque Fazemos Aquilo que Fazemos (Joel Levy)

A mente é um labirinto de possibilidades insuspeitas, cujos mecanismos deram origem a inúmeras teorias. Algumas foram desacreditadas com o tempo. Outras continuam a ter apoiantes fiéis. Mas como funciona, afinal, a mente? Que mecanismos estão por trás daquilo que fazemos? Genética ou educação? Inconsciente ou condicionamento? São muitas as perguntas no âmbito da psicologia. Este livro oferece algumas respostas.
Tal como com os outros livros desta interessante colecção, um dos grandes pontos fortes deste volume é a sua simplicidade. Para cada pergunta, são apresentadas explicações concisas, expondo as bases das principais teorias e as linhas gerais de cada ideia, sem perder demasiado tempo com os pormenores mais complexos, mas permitindo uma visão global de cada resposta. Claro que há muito mais a descobrir sobre cada tema, mas as bases essenciais estão presentes, o que faz deste livro um bom ponto de partida para conhecer as bases e - para quem quiser saber mais - descobrir os nomes e os caminhos a seguir.
Além de muito interessante, é também uma leitura relativamente leve, na medida em que as explicações são bastante sucintas e expostas de forma a realçar o essencial. Além disso, ao estruturar o livro sob a forma de respostas a um amplo conjunto de perguntas, obtém-se um registo mais fluido, pois, embora haja ligações entre os diversos aspectos, cada tema é visto em relação com a pergunta que lhe serve de base. O resultado é uma assimilação mais natural das ideias, pois cada teoria é vista sobretudo da perspectiva de uma resposta prática.
Há ainda, apesar da relativa brevidade, espaço para uma perspectiva global, resultante, em grande medida, da menção a teorias actualmente descredibilizadas. É, talvez, um aspecto secundário, mas resulta quase naturalmente da leitura das várias respostas a percepção de que as certezas de hoje podem ser os erros de amanhã. Claro que também sobre este aspecto haveria mais a desenvolver - como, aliás, sobre quase todas as teorias abordadas - mas a base essencial está lá.
A impressão que fica é, pois, bastante semelhante à dos outros volumes desta colecção: um livro simples e acessível, mas repleto de informação interessante, e um óptimo ponto de partida para descobrir os vários ramos e aplicações da psicologia.

Título: Porque Fazemos Aquilo que Fazemos
Autor: Joel Levy
Origem: Recebido para crítica

sábado, 11 de abril de 2020

Saga - Volume Nove (Brian K. Vaughan e Fiona Staples)

Marko e Alana continuam a deambular pelos mundos, mantendo-se discretos e em movimento a fim de proteger a sua família dos muitos inimigos que os procuram. Mas, embora haja entre eles uma relativa paz, que abrange também os novos e mais ou menos relutantes aliados que foram fazendo pelo caminho, o inimigo está cada vez mais próximo. Anuncia-se também uma separação, agora que o Sir Robot está disposto a contar um grande segredo em troca de uma vida nova para ele e para o filho. Mas a separação não é de todo a que se espera... e tudo terá mudado quando este volume acabar.
Algo que se foi tornando cada vez mais evidente à medida que esta série progredia é que ninguém - seja de que lado for, por mais secundário que o seu papel possa ser - está realmente seguro nesta história. Amigo ou inimigo, inocente ou culpado, tudo pode acontecer a qualquer das personagens. E este livro eleva essa certeza a toda uma nova dimensão. Ninguém está seguro - nunca. Nem mesmo os que já escaparam a muita coisa. E, se juntarmos este facto inegável à vasta teia de laços emocionais que se foi construindo e aos vários momentos emotivos que surgem ao longo da história... bem, o impacto é simplesmente devastador.
Outro aspecto que, desde o início da série, sempre se destacou foi a diversidade de cenários e personagens. Ora, também esta faceta adquire aqui um novo impacto, com os cenários luminosos e pacíficos a contrastar com os momentos mais dramáticos, e com a enorme expressividade das personagens a realçar o impacto desses momentos. Isto é particularmente evidente no final (por razões que serão óbvias, uma vez terminada a leitura), mas está presente ao longo de toda a história. E não deixa de ser particularmente notável que parte desta expressividade venha de personagens cujos rostos são, para todos os efeitos, ecrãs.
Quanto aos acontecimentos propriamente ditos, é difícil dizer muito sem revelar demasiado. Há, ainda assim, dois aspectos que se destacam: a incerteza, pois muitas das personagens ocupam uma constante posição de dúvida, tomando decisões que podem abalar toda a teia de relações que existe entre elas; e a ambiguidade, porque há aliados que parecem tornar-se inimigos e personagens cuja ambiguidade moral torna todos os seus pensamentos e acções numa grande zona cinzenta. É também a conjugação destes dois elementos que torna tão imprevisível o rumo da história, pois as verdadeiras intenções das personagens - salvo algumas mais inocentes - raramente são totalmente claras.
Nono volume - e é aqui que todas as qualidades atingem um novo máximo. Mais intensidade, mais emoção, mais intriga. Mais beleza nos cenários, mais profundidade nas emoções espelhadas nos rostos das personagens, mais de tudo aquilo que torna esta série tão genial.. Mas se, tal como eu, criaram laços emocionais com estas personagens... então preparem os vossos coraçõezinhos. Este vai doer.

