quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Balanço de 2020

2020. O ano da pes... da pandemia. É inevitável pensar nele assim. O ano em que o mundo tal como o conhecíamos mudou, em que as nossas relações tiveram de se tornar um pouco mais distantes, pelo menos fisicamente e em que ganhou vida viral um grande desafio que está ainda longe de ter terminado. Mas bem... No que toca à pandemia, já muito se disse e muito se continuará a dizer. Este é um balanço de coisas boas.
E coisas boas significa livros, claro. Foi um ano por vezes caótico, também em termos de leitura, mas bastante produtivo, ainda assim. E a soma das leituras do ano ainda deu uns belos 239 livros lidos, muitos dos quais memoráveis.
Sem mais demoras - e porque é esse, afinal, o objectivo deste texto, ficam pois, dessa bela pilha de leituras, os dez mais marcantes e os meus favoritos pessoais.


1. Os Outros - C. J. Tudor
É arrepiante, é surpreendente, é emocionalmente devastador. É uma história poderosíssima, um quebra-cabeças absolutamente inesperado e tão absurdamente cheio de emoção que é praticamente impossível não sentir a angústia das personagens. E é, além disso, uma história muitíssimo cativante, com uma escrita soberba e um conceito avassalador. É basicamente um UAU em forma de livro. Inesquecível.

2. O Intruso - Stephen King
Estão a ver aquilo tudo que eu escrevi sobre o livro anterior? Curiosamente, apesar de serem histórias muito diferentes, aplica-se tudo na perfeição também a este livro. Além do mais, Stephen King é Stephen King, o que significa que dispensa apresentações. E este Intruso, com o seu início tão angustiante e a sua sucessão de poderosas reevelações, é Stephen King no seu melhor.

3. Nothing Important Happened Today - Will Carver
É provavelmente uma das coisas mais retorcidas e aterradoras que já li na vida, com uma exploração brilhante da mentalidade de culto, uma forma de narrar a história absurdamente perturbadora (até porque a forma como a mente das personagens é explorada é uma das grandes forças deste livro) e uma sucessão de surpresas brilhantes. É daqueles livros que, sendo uma estreia, nunca poderão ser a última leitura deste autor.

4. O Silêncio das Mulheres - Pat Barker
Este descreve-se numa palavra: lindo. A escrita é belíssima, o conceito de uma reconstrução da guerra de Tróia do ponto de vista das mulheres é brilhante e a exploração da vida e da personalidade da protagonista, defrontada muitas vezes com o inimaginável, é poderosíssima. Tudo neste livro é belo.

5. O Enigma do Quarto 622 - Joël Dicker
Não, nunca tinha lido nada deste autor. E não, não sabia o que andava a perder. Intenso, vertiginoso, cheio de surpresas e com o pormenor particularmente delicioso de transformar o autor em personagem, é um livro cheio de reviravoltas, daqueles que, apesar do tamanho, dão vontade de ler de uma vez só.

6. A Morte do Papa - Nuno Nepomuceno
Previsível, eu sei. Mas estranho era chegar ao fim do ano sem um livro destes na minha lista. É que o professor Afonso Catalão já é daquelas personagens que são quase família. E esta nova aventura está, como sempre, mais que à altura de todas as expectativas. Absurdamente viciante, como sempre.

7. The Witch House - Ann Rawson
Toda uma surpresa, este livro. Maravilhosamente escrito, com uma história fascinante de manipulação, fragilidade e crime e um elemento sobrenatural que só vem acrescentar intensidade a uma história já cheia de força. É memorável, sem dúvida.

8. Monstress, vol. 4: Os Escolhidos - Marjorie Liu e Sana Takeda
Continuando na senda das escolhas previsíveis, este é mais um que não podia faltar aqui. Monstress é lindo, tanto visual como emotivamente. E, à medida que a história se vai expandido e os conflitos se tornam cada vez mais complexos, torna-se também mais forte a sensação de proximidade com a protagonista.

9. The Wicked + The Divine: Escalada - Kieron Gillen, Jamie McKelvie, Matt Wilson e Clayton Cowles
E por falar em histórias que se expandem e que se vão tornando cada vez mais intensas e visualmente notáveis... Esta série é divina... e sim, esta escolha de palavras foi propositada, mas é também a que faz mais sentido. Tudo neste estranho mundo, tão cheio de singularidades como de acção, é fascinante. E a forma como este volume termina... bem, a partir daqui tudo é possível.

