segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Deuses Americanos - M. Ainsel (Neil Gaiman, P. Craig Russell e Scott Hampton)

Está iminente a guerra entre novos e velhos deuses, e é preciso acelerar os preparativos. Mas há quem procure Shadow com outros fins. Por isso, entre as suas viagens de um lado para o outro para contar os seus aliados, Wednesday manda-o para uma casa em Lakeside, onde, se se mantiver discreto, deverá estar em segurança. Mas são poderosas as forças em movimento. Os novos deuses têm mais poder do que seria de imaginar e há um enigma em Lakeside que deixa Shadow intrigado. As alianças, essas, são frágeis - e nem a palavra de um deus é inviolável.
Um dos aspectos mais cativantes deste segundo volume é a facilidade com que se regressa aos ritmos da história. Isto é particularmente notável tendo em conta a sua complexidade, bem como a relativa dispersão vinda dos interlúdios e dos recuos ao passado. A verdade é que há várias ramificações neste livro e o que as une nem sempre é absolutamente claro, mas a sensação que fica é a de que tudo pertence. Tudo faz sentido, embora nem todos os porquês sejam ainda evidentes. Afinal, a história não acaba aqui. E este percurso de respostas que abrem caminho a novas perguntas tem o condão de gerar uma curiosidade irresistível em saber o que acontece a seguir. Principalmente para quem, como eu, ainda não leu o romance que serve de base a esta adaptação.
Há também uma poderosa empatia no que diz respeito ao protagonista. Shadow é alguém que cometeu vários erros no passado (e continua a cometer alguns), mas que se viu apanhado no meio de algo muito maior do que a sua mera humanidade. Isso torna-o meio perdido e melancólico, além de especialmente vulnerável. E é essa mesma vulnerabilidade que torna o seu percurso tão fascinante: é um homem sozinho no meio de uma guerra de deuses, tão perdido como qualquer outro ser humano.
Não faltam ao longo deste livro frases memoráveis, tanto nos diálogos como na narração. As origens estão, ao fim e ao cabo, num romance. Mas é também algo de impressionante ver a forma como a arte amplifica o impacto destas frases, seja nas expressões de Shadow, na forma como projecta em cor e estranheza as facetas mais oníricas da história ou até no simples contraste entre o que se passa no mundo "normal" e para lá dele.
Finda a leitura, ficam duas impressões notáveis: a sensação de se ter percorrido - e em boa companhia - um fascinante percurso, e uma vontade quase irresistível de descobrir, o mais cedo possível, que destinos se seguem para o solitário Shadow. Belíssimo, intrigante e com uma harmonia incrivelmente certeira entre texto e imagem, individual e global, um livro a recordar.

Autores: Neil Gaiman, P. Craig Russell e Scott Hampton
Origem: Recebido para crítica

domingo, 29 de setembro de 2019

O Dia do Assassínio (Annie Ward)

Apesar de tudo aquilo por que passaram, Ian e Maddie parecem ter um bom casamento, consolidado pela existência de Charlie, o filho amado de ambos. Mas há segredos nas sombras. Maddie sofreu um acidente que lhe deixou o rosto desfigurado - e há quem suspeite que não foi um acidente. E, quando Maddie começa a frequentar sessões de terapia, há rasgos do passado sombrio de Ian que começam a vir à superfície. A relação aparentemente sólida esconde fendas profundas. E uma chamada desesperada para o 112 cedo indica que algo irá acabar mal...
Provavelmente a grande força deste livro é a capacidade de surpreender e até manipular o leitor. Contada maioritariamente do ponto de vista de Maddie, mas com alguns capítulos dedicados à visão de Ian e outros dedicados ao dia do assassínio, há desde cedo uma certa ambiguidade na forma como a relação dos protagonistas é traçado. Maddie é uma mulher que sofre de ansiedade, e cedo se torna claro que há problemas na relação a influenciar o seu percurso. Mas o que realmente se passa? Bem, isso é uma sucessão de surpresas que culminam num final tão inesperado quanto emocionalmente devastador.
Há questões profundas a surgir ao longo do enredo, que vão desde a possibilidade de uma relação violenta ao impacto do stress pós-traumático, passando pelas muitas dificuldades vividas por Ian, Maddie e Joanna nas diferentes partes do mundo por onde passaram. Talvez por isso faça tanto sentido a relativa ambiguidade moral que parece insinuar-se ao longo de toda a narrativa. Maddie, mulher apaixonada, mãe dedicada e potencial vítima, parece lidar de forma algo bizarra com as explosões emocionais que a rodeiam. Ian, instável, danificado, aparentemente pouco sociável e paranóico, esconde nas suas explosões uma profunda tristeza. E, mais do que uma personagem que desperte imediata empatia - diga-se que nenhuma delas o faz -, o que realmente surpreende é a mudança de perspectiva ao longo da leitura: ninguém é exactamente aquilo que parece e a linha que separa vítima de vilão não é assim tão clara.
Também por isso faz sentido a forma como tudo termina, não em termos da grande e intensa revelação sobre o crime, mas relativamente ao que vem depois. É um final relativamente aberto, deixando antever possibilidades e descobertas que nunca se concretizam totalmente. E, sim, fica uma certa curiosidade insatisfeita quanto a essas últimas possibilidades, mas, numa história onde tudo é ambíguo e inesperado, é apenas natural que esses últimos elementos sejam deixados à imaginação do leitor.
Intrincado e inesperadamente ambíguo, mas intenso na intriga e nas grandes revelações, trata-se, pois, de um livro que prende desde as primeiras páginas e não deixa de surpreender até ao grande final. Cheio de surpresas, um livro que facilmente cativa - e que só se torna mais marcante por ser tudo menos linear.

Autora: Annie Ward
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Os Imortalistas (Chloe Benjamin)