Autores: Brian K. Vaughan e Fiona Staples
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Apologia de Sócrates (Platão)

Aos setenta anos, Sócrates foi levado a julgamento, sob a acusação de não crer nos deuses e corromper a juventude ateniense. Seria esta acusação que o levaria à morte. Este livro traça o discurso da sua defesa, a de um sábio que assume o que não sabe e que, serenamente, desmonta ponto a ponto a incoerência das acusações. Pese embora o conhecimento prévio da possibilidade de que isso para nada sirva.
Não é preciso mencionar a importância deste livro. Todos falámos - quanto mais não seja nas aulas de filosofia - em Sócrates e Platão. Mas o que surpreende neste discurso é, acima de tudo, a intemporalidade. Passaram milénios e as questões mantêm hoje a mesma exacta pertinência. O que é a verdadeira sabedoria, o que sabem realmente os que julgam saber tudo, de que forma o questionar corrompe, como podem as calúnias e insinuações causar o descalabro de uma ou várias vidas e levar a julgamentos precipitados... tudo isto está presente neste pequeno, mas tão vasto livro, e não apenas no discurso propriamente dito, mas também na forma como este retrata a delicadeza da situação.
Outro aspecto que pode ser surpreendente, principalmente se o compararmos com alguns textos filosóficos mais herméticos, é a acessibilidade. É um discurso, afinal, e facilmente se imagina a ser proferido em voz alta. É, aliás, quase impossível não imaginar, ao lê-lo, a figura do filósofo a proferir estas tão perspicazes palavras ante os seus juízes. E, além desta imagem mental, destaca-se ainda outro aspecto: a clareza com que as ideias se assimilam face a uma tão grande clareza.
Há ainda um último ponto particularmente marcante, que é a reflexão sobre a natureza da morte. É algo de particularmente impressionante encontrar num discurso que, para os devidos efeitos, será o de alguém que se encontra perante uma sentença de morte, a reflexão sobre a incerteza de se tratar ou não de algo mau. Sendo a morte o grande mistério, é impossível não ficar a pensar nas palavras aqui proferidas pelo grande Sócrates. E não será esse também o objectivo da filosofia? Fazer pensar?
Um grande livro nem sempre precisa de ser longo para ser memorável. É o caso desta obra intemporal: pensamento filosófico sob a forma de um discurso de defesa, de uma clareza e profundidade notáveis. Nem é preciso dizer que vale a pena, neste caso. É um livro que todos deviam ler.