10. Saga: Volume Sete - Brian K. Vaughan e Fiona Staples
Toda esta série merecia destaque, porque todos os volumes são lindos. Porquê este? Porque, de toda a história... e que história... surgem aqui alguns dos momentos mais belos e emotivos de toda esta longa, maravilhosa e atribulada viagem. Mas é para ler tudo. Tudo, tudo.


E assim termina um ano em leituras... porque mesmo em tempos de pes... de pandemia... temos sempre os livros para nos permitir viajar... mesmo quando não podemos sair de casa.

Até para o ano e que seja mais tranquilo do que este... mas sempre, sempre cheio de bons livros.

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Viagens (The Lisbon Studio)

Viajar é algo que pode ser feito de muitas formas. No espaço, no tempo, no pensamento, nas memórias... e, claro, nas páginas de um livro como este, em que cada história é, à sua maneira, uma viagem por histórias e também por estilos. Há viagens que são monótonas, outras que são fascinantes e outras ainda repletas de perigo. E é de viagens que estas páginas são feitas... e é nelas que somos convidados a embarcar.
Um dos aspectos mais interessantes deste livro, e comum a todas as antologias desta série, é a capacidade de fazer convergir diversidade em torno do mesmo tema. Neste caso, todas as histórias giram em torno da temática das viagens, mas viagens é um tema muito vasto e cada história assume uma identidade diferente. Há histórias silenciosas (ou, melhor dizendo, em que só a arte fala) e outras em que é o diálogo que conta a história. Há histórias introspectivas, em que a viagem é como que um passar da vida, e outras de pura acção. Há traços complexos e cenários detalhados e outros resumidos à pura simplicidade. E cada história é um todo, mas juntas formam um todo mais vasto na sua confluência.
Claro que, sendo uma antologia de diferentes histórias e diferentes estilos (e, sim, estou a repetir-me), é apenas natural que haja algumas que deixam um impacto mais forte e outras que não impressionam tanto. Mas todas têm o essencial para proporcionar uma boa leitura e um belíssimo efeito secundário (ou principal) desta diversidade é que é bem possível que leitores diferentes se vejam cativados por histórias diferentes. O que significa que acaba por haver um pouco de tudo para todos.
Mas importa ainda voltar um pouco à diversidade para realçar outro ponto: é que, ao abranger diferentes tipos de viagens, estas histórias formam um todo mais completo. Há uma peculiar viagem no tempo, uma viagem a um mundo alternativo, uma viagem pelo quotidiano (com as saudades da distância associadas) e até uma viagem... ao outro lado da vida. Vistas no seu conjunto, estas histórias parecem abranger todos os sentidos da palavra viajar, o que é também um bom sinal da coesão desta antologia.
Eis, pois, uma leitura que é também uma viagem - como é, aliás, natural que um livro seja. E uma viagem abrangente, diversa e simples quanto baste, mas cheia (mais uma vez) de histórias e estilos para descobrir.

sábado, 26 de dezembro de 2020

Os Contos Impossíveis (Tiago Moita)