Quando os rumores da existência de uma mulher capaz de prever com exactidão a data da morte dos que a visitam chegam aos ouvidos dos quatro irmãos Gold, estes estão longe de imaginar de que forma essa visita irá moldar todo o seu percurso. São apenas miúdos intrigados pelo sobrenatural, mas partem da casa da vidente com uma presença que nunca mais lhes sairá do pensamento. Embora unidos, Klara, Simon, Varya e Daniel são muito diferentes, e a sombra ominosa das suas respectivas datas fará com que os seus caminhos divirjam - e a sua sólida união se desfaça.
Basta a premissa deste livro para tornar este livro marcante: o que faríamos nós se soubéssemos o dia em que vamos morrer? É uma pergunta complexa e um intrigante ponto de partida para a história destes quatro irmãos. Mas o que começa por um contacto com o sobrenatural não tarda a transformar-se em algo mais profundo e enraizado na vida, pois a data pode ou não estar certa, a vidente pode ou não ser genuína, mas cada um dos irmãos tem uma vida para viver à sombra deste conhecimento. E fazem-no de maneiras tão distintas como impressionantes.
É também um livro que surpreende pelo contraste entre serenidade e sentimentos fortes. Os grandes momentos dramáticos são apenas ocasionais, resultado, em grande parte, das escolhas de vida pública que alguns dos irmãos fizeram. Os verdadeiramente emocionantes, porém, vêm com uma calma melancolia que contrasta com esses picos de intensidade. A escolha de vida contrasta com o momento da morte, o percurso com o destino. E esta vaga melancolia em tom de tragédia anunciada faz com que cada personagem deixe também uma marca profunda na memória de quem lê as suas histórias.
Há como que uma estranha resignação a transparecer desta história, não só do percurso das personagens, mas também da própria escrita. Estranha, porque não significa desistência, mas antes a aceitação mais ou menos dolorosa de um facto inevitável: ninguém vive para sempre. E, cada um à sua maneira, Klara, Simon, Varya e Daniel encontram formas de deixar a sua marca no mundo - pelo menos no mundo dos que lhes são mais próximos. No fundo, é isto mesmo que mais marca: a forma como estas quatro personagens tão fascinantes quanto imperfeitas se encaminham para um destino anunciado sem nunca deixar de fazer as suas próprias escolhas ao longo do caminho.
Vagamente melancólico, mas muito, muito marcante, eis, pois, um livro que é, simultaneamente, romance e reflexão, descoberta e resignação, vida e morte na história das suas personagens. Maravilhosamente escrito e com um quase palpável equilíbrio entre melancolia e desafio, um livro que se entranha aos poucos na memória do leitor... para depois se lhe enraizar no fundo do coração.

Título: Os Imortalistas
Autora: Chloe Benjamin
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Porque Não Dormem os Gatos? (Fernanda Freitas e Sérgio Condeço)

Algo se passa esta noite: não há maneira de os gatos adormecerem! Porquê? Será da luz? Da conversa?Dos ruídos e distracções? Dormiram demasiado durante o dia? Ou será que lhes falta alguma coisa? Os gatos têm resposta para tudo. Até para o porquê de ainda não conseguirem dormir. Porque não dormem, então? Na verdade, é muito simples...
Quando se lê um livro para crianças, esperam-se, à partida, certas coisas: simplicidade, cor, uma história cativante e, talvez, uma certa dose de ternura. Mas o melhor de tudo é quando uma história consegue ser simultaneamente interessante e educativa. É o caso deste livro que, através de uma agradável conversa com um grupo de gatos sem sono, consegue transmitir na perfeição um conjunto de conselhos e regras respeitantes à necessidade de dormir bem. E sim, isto é particularmente importante no caso das crianças, e é a elas que estes conselhos se dirigem, mas alguns deles podem também ser bem úteis a adultos com insónias.
Outro aspecto que sobressai ao ler esta pequena história é que a forma como é contada a torna perfeita para ler antes de dormir. Porquê? Porque a conversa entre o narrador e os gatos facilmente se imagina lida em voz alta, imitando vozes, até, e o registo leve, divertido e com uma certa cadência rítmica confere as palavras um certo embalo.
E depois há a cor de um conjunto de ilustrações que quase parecem retiradas de um sonho. Os gatos deste livro não são gatos normais: são gatos cheios de cor, ligeiramente estranhos e muito intrigantes, como aqueles que poderíamos ver num sonho qualquer. E que melhor forma de adormecer do que partindo já de uma espécie de sonho? Também as imagens contribuem para esta interessante história sobre o sono, que, embora naturalmente simples, parece perfeita para adormecer.
Colorido, didáctico e, acima de tudo, muito cativante: é esta a imagem que fica deste pequeno livro, perfeito para ler aos mais pequenos à hora de dormir... ou para ler simplesmente porque vale a pena.

Autores: Fernanda Freitas e Sérgio Condeço
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

No rasto dos duendes eléctricos (Adolfo Luxúria Canibal)

Choque, sombra, intensidade e interrogação. Morte, caos, deambulação e espaço. E, no meio de tudo isto, o mundo consumista - e que consome - e até as estranhas presenças de possíveis entidades de um outro mundo. De tudo isto é feito este livro, tão difícil de caracterizar pela abrangência de quarenta anos de poesia como pela estranha e fascinante ambiguidade que parece emergir das palavras. Mas tentemos.
Provavelmente o que de mais memorável fica desta leitura é o facto de não haver limites nem barreiras no mundo destes poemas. Há, aliás, um evidente factor choque, que, não tendo apenas o choque por objectivo, acaba por conseguir gravar a fogo a memória das imagens - e de uma estranha visão do mundo tão invulgar quanto certeira.
Claro que, sendo mais de quatrocentas páginas de poesia, outro factor será a variação de temas e de registos. É bom, aliás, que assim seja, caso contrário seria necessariamente uma leitura repetitiva. Mas o mais interessante neste aspecto é que parece haver uma progressão por fases, em que cada conjunto representa uma faceta diferente de um mundo tão vasto quanto intangível. É natural que haja poemas mais memoráveis do que outros, mas a verdade é que todos parecem pertencer, dos mais aparentemente simples poemas de amor a um estranhamente fascinante apocalipse extraterrestre.
Há ainda espaço para uma longa e interessante conversa final entre o autor e Valter Hugo Mãe, responsável por esta colecção. E interessante, em primeiro lugar, porque é realmente uma conversa, não uma entrevista, além de uma fuga constante às banalidades. Fala-se da morte, do absoluto, da inocência - de tudo menos das bases quotidianas. E essa conversa acaba por ser também, em si mesma, poesia, como que encerrando em beleza este extenso e enigmático volume.
Não é uma leitura fácil, mas é também essa complexidade que torna este livro tão intrigante. Isso e a estranha e sombria harmonia que parece emergir das palavras, por entre aquilo que choca e o que faz pensar. Surpreendentemente intenso e enigmático, um livro que vale a pena explorar.

Autor: Adolfo Luxúria Canibal
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 24 de setembro de 2019

A Tempestade Mágica (Dana Simpson)

Aproxima-se uma tempestade, mas vem acompanhada de algo mais estranho. Além do frio, do gelo e dos apagões, a magia parece ter desaparecido, o que, para a Bia e para o seu unicórnio, é algo inconveniente, pois, sempre que passam por alguém, essa pessoa fica pasmada. Decidem, então, investigar o que se passa, com a - algo relutante - ajuda da Dakota. E a explicação está numa antiga lenda dos duendes... que não é bem o que parece.
O aspecto que mais sobressai desta nova aventura da Bia e do seu unicórnio é que, ao contrário dos anteriores, em que há múltiplos episódios ligados apenas pela protagonista, neste caso temos uma única história sequencial. Há uma tempestade, com um mistério associado, e o percurso centra-se nos passos dados pela Bia e pelos seus amigos no sentido de o explicar e resolver. O resultado é uma história mais vasta, mais coesa, mas com todas as mesmas qualidades dos volumes anteriores.
A mais marcante destas qualidades é provavelmente a leveza, a sensação de que a leitura flui quase sem se dar por isso. Para isso contribui, naturalmente, a representação simples, mas muito cativante, das personagens e também o deliciosamente peculiar sentido de humor da Pureza. Mas há mais: embora a simplicidade habitual continue bem presente, há também uma impressão de continuidade, que vem não só do facto de se tratar de um percurso sequencial, mas também da familiaridade das personagens. Há sempre algo de novo, mas as figuras centrais são já bem conhecidas. O resultado é a sensação de regressar a um lugar agradável para viver novas aventuras.
Por último, importa salientar a vertente pedagógica, já que esta aventura rumo ao mistério da electricidade desaparecida abre espaço à descoberta de várias informações interessantes. Talvez na vida real não haja uma Voltina, mas é possível ficar a saber como funcionam as coisas e as últimas páginas acrescentam um conjunto de explicações simples e úteis para compreender o funcionamento dos sistemas eléctricos.
Cativante, divertida e muito agradável de se ler, trata-se, pois, de mais uma engraçada e envolvente aventura da Bia e do seu carismático unicórnio. Uma história simples, mas muito interessante, para cativar os mais novos... e não só.