Autor: Platão
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 9 de abril de 2020

O Despertar do Nefilim (David Costa)

Gonçalo teve em tempos uma vida de sucesso, mas tudo isso acabou quando um incidente estúpido lhe levou a namorada. Deixou para trás todos os contactos e amizades e envolveu-se no mundo dos combates clandestinos. Agora, porém, começa a sentir que é altura de retomar um pouco da antiga normalidade... só que a vida não está disposta a permitir-lho. Embora não saiba, Gonçalo descende do maior dos arcanjos e o seu sangue é procurado pelos demónios, que precisam dele para abrir as portas do Inferno e desencadear o Apocalipse. Mas é também quando um novo caos o alcança que Gonçalo descobre que não está sozinho na sua luta desesperada...
Provavelmente a mais notável das várias qualidades deste livro é o ritmo a que toda a história é contada. Desde o início que há momentos marcantes, sejam do ponto de vista emocional, do mistério, da intriga ou até mesmo do horror. Além disso, a forma como a história é contada, em capítulos curtos e num registo directo quanto baste, mas particularmente certeiro nas descrições, transporta-nos para a história desde as primeiras páginas, numa envolvência que cresce cada vez mais à medida que a parte sobrenatural ganha impacto e intensidade.
Há também muito de fascinante no desenvolvimento do aspecto lendário da trama. Anjos e demónios, a iminência do Apocalipse, caçadores e exorcismos e os traços da narrativa bíblica moldados em algo completamente diferente da versão "oficial" - tudo isto serve de base a uma história em que a acção está sempre em primeiro plano, mas em que o contexto cria razões ponderosas para tudo o que as personagens fazem. O resultado é, claro, uma sucessão de surpresas e, sobretudo, de escolhas difíceis para os intervenientes nesta longa batalha.
O que me leva a outro ponto: a construção das personagens. Aqui, sobressaem sobretudo a empatia e a ambiguidade. Empatia porque é muito fácil a proximidade com o protagonista, não só pelo facto de ter sido subitamente lançado num combate que nunca pediu, mas sobretudo pelas sombras e fantasmas que carrega. E isto aplica-se também a outras personagens, e sobretudo a João, que, além de despertar profunda empatia nos seus momentos de maior vulnerabilidade, é também o reflexo perfeito da tal ambiguidade moral. As coisas que as personagens são obrigadas a fazer são, no mínimo, questionáveis - mas no contexto em que ocorrem... bem, ganham uma perspectiva diferente.
A batalha não acaba neste livro. Longe disso. E, assim, o que acontece não é que fiquem muitas perguntas em aberto. Fica tudo em aberto, sobretudo se tivermos em conta as revelações do epílogo. Mas a impressão que fica não é a de algo incompleto: é a de uma fase que chegou ao fim e que abre agora caminho para outras possibilidades. Além disso, a forma como tudo é deixado em suspenso - mas com um rumo indicado - tem ainda o condão de deixar uma curiosidade praticamente irresistível em descobrir o que acontece a seguir.
Intenso, empolgante e cheio de surpresas, trata-se, pois, de um livro que cativa desde as primeiras páginas, intriga, abala e chega até a comover em todos os momentos certos e encerra com a promessa de novas e ainda mais intensas aventuras. Muito bom, em suma.

Autor: David Costa
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 8 de abril de 2020

O Advogado da Máfia (Nelson DeMille)