Sonhos mortais e quadros vazios. Aspirações secretas e batalhas pela sociedade. O mundo global e o mundo no cerne de cada um. Real e imaginário em colisão e conjugação. Tudo isto dá forma a estes Contos Impossíveis.
O Cruzeiro, que serve de abertura a este livro, fala de um navio chamado Civilização e da ameaça de um naufrágio provocado pelas forças do medo, do ódio e da ignorância. Breve, mas muito interessante enquanto metáfora da realidade, não dá respostas conclusivas para a história deste barco, mas proporciona muito material para reflexão.
Segue-se Volte Face, história de um cidade dividida ao meio e de como as barreiras geracionais podem ser ultrapassadas. Também relativamente breve e também uma boa metáfora da realidade, surpreende também pela emotividade subjacente a esta história de mais e menos jovens.
Uma Lágrima na Sala fala da descoberta de uma inexplicável lágrima capaz de despertar muitas mais. Surpreendente pela associação de emoções humanas a máquinas, tem, porém, o seu máximo impacto na forma como reflecte a persistência da memória e os diferentes motivos para o choro.
Segue-se Make a Wish, que fala de um filho muito esperado, mas cujo desejo invulgar gera apreensões, fantasias e alguns fenómenos estranhos. Apesar de uma vincada componente espiritual, que implica uma certa crença, esta é uma história que se destaca pela fluidez e pela naturalidade, que faz com que até os elementos mais peculiares pareçam normais.
Vem depois O Sexo dos Anjos, história de um cidade-estado em vias de ser invadida enquanto os seus políticos discutem assuntos inconsequentes. Peculiar, mas estranhamente certeiro, também este conto é uma boa metáfora da realidade, com a sua reflexão sobre a distância que separa a retórica dos discursos e a prática da acção.
A Peça fala de dois criadores com falta de ideias e de como uma gota de sangue os transporta para outra a dimensão. Onírico e cativante, destaca-se sobretudo pela intensidade quase visual das imagens, quase como o verdadeiro contemplar de uma peça.
Vem depois O Quadro Vazio, história de um choque em cadeia e de um possível encontro de todos os envolvidos. Provavelmente o melhor conto do livro, conjuga as medidas certas de mistério, emoção, intriga sobrenatural, introspecção e intensidade. E culmina num final particularmente memorável.
A Estátua Viva fala da realização de um desejo de imortalidade e de maldições que são bênçãos disfarçadas. Relativamente breve, acaba por ser um pouco vago acerca dos actos do protagonista, mas não deixa de ser uma boa reflexão sobre a imortalidade dos gestos.
Segue-se A Metade Maior, história de duas almas sozinhas em busca da sua metade perdida. Onírico e um pouco surreal, acaba por ser também um pouco vago, mas surpreendentemente fluido na sua estranheza.
E o último conto é Antes do Fim, história de um escritor em corrida contra o tempo e da alma e coração que às vezes se verem nos livros. De abertura algo ambígua, vai crescendo em intensidade para culminar num final notável, fechando assim com chave de ouro este conjunto de contos.
Cativantes, surpreendentes, misteriosas e inspiradoras. Assim são estas histórias, às vezes ambíguas, às vezes impossíveis, mas sempre muito interessantes. E feitas de improváveis e de realidades, são também - de várias formas - memoráveis. E dignas de descobrir. 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Feliz Natal


Será talvez um pouco mais pequeno,
talvez um pouco mais estranho,
mas enquanto houver luz e magia,
enquanto houver vida e sonhos
e enquanto existirmos uns para os outros,
continuará a haver Natal.

Boas Festas a todos quantos por aqui passam
e que, mesmo nos anos de estranheza,
continue a haver luz nas nossas vidas.


Ah... e livros também.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Uma Vida à Sua Frente (Romain Gary)

Momo acha que tem dez anos, ainda que ninguém pareça saber ao certo a sua idade, e a única vida que conhece é a que a Madame Rosa, uma velha judia e prostituta reformada, lhe tem proporcionado desde os três anos. Dir-se-ia ser apenas uma relação de interesse, pois foi a cuidar dos filhos de várias prostitutas que a Madame Rosa começou a ganhar a vida após a sua reforma, mas Momo é diferente. Momo ficou sempre, mesmo quando os cheques deixaram de aparecer. E é pelos olhos de Momo que esta estranha vida ganha forma: a de uma relação profunda entre uma mulher nos seus últimos dias e um rapaz com toda uma vida pela frente.
São tantas as impressões contraditórias ao longo deste livro que nunca poderia ser fácil descrevê-lo. É uma história de crescimento, mas também é uma história de morte. É uma história de relações e de afectos, mas também do desamparo dos mais frágeis. É, no seu âmago, uma história triste, mas capaz de fazer surgir grandes sorrisos. E é, ao longo de tudo isto, relativamente ambígua, como o são as vidas das suas personagens, mas também estranhamente profunda e fascinante.
Também a construção das próprias personagens é ambígua, ao ponto de nunca serem absolutamente adoradas ou odiadas. A Madame Rosa tem as suas excentricidades, a sua posição definida, a sua aparente indiferença... e no entanto, o fim... Quanto a Momo, tem a moralidade dúbia de quem aprendeu a desenrascar-se (porque defender-se tem aqui um significado distinto). E, de entre todas as pessoas que atravessam a relação de ambos, há gestos inesperados de bondade e crueldades escondidas, comportamentos inexplicáveis e o amor em pequenos gestos. E, em cada uma destas figuras, das que se aproximam e das que se afastam, há tantos temas importantes que não deixa de ser uma surpresa que este livro nem chegue às duzentas páginas.
Para isto, contribui também a escrita e o tom simultaneamente íntimo e extravagante que confere a todo o texto. É Momo o narrador, uma criança de possivelmente dez anos, e isso reflecte-se no texto, quer pela percepção de algumas palavras e pelo sentido alternativo dado aos conceitos, quer pela forma como divaga ao ritmo de uma imaginação muito grande. E, sendo certo que este ritmo peculiar torna a leitura um pouco mais pausada, é também crucial para realçar o impacto emocional deste cruzamento - ou colisão - de duas vidas.
Tudo é, pois, de certa forma, uma surpresa, desde o coração dos protagonistas ao grande mundo escondido nas suas pequenas vidas. E, surpreendentemente ambíguo, mas também surpreendentemente intimista, é, em suma, um livro que exige o seu tempo - mas que nem nos momentos mais estranhos deixa de cativar.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