Autora: Dana Simpson
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

O Sinal da Cruz (Glenn Cooper)

Algo de milagroso parece ter acontecido quando um jovem padre em Abruzos surge subitamente com os estigmas de Cristo. Este acontecimento desperta todo o tipo de atenções, desde os fiéis aos meios de comunicação, passando inevitavelmente pelo Vaticano. E também de grupos com intenções mais obscuras. Quando o professor Cal Donovan é chamado a conduzir um inquérito no sentido de descobrir se o padre Gio é ou não uma fraude, está longe de imaginar a aventura que o aguarda. É que os estigmas do jovem padre podem estar associados a uma poderosa relíquia, e há uma organização neonazi com grandes planos para esse misterioso objecto.
Misturando elementos históricos e intervenções sobrenaturais, este é um livro que cativa, em primeiro lugar, pelo ritmo de intriga constante. São múltiplas as forças em movimento e, sendo certo que algumas delas não são totalmente imprevisíveis, como por exemplo a postura do Vaticano, a forma como o enredo se desenvolve proporciona algumas reviravoltas bastante eficazes. Além disso, se é fácil prever alguns dos desenvolvimentos, é, ainda assim, difícil resistir ao crescendo de intensidade. E quanto ao final... bem, esse está bem longe de ser previsível.
Também o desenvolvimento das personagens é bastante interessante, já que inicialmente parecem corresponder a uma fórmula estrita, para depois irem revelando facetas inesperadas com o desenrolar dos acontecimentos. São, além disso, suficientemente imperfeitas para fugirem à fórmula estereotipada: Cal é mais do que o professor descontraído com amigos em lugares de destaque; Giovanni tem, apesar das circunstâncias, uma vulnerabilidade que o torna mais genuíno; e quanto aos vilões, há também espaço para uns quantos laivos de humanidade, pese embora a sua filiação.
Ainda um último aspecto a destacar é que, embora se trate do primeiro volume de uma série, a linha central do enredo forma uma história completa, tanto no que diz respeito às relíquias e ao padre Gio, mas também a certos laços pessoais que vão surgindo entre as personagens. O final garante que assim seja e o resultado é um livro sem pontas soltas, mas que promete novas aventuras para o professor Cal Donovan.
Cativante e cheio de surpresas, eis, pois, um livro que mistura as medidas certas de história e misticismo para proporcionar uma leitura empolgante. Intensa e surpreendente, uma boa leitura, em suma.

Título: O Sinal da Cruz
Autor: Glenn Cooper
Origem: Recebido para crítica

domingo, 22 de setembro de 2019

O Despertar de Cthulhu (H. P. Lovecraft e François Baranger)

Após a misteriosa morte do seu tio-avô, um eminente professor, Francis Thurston dá por si na posse de uma vastidão de documentos contendo o conhecimento do seu antepassado. Destes, os mais sinistros dizem respeito a um misterioso culto, dedicado à adoração de uma terrível criatura. O grande Cthulhu, adormecido há séculos na sua tenebrosa cidade, aguarda as circunstâncias adequadas a que os seus fiéis o possam despertar. Então, caíra sobre o mundo espalhando horror e loucura. E, a julgar pelos documentos do falecido professor Angell, os fiéis estão bem vivos e dedicados à causa...
Sendo a narrativa do despertar de um monstro que se tornou já lendário e intemporal, talvez seja importante começar por falar do conto propriamente dito, embora seja o seu enquadramento em tudo o resto o que torna este livro tão deslumbrante. E o conto é notável em si mesmo, com o seu registo quase documental, de alguém que seguiu pistas e estudos passados para se deparar com uma descoberta tão fulgurante quanto aterradora. Não é Francis o verdadeiro protagonista, embora seja o narrador. O protagonista é Cthulhu, e a influência exercida sobre os protagonistas dos vários casos que dão forma a este conto. E este registo de alguém que colige informação, guardando-a para uma memória futura que, na verdade, não deseja alcançar, cria, ao mesmo tempo, a distância de uma suposta imparcialidade e um horror maior, pois escapa entre esta intenção de distância.
É, pois, em si uma história memorável. Mas este livro eleva-a a algo mais. As ilustrações são brilhantes, reflectindo na perfeição a aura de mistério do conto e a sensação de um horror palpável, mas misterioso e difícil de identificar que se sente ao longo de quase todo o enredo. Os tons escuros, com rasgos de fogo, fazem sobressair o mistério, bem como o negrume associado ao deus que serve de cerne a toda esta história. É que, enquanto divindade, Cthulhu não é propriamente o tipo de deus que promete algo de bom aos seus adoradores. É morte e loucura devoradoras - abertas a todos por igual.
E há ainda o formato propriamente dito: trata-se de um livro grande, o que faz com que seja possível contemplar as ilustrações com todo o pormenor. Além disso, o enquadramento do texto cria também um equilíbrio eficaz, pois surge como que cercado pelas imagens. É impossível ler e não ver, o que torna a leitura muito mais viva.
Belíssimo nas ilustrações, notável no novo equilíbrio que estas conferem ao texto e impressionante na intensidade que confere ao horror presente na história, trata-se, pois, de um livro deslumbrante em todos os aspectos. Uma esplêndida obra para começar a conhecer os contos de Lovecraft - e um livro imperdível para os que já são fãs.