John Sutter é um advogado de relativo sucesso e vive tranquilamente com a esposa na famosa Costa do Ouro, em tempos a zona mais rica e influente de Long Island. E é precisamente porque tudo corre bem que John se sente tão entediado. Mas isso está prestes a mudar. Com a entrada em cena do seu novo vizinho do lado - o célebre mafioso Frank Bellarosa - John vê-se subitamente intrigado por um mundo a que nunca pertenceu. E o que começa por ser um contacto casual torna-se um convívio relutante e depois um mergulho sem regresso na vida de intrigas e influências da Máfia. John Sutter deixará de se sentir aborrecido. Mas a que preço?
Algo que importa começar por dizer sobre este livro é que, além das suas mais de seiscentas páginas de dimensão, começa por ter um ritmo bastante pausado. Não é, por isso, propriamente uma leitura compulsiva, não só pela extensão, mas sobretudo pela teia de complexidades que se vão revelando aos poucos. Na sua bolha de privilégio e aparências, os Sutter não são propriamente o tipo de pessoas que despertam uma empatia imediata, até devido a algumas posições mais duvidosas (ainda que perfeitamente enquadradas no período em que a acção decorre). E quanto a Bellarosa - bem, é o que é. Mas é precisamente a forma como estas impressões evoluem e se alteram ao longo da leitura, à medida que novas relações e jogos de poder vão sendo revelados, que torna a história tão cativante. São tantas as mudanças, as intrigas pessoais, familiares e... profissionais, digamos... que a simpatia de um momento é a aversão do seguinte. Até porque tudo tem segundos sentidos e segundas intenções.
Outro aspecto notável é a ambiguidade. A necessária ambiguidade moral das personagens (afinal, é de um mafioso que se trata), mas também a ambiguidade da forma como se vêem a si mesmas. John é alguém nitidamente em crise consigo mesmo e as repercussões das suas escolhas - com todo o dramatismo da fase final - contrastam com um estranho e às vezes desconfortável sentido de humor. E quanto à moralidade, é também particularmente interessante a forma como, pela peculiar perspectiva de Frank Bellarosa, o autor explora os estranhos códigos de honra que coexistem no mundo do crime.
Não surpreende, pois, que, no meio de toda esta intriga, haja também algum material para reflexão. Dos preconceitos das personagens à destruição gradual da bolha de privilégio, passando pelo deteriorar de uma longa relação devido ao tédio, há na história destas personagens específicas um contexto que é muito mais amplo. A convivência dos Sutter com os vizinhos, os meandros dos vários tipos de poder e a duplicidade das relações, tanto pessoais como profissionais, estão bem presentes nesta história que não é, de certa forma, apenas a de John Sutter, mas também a de um período da Costa do Ouro.
Levará o seu tempo a ler, mas vale muito a pena. Pois, com as suas personagens ambíguas, a sua mistura de nostalgia e conspiração e o seu ambíguo traçado da passagem do tempo nas vidas e nos lugares, proporciona uma história tão complexa quanto cativante e surpreendente. John Sutter pode não ser o mais afável dos homens... mas é, sem duvida, um protagonista memorável.

Autor: Nelson DeMille
Origem: Recebido para crítica

Para mais informações sobre o livro O Advogado da Máfia, clique aqui.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Kitty e a Aventura no Jardim Celeste (Paula Harrison e Jenny Løvlie)

Decidida a apresentar um bom projecto para o jardim da escola, a Kitty está farta de procurar boas ideias. Mas a melhor de todas vem de onde menos espera. A Pixie, uma das suas amigas entre os gatos, falou-lhe da existência de um belo jardim num telhado, mas que não recebe visitantes porque o gato que o guarda é muito hostil. Ainda assim, decidem arriscar uma visita furtiva e o que descobrem é realmente deslumbrante. Mas, desvendado o segredo, também os outros gatos querem lá ir brincar. E são bem menos cuidadosos do que os amigos da Kitty...
Um dos aspectos mais cativantes desta série de livros vem necessariamente das ilustrações. Com os cenários nocturnos e os tons de laranja  a lembrarem as cores de um gato, ao mesmo tempo que conferem à história uma aura de mistério e de aventura, trata-se de um conjunto de livros em que basta o primeiro contacto visual para despertar a curiosidade. São livros bonitos, basicamente, em que as ilustrações complementam e dão vida à história. E, claro, há a abundante fofura dos vários felinos envolvidos nesta história, o que lhe confere também um muito agradável matiz de ternura.
Mais uma vez, também a história é muito cativante, ainda que bastante simples. É uma aventura pelos telhados - ou não tivesse a Kitty super-poderes felinos - que leva as personagens a descobrir novos cenários, a fazer novos amigos e a resolver algumas situações delicadas. Peripécias não faltam, portanto, e embora tudo nos seja contado de forma bastante concisa - importa lembrar que este é um livro pensado para os mais novos - é interessante notar que a leitura nunca deixa de ser empolgante, mesmo a um olhar adulto.
E há ainda a habitual mensagem escondida nos comportamentos e decisões das personagens. Fala do valor da amizade, como sempre, mas também da importância de respeitar os lugares e o trabalho dos outros, bem como da entreajuda, da possibilidade de dar nova vida a coisas aparentemente descartadas e até, ainda que de forma relativamente discreta, da importância de nos abrirmos aos outros. Não faltam boas ideias e bons valores - e isso é também muito importante num livro destes.
Bela, ternurenta, simples e muito cativante: assim é esta nova aventura da Kitty. Uma história que se lê num instante, mas que revela novas surpresas ao virar de cada página. E vale, pois, muito a pena dá-la a ler aos mais novos. E descobri-la também.