Autores: H. P. Lovecraft e François Baranger
Origem: Recebido para crítica

sábado, 21 de setembro de 2019

O Número 73304-23-4153-6-96-8 (Thomas Ott)

Ao encontrar um papel no chão após a execução de um prisioneiro condenado à morte, o guarda prisional responsável pelo acto sente-se suficientemente intrigado para o levar consigo para casa. Afinal, é apenas um papel com um número escrito. Mas eis que, subitamente, o número começa a aparecer-lhe, em toda a parte, nas mais improváveis sequências e com as mais imprevisíveis consequências. Aparentemente guiado pela sorte, o homem vê-se impelido em direcção a um destino que parece almejar: o mesmo que lhe pôs o papel nas mãos e o leva agora a cruzar-se com uma mulher bonita e a possibilidade de fazer fortuna. Mas a fortuna é uma dama caprichosa... e quanto maior a ascensão, maior a queda.
São muitos os aspectos a impressionar neste livro, mas o primeiro e o mais notável de todos eles é a sua capacidade de dizer tanto sem uma única linha de diálogo. Não há palavras pronunciadas - ou, pelo menos, palavras que cheguem ao leitor - e, ainda assim, a história é ampla, completa e emocionalmente marcante. É fácil sentir com o protagonista, da curiosidade inicial ao entusiasmo ante a promessa de uma felicidade possível e depois ao caos da fúria e da vingança. 
Tudo isto é ainda mais notável tendo em conta que se trata de um livro a preto e branco, o que torna o impacto global ainda mais impressionante. Com um estilo muito próprio e de expressividade vincada, o autor dá voz aos pensamentos, emoções e perplexidades do protagonista através de uma muito eloquente expressão facial. Expressão esta que ganha ainda mais força devido ao contraste do mundo de sombras que o rodeia. Entre ruas escuras, lugares de sonho que se transformam em ruínas de pesadelo e um percurso de eterno retorno ao ponto onde tudo começou, tudo converge para a imagem de um círculo vicioso: o inevitável destino que é a verdadeira tragédia desta história.
E há ainda um último contraste: entre a profunda queda que é o cerne deste livro e os pequenos momentos quase enternecedores que fazem com que os momentos mais negros resultem num choque ainda maior. Lucky pode ser um arauto de tragédia futura, mas não deixa de arrancar um sorriso. E é impossível não sentir o contraste entre os laivos de esperança e os de desespero que, em diferentes momentos, surgem no rosto do protagonista.
Surpreendente em todos os aspectos, mas, acima de tudo, na expressividade, trata-se, pois, de um  perfeito exemplo do ditado que afirma que uma imagem vale mais do que mil palavras. Intenso, marcante e, a espaços, estranhamente comovente, um livro para recordar durante muito tempo.

Título: O Número 73304-23-4153-6-96-8
Autor: Thomas Ott
Origem: Recebido para crítica 

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

A Sabedoria dos Idiotas (Nasrudin Hodja)

Parte da venerável tradição dos contos espirituais do Oriente é o facto de, muitas vezes, os "idiotas" que os protagonizam acabarem por dar forma a verdadeiras pérolas de sabedoria. Nasrudin, a figura mítica que serve de protagonista à vasta maioria das histórias deste livro, é a perfeita representação disso: um aparente pobre de espírito, cuja esperteza, artimanha e inesperada sabedoria sobressaem de um conjunto de aventuras - ou desventuras, talvez - tão bizarras quanto cativantes. Desempenhando múltiplos papéis - e olhando o mundo de formas às vezes contraditórias - Nasrudin representa a multiplicidade do espírito. Um espírito... que dificilmente poderia ser mais divertido.
Um dos primeiros aspectos a salientar neste livro é a estranhamente cativante mistura de estranheza e familiaridade que se sente ao ler estas pequenas histórias: estranheza pelos elementos bizarros que, em muitos casos, servem de meio de transmissão da mensagem, e familiaridade porque várias destas histórias são já sobejamente conhecidas. É como regressar, a espaços, a um lugar familiar, para depois passar a algo de completamente novo, o que faz com que a leitura seja, ao mesmo tempo, de fácil assimilação e cheia de surpresas agradáveis.
Sendo algumas destas histórias já conhecidas, torna-se também fácil perceber o porquê da brevidade. Alguns destes pequenos contos cingem-se a meia dúzia de linhas, o que pode, talvez, deixar a impressão de uma história demasiado concisa, mas por outro realça uma das suas facetas mais importantes. É que muitas as histórias que conhecemos têm um tom quase de anedota, de história que se conta a alguém para desbloquear uma conversa. Este equilíbrio entre o cariz leve e humorístico das histórias e a verdade surpreendentemente profunda que, nalguns casos, lhes está subjacente sai reforçado pela brevidade dos contos.
E há Nasrudin, claro, protagonista de quase todas estas estranhas peripécias, perfeito representante do bobo sábio, que recorre a acontecimentos e histórias caricatas para dizer verdades de uma forma mais inofensiva. É como que uma forma diferente de ensinar, a deste bizarro e mítico protagonista. Mas o que é certo é que as ideias ficam no pensamento - mais até do que a estranheza das histórias.
Com o seu estranho protagonista e caricatas aventuras, trata-se, pois, de uma forma completamente diferente de descobrir e assimilar lições espirituais. Leve, cativante e muito divertido, um livro para sorrir... e para pensar.

Autor: Nasrudin Hodja
Origem: Recebido para crítica 

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Miúdos Contra o Plástico (Martin Dorey e Tim Wesson)

É o mais actual dos temas: o excesso de plástico e a forma como vai parar ao mar, causando graves danos às espécies marinhas. E, como despertar consciências começa desde pequeno, este livro propõe um desafio aos mais novos: ser um super-herói em dois minutos, combatendo o plástico em cada faceta do dia-a-dia e sem gastar demasiado tempo. Com um conjunto de missões e de pontos de aprendizagem, lança desafios simples mas pertinentes e abertos tanto a crianças como a jovens e adultos.
Uma das primeiras coisas que importa salientar sobre este livro é que, embora claramente pensado para leitores mais jovens, levanta questões que são - ou deviam ser - relevantes para todos nós. E, embora a estrutura reflicta bem o seu público-alvo, com os seus pequenos super-heróis, a explicação concisa das coisas e um conjunto de desafios que se debruçam principalmente sobre o ambiente escolar e a contexto familiar, é possível retirar ideias e conceitos independentemente da idade de quem lê este pequeno livro. Afinal, o plástico é um problema de todos, e muitos destes pequenos gestos podem, de facto, ser feitos por todos.
Mas é, sim, um livro juvenil. E, por isso, importa realçar também a construção do livro. Cheio de cor e escrito num registo leve e cativante, torna o combate ao plástico uma aventura divertida. E, além do mais, ao explicar de forma simples os conceitos essenciais, como os tipos de plástico, a forma como o lixo é tratado e as dificuldades de reciclagem dos diferentes materiais, as ideias tornam-se mais fáceis de assimilar. Além do sempre benéfico efeito secundário de despertar a curiosidade em aprofundar conhecimentos acerca destes temas.
É, acima de tudo, um desafio colocado aos mais jovens: combater o plástico e ajudar o ambiente. E um livro cheio de matéria interessante, desafios engraçados e uma mensagem global que dificilmente poderia ser mais positiva. Muito interessante, em suma.