Autoras: Paula Harrison e Jenny Løvlie
Origem: Recebido para crítica

domingo, 5 de abril de 2020

Ontem à Noite (Catherine O'Connell)

São seis amigas e, cada uma à sua maneira, parecem ter as suas vidas mais ou menos controladas. Mas a despedida de solteira de uma delas vai deitar tudo a perder. Maggie Trueheart, a noiva, acorda na manhã seguinte deitada ao lado de um homem que não é o seu noivo. Angie, uma das suas amigas, é encontrada morta no bosque no dia seguinte. E, tendo todas elas um ou outro segredo que pretendem esconder, só uma coisa têm em comum: não podem contar tudo aos polícias que estão a investigar o homicídio. Só que a verdade vem sempre ao de cima, não é? E os pequenos grandes segredos podem muito bem mudar as suas vidas para sempre...
Um dos primeiros aspectos a sobressair neste livro é que tem um ritmo bastante invulgar para o género. Ao acompanhar múltiplas personagens, intercalando o mistério central com as relações e dilemas pessoais de cada uma delas, a autora confere à narrativa um ritmo que começa por ser bastante pausado. Há, ainda assim, um contrapartida para este arranque um pouco mais lento. É que, quando as coisas começam a ganhar intensidade - e começam, realmente - as personagens são já muito familiares, o que gera um envolvimento e um interesse muito maior no que lhes poderá acontecer. Mesmo àquelas que, à partida, não despertam grande empatia.
Esta diversidade de perspectivas faz sentido também num outro aspecto. É que, embora haja um caso central para resolver, existem também os muitos segredos que as personagens guardam. E há, na forma como tudo termina, um impacto tão grande para a revelação do responsável pela morte de Angie como para que o acontece depois às vidas das restantes personagens. Tê-las acompanhado do início tem, pois, uma outra importância, pois faz com que também essas conclusões secundárias acabem por ter mais impacto.
Quanto ao mistério propriamente dito, destacam-se duas coisas. Primeiro, o facto de não ser nada fácil identificar os verdadeiros responsáveis, não só porque todas as personagens guardam segredos suspeitos, mas também pelo papel que os culpados têm ao longo da história. E segundo, o facto de, tal como os suspeitos e envolvidos, também os detectives responsáveis pela investigação terem as suas imperfeições. Nem sempre é fácil gostar deles, principalmente de Ron, mas o emergir das suas vulnerabilidades humaniza-os. Além, claro, de fazer com que se enquadrem melhor nesta história onde não existem soluções limpas e perfeitas.
Não é propriamente uma leitura compulsiva, mas, com a sua teia de segredos e o seu crescendo de intensidade, vai-se entranhando na memória e prendendo cada vez mais. Deixando, no fim, a muito agradável impressão de ter mergulhado num mistério onde as surpresas são muito mais - e melhores - do que a mera revelação de quem fez o quê.

Título: Ontem à Noite
Autora: Catherine O'Connell
Origem: Recebido para crítica

sábado, 4 de abril de 2020

Em Breve (Morris Gleitzman)

Agora que a guerra acabou, Felix tem esperança de que o mundo comece a tornar-se um local mais seguro, mas não é isso que está a acontecer. Entre a escassez e a destruição, há quem esteja disposto a tudo para sobreviver mais um dia, e por isso Felix e Gabriek têm de ter muito cuidado de cada vez que saem do seu esconderijo. Mas é numa dessas saídas que o caminho de Felix se cruza com o de Anya, uma rapariga intrépida e implacável com quem acaba por criar uma estranha amizade. E é também numa dessas perigosas saídas que Felix se vê com uma nova vida nas mãos - e muitos sarilhos pela frente.
Ainda que possam ser lidos de forma independente, há algo de particularmente notável a sobressair destas histórias e que é mais evidente se forem lidas por ordem cronológica. Falo do crescimento de Felix, e do contraste com a sua sempre tocante inocência. Felix perdeu muitas das pessoas que amava, viu caos, morte e guerra para durar várias vidas e, ainda assim, continua a querer ser a melhor pessoa possível, fazer sempre o que está certo e ajudar as pessoas quando em dificuldades. Ora, escusado será dizer que, no seu mundo, isso significa problemas e é algo de impressionante a coragem e o afecto com que este jovem protagonista encara cada situação.
Outro aspecto particularmente notável nestes livros, e neste em particular, é que, embora seja um livro juvenil, não foge de todo aos temas difíceis. Tendo em conta o momento em que decorre, é difícil fugir à guerra e à morte, e o autor não tenta evitar estas questões. A sombra da perda é uma presença constante, que, além de tornar todo o percurso mais realista, está na origem de alguns dos momentos mais avassaladores do enredo. E também aqui a inocência de Felix entra em jogo, pois, sendo ele o narrador, o impacto emocional ganha uma clareza mais intensa, deixando para trás uma marca mais poderosa e a certeza de que o sofrimento deixa marcas - sobretudo nos inocentes.
E importa ainda voltar a Felix e à forma como ele conta a história. É dada ao protagonista a voz da inocência dos seus treze anos, mas também uma mente perspicaz e rápida. E, assim, a história é-nos contada de forma simples e directa, ainda que com espaço para grandes laivos de emoção e algumas frases simplesmente brilhantes, mas também com um notável contraste entre as necessidades da luta pela sobrevivência e a inocência e bondade interiores que Felix se esforça por manter.
Inocente na perspectiva, mas implacável na visão dos horrores da guerra, trata-se, pois, de um livro que, apesar de juvenil, é bem capaz de deixar a sua marca em leitores de qualquer idade. Cativante, comovente, cheio de surpresas e de emoção, um livro que supera em tudo as expectativas geradas pelos volumes anteriores. Memorável, em suma.

Título: Em Breve
Autor: Morris Gleitzman
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Viajar com os Reis de Portugal (Miguel Ribeiro Pedras)

Viajar pelo estrangeiro nem sempre contou com a simplicidade trazida pelos actuais benefícios da tecnologia e da globalização. E a situação tornava-se ainda mais delicada quando se tratava de uma viagem oficial de um - ou vários - membros da família real. Não foi, ainda assim, impedimento para que, ao longo do tempo, essas viagens se realizassem, fossem elas de lazer ou de estado, com fins diplomáticos ou de pacificação.
Basta a premissa para despertar a curiosidade para este interessante livro, pois, sendo certo que a existência de algumas das viagens aqui contidas será do conhecimento geral, já os percursos, pormenores práticos, visitas e relações estabelecidas talvez não sejam assim tão conhecidas. Acrescente-se a isto o facto de haver para cada uma destas viagens um vasto desenrolar de preparativos, informações de contexto e até rasgos de oposição e é possível ficar com uma imagem muito clara do contexto em que se realizaram.
Importa também salientar que, embora seja um livro sobre viagens, as figuras que as protagonizaram adquirem um papel mais importante do que os destinos propriamente ditos, sendo mais a informação sobre reis e outras figuras de estado do que propriamente sobre os locais. Ainda assim, e tendo em conta as necessárias limitações impostas pela informação contida nos documentos da época, é possível ficar com uma boa ideia da impressão que esses locais deixaram na mente dos seus reais visitantes - particularmente nas viagens mais longas.
Passando do conteúdo à forma, importa realçar a fluidez da linguagem, que faz com que a leitura nunca se torne aborrecida, apesar da abundância de nomes de figuras e locais, e as fotografias que acompanham o texto, permitindo ficar com uma imagem mais clara não só das reais pessoas, mas também da forma como essas viagens foram noticiadas à época. Junte-se a isto a relativa concisão, focada nos pontos essenciais - motivos, locais e intervenientes - de cada viagem, e o resultado é um texto completo quanto baste e de leitura muito acessível.
Repleto de informação interessante, e de leitura cativante e agradável, trata-se, pois, de um bom livro para conhecer a faceta viajante - ainda que nem sempre por motivos de mero lazer - dos reis e infantes da história de Portugal. E os locais, claro, por onde passaram.