Autores: Martin Dorey e Tim Wesson
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Encontros e Encontrões de Portugal no Mundo (Leonídio Paulo Ferreira)

Da soprano que encantou uma czarina à rainha que pôs os ingleses a beber chá, passando por evangelizadores, espiões, banqueiras e todo o tipo de personalidades, muitas foram as figuras históricas a deixar, com maior ou menor sucesso, a marca de Portugal nas partes do mundo por onde passaram. E, sendo embora figuras dignas de todo um romance ou biografia, o que este livro faz é uma apresentação sucinta dos seus percursos. Que, conjugados, configuram uma imagem bastante clara da ampla presença portuguesa no mundo - passada e presente.
Começando pelo que se poderá, talvez, considerar um ponto fraco, mas que faz todo o sentido tendo em conta o objectivo desta obra, uma das primeiras características a sobressair é a brevidade dos textos. São poucas as páginas dedicadas a cada protagonista, o que faz com que o relato apresentado seja bastante conciso. Ora, é inevitável a sensação de curiosidade insatisfeita, a vontade de saber mais sobre cada uma destas figuras. Mas a verdade é que o essencial, a marca deixada nesse ponto do mundo, está lá.
Este registo sucinto tem também o condão de realçar a experiência pessoal da descoberta, já que são vários os textos em que o autor faz referência ao que o levou a ir em busca daquela história. E, além de fazer sobressair uma perspectiva que é mais de presença global do que das histórias individuais, esta relativa simplicidade consegue também realçar a diversidade de papéis: do embaixador que salvou vidas ao criador de um primeiro dicionário, as personalidades são tão distintas quanto os países por onde se movimentam. E, sendo certo que fica a vontade de saber mais sobre todas estas figuras, a relativa brevidade permite uma maior abrangência: há espaço para mais histórias - e para mais lugares.
Importa ainda salientar uma última faceta: sendo certo que uma das grandes forças deste livro é a visão global que fica de uma leitura sequencial, a verdade é que qualquer dos textos pode ser lido de forma perfeitamente independente, o que, além de proporcionar uma leitura cativante, faz deste livro um bom destino caso se procure uma presença num local específico. É também fácil localizar, dada a organização do texto, um lugar ou figura que se queira revisitar, o que faz com que a experiência não se esgote numa primeira leitura.
Tudo somado, a imagem que fica é a de uma leitura sucinta, mas cativante e repleta de pontos de interesse. Conciso, equilibrado e de leitura agradável, um bom livro para descobrir ou relembrar a vasta presença dos portugueses no mundo.

Autor: Leonídio Paulo Ferreira
Origem: Recebido para crítica 

Divulgação: Novidade Marcador

As origens do homem moderno são assim tão recentes? A teoria da evolução é assim tão cientificamente documentada e inatacável?
Uma interpretação arqueológica recente de dois investigadores demonstra o contrário.
Ao longo dos últimos dois séculos investigadores descobriram ossos e artefactos indicando que seres como nós existiram na Terra há milhões de anos e não há 100 mil como acreditamos. Mas a ciência convencional parece ter eliminado, ignorado ou esquecido esses factos notáveis.
Este livro bombástico traz à tona descobertas que contrariam a crença dominante sobre a antiguidade e a evolução do Homem.
Reunindo um número significativo de factos convincentes iluminados com a sua análise crítica, Cremo e Thompson desafiam-nos a repensar a nossa compreensão sobre as origens, a identidade e o destino da humanidade.

Michael A. Cremo é um pesquisador associado do Instituto Bhaktivedanta, especializado em história e filosofia da ciência. As suas investigações persistentes durante os oito anos de escrita do livro Forbidden Archeology documentaram um grande encobrimento científico.
Richard L. Thompson (1947-2008), membro fundador do Instituto Bhaktivedanta, doutorado em Matemática pela Universidade de Cornell.

Para mais informações, consulte o site da Marcador Editora aqui.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

As Serpentes Cegas (Felipe Hernández Cava e Bartolomé Seguí)

1939. Um misterioso homem de fato vermelho chega a Nova Iorque em busca de Ben Koch, que não cumpriu um pacto. Que pacto é esse é um mistério, mas o forasteiro está disposto a esperar que Ben apareça... ou que os acontecimentos se precipitem. Pois Ben já teve vários nomes, uma relação delicada com o partido comunista e uma participação na Guerra Civil Espanhola. E, ao longo desse caminho, ganhou motivos para se querer vingar...
Há algo de estranhamente fascinante na forma como, partindo de um ambiente quase de história policial, este livro se projecta para algo de completamente diferente. O estranho misterioso insinua-se inicialmente como um inimigo, talvez um cobrador, mas a sua verdadeira natureza - revelada apenas no final - é verdadeiramente surpreendente. E quanto a Ben, todo o seu percurso é feito de surpresas, desde aquilo que o move aos objectivos que persegue, passando pelas sombras do passado - tanto as reveladas como as que ficam em aberto.
Também particularmente notável é o registo conferido à história, com monólogos interiores quase poéticos, discursos exaltados e um conjunto de acções vincadamente expressas na arte a coexistir num equilíbrio delicado. Há uma estranha poesia nas palavras, que contrasta não só com a brutalidade de certas circunstâncias, mas principalmente com os tons sombrios - evocativos de uma vida clandestina - rasgados pela enigmática presença do homem de vermelho.
Mas, olhando ainda uma vez mais para a história, há ainda uma outra faceta que importa destacar: a forma como temas mais amplos como a Guerra Civil Espanhola e as aspirações revolucionárias dos movimentos clandestinos servem de pano de fundo a uma história que é, acima de tudo, pessoal. Passado e presente giram em torno de Ben Koch, e o facto de haver um contexto mais vasto no seu percurso só contribui para tornar mais intensa a sua demanda de vingança. Bem como, claro, a derradeira e surpreendente revelação.
O que fica, uma vez terminada a leitura, é a imagem de um livro breve, mas ao mesmo tempo vastíssimo, com uma história pessoal, mas que abrange um cenário muito mais amplo, e uma sucessão de surpresas narradas com a intimidade de um percurso pessoal, mas, acima de tudo, com uma imagem que se destaca das sombras. Marcante em todos os aspectos, um livro que não posso deixar de recomendar.

Título: As Serpentes Cegas
Autores: Felipe Hernández Cava e Bartolomé Seguí
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Autobiografia (José Luís Peixoto)

José é um escritor em crise, assombrado pela existência do seu primeiro romance e pela certeza de que só o segundo o poderá libertar, se ao menos for capaz de o escrever. É neste contexto que lhe surge uma proposta redentora: escrever uma biografia - aliás, texto ficcional de cariz biográfico - de Saramago. Parece um avanço promissor, mas, perdido na sua própria vida, as palavras persistem em não sair. E há ainda outra sombra que paira, ominosa: Saramago sabe um segredo sobre José.
Parte do que torna este livro tão memorável é a forma como a narrativa parece equilibrar-se num registo simultaneamente intimista e misterioso. Há segredos meticulosamente guardados, dívidas cobradas com recurso à força e até um caminho de auto-destruição, entrelaçados num percurso de descoberta interior, não necessariamente redentora, mas esclarecedora, ainda assim. E isto cria um embalo em que facilmente se mergulha, como que uma harmonia intangível cujos elementos são difíceis de apontar, mas cuja presença se sente.
Há também um lado quase onírico na construção desta narrativa, não só na forma como algumas personagens sabem coisas que talvez não devessem saber, mas também na aparente impossibilidade do grande segredo. A revelação prometida é toda ela uma surpresa, mas o que realmente marca é o facto de, embora inefável, fazer um estranho sentido à luz deste percurso.
E, no meio de tudo isto, está Saramago, autor e personagem, portador das grandes respostas e das perguntas que ficam em aberto. Pois nunca faria sentido um final absolutamente conclusivo numa história com tantas possibilidades paralelas, e, assim sendo, é absolutamente adequada a forma como tudo se encerra.
Enigmático - e estranhamente fascinante nos seus enigmas - trata-se, pois, de um livro feito de segredos e possibilidades: os segredos de um autor em desenvolvimento e as infinitas possibilidades da literatura. Misterioso, intimista e inesperadamente harmonioso, um livro que recomendo sem hesitações.