Autor: Miguel Ribeiro Pedras
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Moonshine, Vol. 2: Comboio do Tormento (Brian Azzarello e Eduardo Risso)

Após a sua fuga apressada num comboio de mercadorias, Lou Pirlo pensa que, pela primeira vez em muito tempo, está livre de sarilhos. Mas não é bem assim. Para começar, passa-se algo de estranho com o seu corpo. E, além disso, ao chegar ao suposto porto seguro de Nova Orleães, vê-se envolvido num novo tipo de problemas. Entretanto, também o mundo que deixou para trás está longe de estar pacificado. Os mafiosos não desistiram do seu objectivo e há uma grande vingança em curso. E, como se não bastasse, há um caçador de lobisomens à espreita, cujas motivações ninguém pode controlar.
Um dos desenvolvimentos mais interessantes deste segundo volume é a forma como a partida de uma só personagem dá lugar a uma tão grande dispersão de acontecimentos. A história é muito mais dividida: entre Lou e os novos sarilhos que encontrou, Tempest e os planos da sua família e o plano dos mafiosos para conseguirem finalmente o que queriam. E, sendo certo que esta maior dispersão implica também uma maior brevidade no desenvolvimento de certas relações (principalmente no que toca aos novos companheiros de Lou), surge também uma maior diversidade de contextos. E é interessante ver a forma como isto se reflecte não só nas histórias específicas, mas nos cenários propriamente ditos, com as diferenças de cor a salientar perfeitamente o contraste entre noites escuras e um sol abrasador.
Há também um aspecto particularmente intrigante no que respeita à arte: a forma como a imagem de Lou se altera consoante as circunstâncias. O Lou Pirlo das primeiras páginas é ainda semelhante ao jovem mafioso do volume anterior, mas essa imagem vai-se alterando com o desenrolar dos acontecimentos. E isto é algo de particularmente notável não só porque as situações por que passa são do tipo capaz de deixar marcas, mas também porque há algo a acontecer no seu interior.
E esse algo leva-me ao outro ponto forte: a história propriamente dita. Dividida entre o conflito com os mafiosos e a progressão individual de Lou, tem, desde o início, um ritmo acelerado, em que há sempre algo de relevante a acontecer. E, ainda assim, há lampejos do passado e um ecoar de memórias que acrescentam ao percurso um particularmente marcante rasgo de introspecção. Vista em contraste com o crescendo de intensidade dos acontecimentos centrais, esta espécie de exame de consciência acrescenta como que um instante de quietude, o que gera um contraste particularmente eficaz.
Com o seu contraste de luz e sombra, de um submundo natural e sobrenatural e de uma teia de relações tão efémeras quanto complicadas, prende desde os primeiros instantes e nunca deixa de surpreender até ao muito intenso final. Tudo somado, a impressão que fica é, pois, a de um segundo volume um pouco menos pessoal, mas igualmente intenso e cativante. E cheio de surpresas.

Autores: Brian Azzarello e Eduardo Risso
Origem: Recebido para crítica