Título: Autobiografia
Autor: José Luís Peixoto
Origem: Recebido para crítica 

domingo, 15 de setembro de 2019

O Caçador (Lars Kepler)

As autoridades suecas têm um problema delicado em mãos: o ministro dos negócios estrangeiros foi encontrado em casa, brutalmente assassinado e com uma prostituta como única testemunha do crime. Inicialmente, tudo parece apontar para um ataque terrorista, o que deixa as autoridades em alerta máximo, mas há qualquer coisa que não bate certo. E, com as explicações a escassear e uma sensação de perigo iminente, a polícia vê-se obrigada a pedir ajuda a Joona Linna, que se encontra a cumprir pena numa prisão de alta segurança. Estão dispostos a prometer muito - e a cumprir apenas parte. Mas, quando as coisas começam a complicar-se, cedo percebem que Joona é a melhor opção que têm.
Parte do que torna este livro tão cativante é o facto de ser uma constante sucessão de surpresas. Começa com um momento de brutalidade, abrindo depois espaço a possibilidades mais amplas às quais se sucede uma sequência de pistas, erros e novas pistas. O resultado é uma ânsia quase irresistível de descobrir o que acontece a seguir, que segredos se escondem atrás desta envolvência de acção constante e quem é, afinal, o responsável por tudo o que está a acontecer.
Para este ritmo viciante contribui também o facto de a história se dividir entre a perspectiva de várias personagens. Além de realçar as características que as individualizam - principalmente nos casos de Saga e Joona, mas também no que diz respeito às potenciais vítimas e culpados -, constrói uma visão mais vasta da teia de interesses e movimentações. A questão do terrorismo lança uma nova luz sobre certos sectores da autoridade. E o mistério dos "coelhos" abre espaço a uma também intrincada teia de acções passadas - e consequências presentes.
Tudo parece convergir num equilíbrio eficaz, em que há novos desenvolvimentos para as personagens já conhecidas e um percurso intenso e surpreendente para os protagonistas deste caso específico. Fica, por isso, a sensação de que é perfeitamente possível ler este livro sem ter lido nenhum dos anteriores - mas que a história terá um impacto ainda maior para quem tiver acompanhado a série desde o início. E o mesmo se aplicará provavelmente ao seguinte, já que o caso central deste livro encontra uma conclusão satisfatória, mas as possibilidades para Joona Linna continuam a ser vastíssimas.
Com um enredo viciante, personagens fortes e uma constante sucessão de reviravoltas, eis um livro que prende desde as primeiras páginas e não deixa de surpreender até ao fim. Intenso, surpreendente e viciante, um livro capaz de cativar de novos leitores, mas que também não desiludirá os fãs de Joona Linna. Muito bom.

Título: O Caçador
Autor: Lars Kepler
Origem: Aquisição pessoal

sábado, 14 de setembro de 2019

A Aranha Ana (Joana Gonzalez, Lisa Maciel Toth e Raquel Santos)

A Ana é uma aranha muito atarefada, que está sempre a trabalhar. Por isso, quando deixa cair o seu pano das limpezas, fica ainda mais stressada, a pensar em como o há-de ir buscar. Felizmente, tem muitos amigos na floresta encantada, e estes vão ensiná-la a descontrair, a adoptar posições que a acalmam e sabem bem e a olhar para o mundo de forma mais tranquila. Afinal, a vida não é só trabalho, não é verdade?
À semelhança do que aconteceu com o anterior O Sapinho Green, uma das primeiras coisas a cativar nesta história - e na colecção em geral - é a premissa que lhe serve de base. O objectivo é dar a conhecer o yoga, não só em termos de posições, mas principalmente em termos de conceitos e ideias, aos mais pequenos, e é bastante cativante a forma como, construindo uma história envolvente e em que nada parece forçado, esses conceitos parecem ganhar vida.
Claro que sendo uma história tão curta, a exposição destes conceitos é inevitavelmente concisa. Mas se, para um leitor adulto, fica uma certa curiosidade em ver estes temas mais aprofundados, importa lembrar que não são os adultos o público-alvo destas pequenas histórias. E que, para os mais novos, é provavelmente mais fácil assimilar as ideias desta forma: com uma descrição simples e feita através do exemplo das personagens.
Importa ainda salientar o impacto das ilustrações, não só porque, sendo uma história que explica os conceitos pelo exemplo, é importante visualizar as posições através das suas engraçadas personagens, mas principalmente pelo mundo de cor que acrescentam à leitura. A história ganha outra vida através dos tons vivos da floresta e da surpreendente expressividade das personagens. E, sendo a protagonista uma aranha, não deixa de surpreender também a inesperada dose de fofura que esta apresenta.
Tudo somado, fica a impressão de uma leitura simples e breve, mas muito cativante e colorida. Uma boa história para transmitir aos mais novos os conceitos do yoga e - porque não? - para os descobrir também.

Título: A Aranha Ana
Autora: Joana Gonzalez, Lisa Maciel Toth e Raquel Santos
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Pequenos Truques, Grandes Ideias

Truques de beleza, de cuidado, remédios caseiros para pequenos desconfortos e até formas de tornar uma refeição mais apetecível: de tudo isto é feito este pequeno livro que, relembrando velhas e valiosas dicas, transporta para actualidade os truques e dicas de antigamente. Simples? Pois claro, e é simplicidade que se pretende: a mesma simplicidade que torna este breve livro tão útil.
Dificilmente um título podia ser mais claro do que o deste livro, pois descreve na perfeição o conteúdo: um conjunto de pequenos truques para lidar com certas dificuldades da rotina quotidiana. E, sendo muitos destes truques parte da sabedoria popular, é inevitável ficar com este sentimento ambíguo: talvez fosse interessante associar uma história a estas dicas. Não é, porém, esse o objectivo. O objectivo é reunir conselhos úteis. E isso é algo que não falta neste pequeno livro.
Importa também salientar a organização do livro. Dividido em três secções, cujo conteúdo surge, por sua vez, disposto por ordem alfabética, é um livro de fácil consulta caso se procure uma solução específica. Além disso, e uma vez que são dicas muito sucintas (afinal, é isso mesmo que se pretende) esta organização por temas permite uma mais fácil assimilação destas tão simples e curiosas ideias, pois as que se aplicam a uma mesma área são bastante fáceis de situar.
Mais do que um livro para ler de uma assentada (embora fazê-lo deixe uma interessante imagem da vastidão de truques e mezinhas que perduraram ao longo dos tempos), trata-se, pois, de um livro útil para consultar ante problemas específicos. É essa, aliás, a sua maior qualidade: o conjunto de soluções simples e úteis que apresenta para as dificuldades do dia-a-dia.

Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Ella Fitzgerald (Maria Isabel Sánchez Vegara e Bárbara Alca)

Foi na sequência de uma infância difícil que a atirou para as ruas de Nova Iorque que ela descobriu o seu talento e a sua vocação: o mesmo talento que faria dela uma lenda. Esta é a história de uma menina pequena com um grande sonho, uma enorme persistência e uma imensa voz. De uma lenda, em suma, cujas origens importa conhecer.
Parte do que torna os livros desta colecção tão interessantes é a forma como conseguem realçar o percurso essencial de toda uma vida em tão poucas páginas. Trata-se de um livro infantil, necessariamente breve, mas a verdade é que nada lhe falta para dar a conhecer a história da sua protagonista. E, entre a rima e o ritmo das palavras, a beleza das ilustrações e a força da história propriamente dita, consegue ensinar e inspirar leitores de todas as idades.
Também muito interessante é a forma como as ilustrações parecem ajustar-se na perfeição à história da sua figura central, com a relativa simplicidade que se espera de um livro infantil, mas transmitindo com precisão os ambientes e os pequenos elementos que definem o percurso. Além disso, há um delicado equilíbrio entre novidade e familiaridade: a arte parece pensada para reflectir a vida e o mundo da protagonista, mas há também uma semelhança palpável que faz com que seja fácil reconhecer o facto de este livro pertencer a uma colecção com muitos aspectos em comum.
E, claro, sendo uma história tão breve, tem ainda um interessante efeito secundário, principalmente sobre os leitores mais adultos: a vontade que deixa de aprofundar mais a história da vida de Ella Fitzgerald. Sendo um relato tão simples, mas tão inspirador, deixa uma grande curiosidade em conhecer melhor o seu percurso, em descobrir mais da sua história vida. E esta sede de conhecimento que inspira não pode senão ser uma qualidade.
Bonito, cativante e - à semelhança dos outros volumes desta colecção - completo, apesar da brevidade, trata-se, pois, de um belo livro para dar a conhecer aos mais pequenos uma das grandes lendas musicais. E a sempre repetida - e sempre relevante - mensagem de que um grande sonho pode dar origem a grandes feitos.

Título: Ella Fitzgerald
Autores: Maria Isabel Sánchez Vegara e Bárbara Alca
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Percy Jackson: A Batalha do Labirinto (Rick Riordan)

Prestes a iniciar um novo ano lectivo - numa escola nova, como habitual -, Percy já não está à espera de que as coisas sejam particularmente pacíficas, mas está longe de imaginar o que o espera. Novamente perseguido por monstros, vê-se obrigado a deixar uma vez mais um cenário de caos atrás de si. E esse episódio é apenas o início. Cronos está cada vez mais forte e prepara um ataque contra os heróis. Para o impedir, Percy e os amigos terão de encontrar o labirinto de Dédalo e impedir a passagem do exército de Cronos... antes que seja demasiado tarde.
Nunca deixa de impressionar a forma como, misturando mitologia e actualidade e grandes momentos de acção e emoção, o autor consegue construir uma história que, embora direccionada para os mais mais jovens, consegue cativar leitores de todas as idades. Talvez se deva à fluidez de uma escrita leve ou à precisão dos momentos mais emocionantes no seio de um enredo que é todo ele acção. O que é certo é que, uma vez iniciada a leitura, é difícil parar antes do fim, tal é a vontade de saber o que acontece a seguir a estes interessantes protagonistas.
Percy e companhia são adolescentes. Importa lembrar isto devido à forma como certos desenvolvimentos se processam, nomeadamente no que diz respeito à descoberta dos afectos. Mas também aqui é o equilíbrio a sobressair, já que todos os momentos ocupam o espaço certo: sejam eles os rasgos de humor, os momentos de ciúme ou de insegurança ou a simples necessidade de pertencer. Isto é particularmente notável tendo em conta o contexto em que se insere: num cenário de corrida contra o tempo e, principalmente, de um conflito envolvendo deuses e monstros, é interessante que não é só a intriga a ficar na memória, mas também aquilo que torna as personagens humanas.
E, claro, sendo o penúltimo volume desta primeira série, escusado será dizer que fica muita coisa em aberto. Mas, além de fazer todo o sentido que assim seja, pois gera uma curiosidade irresistível em saber o que sucederá no último volume, sobressai também o facto de esta parte da história parecer terminar no ponto certo. De certa forma, encerrou-se uma fase da aventura e o que se segue será um novo patamar. E, assim, as linhas essenciais deste volume ficaram resolvidas, abrindo caminho a novas revelações.
Cheio de magia e de aventura, prende desde as primeiras páginas e vai crescendo de intensidade à medida que salta de surpresa em surpresa, de revelação em revelação. Leve, empolgante e muito viciante, trata-se, pois, de uma envolvente aventura para leitores de todas as idades. Muito bom.

Autor: Rick Riordan
Origem: Aquisição pessoal

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Fundação (Isaac Asimov)

O Império Galáctico perdura há milénios, mas alguém ousou finalmente prever-lhe o fim. E fê-lo recorrendo a avançados métodos científicos, além de apresentar um plano para reduzir ao mínimo o período de barbárie. Hari Seldon tem uma visão: construir uma Fundação dedicada a coligir todo o conhecimento do Império e a lidar com as sucessivas crises que virão, preparando o caminho para um Segundo Império Galáctico. Mas há quem veja as suas profecias como traição e o seu ambicioso plano pode muito bem ver-se reduzido a uma escolha entre morte e exílio.
Um dos aspectos mais surpreendentes deste livro é que, embora seja composto por cinco histórias maioritariamente independentes, abrangendo diferentes protagonistas, períodos e crises, há entre elas uma ligação tão sólida que é difícil não o ler como um romance. Mais do que qualquer personagem, a verdadeira protagonista parece ser a Fundação e, nesse sentido, é apenas natural que cada história, surgindo embora como um todo completo, pareça mais um capítulo de uma história maior. E, sendo certo que este registo faz com que fique uma sensação de curiosidade insatisfeita relativamente ao percurso individual das personagens - afinal, cada uma das crises justificaria um romance completo -, também o é que o essencial está bem presente e que esta fusão de histórias cria uma visão mais vasta do futuro enquanto entidade (relativamente) previsível.
Também surpreendente é a forma como os grandes acontecimentos são abordados: há julgamentos, conspirações, guerras inteiras a serem travadas. No entanto, muitos destes grandes momentos parecem decorrer em segundo plano. E se o primeiro aspecto a surpreender é precisamente a ausência destes grandes picos de acção, surpreende também a forma como esta ausência parece encaixar estranhamente no registo da narrativa. Não é preciso ver as coisas em primeira mão para saber que aconteceram: estão lá as personagens para as relatar. Além do mais, esta forma de contar as coisas tem ainda o condão de realçar a perspectiva global, mostrando planos e movimentos como meras jogadas numa espécie de xadrez cósmico.
Claro que, sendo este livro apenas o início, não é propriamente uma surpresa que fiquem muitas perguntas sem resposta. O mais interessante, porém, e que, tal como cada uma das histórias parece encerrar uma fase do todo mais amplo, também este livro parece terminar no ponto mais adequado, onde mais um ciclo se encerra, abrindo passagem a novas mudanças... e a novos protagonistas.
O que fica é, pois, esta intrigante impressão de uma aventura intergaláctica, que, mais que de combates e intrigas, se faz dos ciclos e movimentos do tempo - e das armas dadas aos homens para combater a mudança. Cativante, intrigante e surpreendente, uma boa leitura.

Título: Fundação
Autor: Isaac Asimov
Origem: Aquisição pessoal

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Rumo aos Mares da Liberdade (Sarah Lark)

Irlanda. Apesar da fome e de todas as dificuldades, Kathleen e Michael amam-se e anseiam por casar. Mas as dificuldades financeiras forçam-nos a adiar constantemente o sonho de partir para a América e, quando Kathleen descobre que está grávida, Michael comete um erro na ânsia de conseguir dinheiro fácil. Condenado por roubo, é deportado para o outro lado do mundo, deixando Kathleen sem outra alternativa a não ser aceitar um casamento forçado. Com o seu novo marido, parte também, com destino à Nova Zelândia, onde espera poder criar o filho de Michael com dignidade. Mas Ian, o seu marido, é tudo menos um homem bondoso e as dificuldades não tardarão a surgir. Mais perto do que imaginam, mas separados pelas vicissitudes da vida, Kathleen e Michael terão de encontrar uma forma de se libertarem das suas circunstâncias. Mas o que os uniu pode estar já irremediavelmente perdido.
Parte do que torna os livros desta autora tão encantadores é a forma como consegue conjugar uma história repleta de emoção e de perigos com uma vastidão de paisagens fascinantes. Há sempre uma partida para um mundo novo na base da construção de uma nova vida, e esta mistura de sonho e sofrimento faz com que seja impossível não sentir quase de imediato uma grande proximidade com os protagonistas. É também esse o caso neste Rumo aos Mares da Liberdade, onde a ingenuidade e vulnerabilidade de Kathleen contrastam com a impetuosidade de Michael, servindo de ponto de partida a uma história repleta de momentos intensos e situações memoráveis.
É uma história extensa, não só em número de páginas, mas principalmente no que diz respeito ao período de tempo em que a narrativa decorre. São dezassete anos entre o momento da separação e a conclusão da história, o que significa que há muito a acontecer, tanto em termos de situação global como de crescimento pessoal. Para Kathleen, há as vicissitudes da separação, as provações do casamento e tudo o que virá depois no seu caminho de libertação. Para Michael, a deportação, os trabalhos forçados e depois todo o caminho de fuga e sobrevivência na companhia da impressionante Lizzie. E quanto a esta, há a coragem infindável e a dedicação a um sonho que parece sempre impossível de alcançar. E se isto parece já uma grande história... bem, todos estes pontos se ramificam em novas e intensas surpresas, em grandes momentos de emoção e também num choque cultural que se vai gradualmente harmonizando.
Há, em tudo isto, um fascinante enlevo. À proximidade quase imediata, segue-se a incessante vontade de descobrir o que virá depois. E, a cada novo desenvolvimento, surgem novas emoções, novas revelações e uma consciência cada vez mais clara das forças que movem estas personagens. Mas há ainda um outro aspecto: sendo o ponto de partida o amor entre Kathleen e Michael, há também uma expectativa constante de qual será a derradeira resolução. Mas desengane-se quem pensa que toda esta longa jornada se encaminha para um desfecho previsível. O final é como tudo o resto: intenso, emotivo e surpreendente.
Memorável em todas as suas facetas, trata-se, pois, de uma longa e fascinante jornada, que flui tanto ao ritmo das surpresas e dos perigos como das grandes emoções que movem os protagonistas. Emotivo, harmonioso e sempre fascinante, um livro que não desiludirá os fãs da autora... e uma viagem em que vale muito a pena embarcar.

Autora: Sarah Lark
Origem: Recebido para crítica

Para mais informações sobre o livro Rumo aos Mares da Liberdade, clique aqui.

domingo, 1 de setembro de 2019

Dez Minutos... e Cama: Monstrinho Querido (Rhiannon Fielding e Chris Chatterton)

Faltam dez minutos para a hora de ir para a cama, mas a Chinfrim ainda não está pronta para dormir. Por isso, desce as escadas sorrateiramente e vai em busca de aventura. Também os outros monstrinhos deviam estar a dormir, mas não é bem assim. E dez minutos dão para muita coisa, mesmo quando se é um monstrinho (pouco) assustador.
Muito à semelhança do anterior Pequeno Unicórnio, também neste segundo livro uma das primeiras coisas a chamar a atenção são as ilustrações. Há toda uma vastidão de fofura nesta pequena e enternecedora história de um monstrinho querido sem vontade de dormir. Além disso, é fácil imaginar este livro como uma boa história para adormecer: é uma contagem decrescente, ao mesmo tempo que é também uma breve aventura, o que torna esta pequena história uma bela leitura para antes de ir dormir.
É uma história breve, é certo, mas parece ter o equilíbrio ideal. Além da contagem decrescente, a rima confere-lhe uma agradável fluidez, quase de canção de embalar, o que contribui também em muito para fazer desta uma bela história para adormecer. E se é verdade que mais haveria a dizer sobre a Chinfrim e os seus amigos monstrinhos, também o é que a aventura é, em si mesma, um todo completo. Afinal, não é qualquer monstrinho que consegue fazer uma festa em dez minutos.
E há ainda um outro aspecto curioso: é que, através desta história cativante e enternecedora, com a sua protagonista estranhamente fofa, surge ainda o desfazer de um mito. Todos nos lembramos de ter medo dos monstros debaixo da cama, certo? Bem, estes monstrinhos queridos e brincalhões são tudo menos assustadores, o que também é um bom ponto de partida para deixar de ter medo.
Misturando ritmo e cor, fofura e aventura, eis, pois, uma boa forma de afastar o medo dos monstros, através de uma boa história para adormecer. Cativante, ternurento e cheio de cor, um belo livro para ler aos mais novos.

Autores: Rhiannon Fielding e Chris Chatterton
Origem: Recebido para crítica