1 Minuto e 36 Segundos (Pilar Burillo Simões)

Dizer que estudar para a prova de acesso à especialidade é um desafio nunca poderá ser menos do que um eufemismo, pois a própria natureza da prova implica uma grande exigência. Mas, além dos números e do tempo, há também os percursos individuais e a vida que não pára durante esses meses de estudo. Esta é uma história de lembranças pessoais desse período. E é precisamente por ser pessoal que se torna tão interessante.
Uma das primeiras coisas que importa dizer sobre este livro é que é bastante breve e, por isso, uma leitura relativamente leve. Talvez por ser a história pessoal de um período específico, não se embrenha demasiado a fundo em questões de contexto ou nas histórias passadas que, nalguns casos, culminaram naquela situação. E, porque se lê como um romance, é difícil não ficar com uma certa curiosidade em saber mais sobre esses aspectos não explorados, mas é também verdade que não são essenciais ao objectivo do livro. Afinal, é o período de preparação o tema, e as lições de vida - ainda que não necessariamente de medicina - que o acompanharam. E quanto a esse, fica-se com uma muito boa ideia.
Se a brevidade contribui para a leveza, também a fluidez da escrita sobressai neste aspecto. O estilo é, em geral, bastante directo, mas com alguns surpreendentes rasgos de poesia. E importa também destacar dois aspectos aparentemente discretos, mas particularmente cativantes: o humor certeiro, que surge precisamente nos momentos ideais, e a evidente emoção, que, positiva ou negativa, nunca é encoberta.
Por último, temos a mensagem geral que emerge de um percurso de preparação que é, em si mesmo, a luta por um sonho, mas que traz consigo outro tipo de lições, lembrando que tudo na vida pode ser uma lição e que em tudo há obstáculos e superação. A história pode ser simples, mas a mensagem é muito pertinente. E acaba por ser isso o mais importante.
Tudo somado, fica uma impressão global claramente positiva, de uma leitura leve e bastante simples, mas também muito cativante. Uma viagem pessoal, em suma, mas com muito com que nos podemos identificar.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

A Assembleia das Mulheres (Zé Nuno Fraga)

Atenas está à beira do abismo... outra vez. E, por mais que os homens discutam, conspirem e se desentendam, não parece haver solução à vista. Eis, pois, que as mulheres decidem deitar mãos à obra e, disfarçadas de homens, intervir na assembleia a fim de promover uma mudança de regime. E que mudança! Pois nada ficará como estava, desde as leis da propriedade às relações íntimas. Mas será assim tão simples mudar todo um sistema? É claro que não.
A primeira coisa que importa dizer sobre este livro é que, embora tratando-se da adaptação de um clássico - e, ao que tudo indica, de uma adaptação que segue literalmente o texto - não é preciso conhecer a obra de Aristófanes para apreciar a leitura. Até porque, uma vez que segue o texto original, chegamos ao fim a conhecê-la! Mas tendo isto em vista, a principal qualidade e a primeira a destacar-se terá necessariamente de ser a capacidade da obra de dar vida e cor a um texto que, sendo da origem que é, tem naturalmente os seus floreados.
E por falar em vida... Importa também salientar que é de comédia que se trata e que não faltam extravagâncias e bizarrias ao longo de tudo o percurso, ao ponto de ficar sempre uma sensação de estranheza recorrente. Mas, mais do que estranheza - e, oh, se há momentos estranhos - fica um humor também singular, que ganha vida não só na peculiaridade das circunstâncias, mas sobretudo na arte e nas suas expressões e rostos particularmente vincados (principalmente num certo episódio lá mais para o fim).
É surpreendentemente breve - ainda que, uma vez que segue o texto original, talvez não houvesse muito a fazer a esse respeito. É inevitável uma certa curiosidade insatisfeita quando às possíveis consequências a longo prazo desta tão particular mudança de regime. Mas é também particularmente marcante que esta comédia grega consiga ser, por vezes, tão actual, sobretudo em certas ponderações sobre o mundo da política.
Breve, mas muito surpreendente, trata-se, pois, de uma adaptação que, mais do que despertar curiosidade para o original, o transpõe para uma forma mais viva e visual. Cativante, divertida e, a espaços, inesperadamente certeira,  uma muito interessante reformulação.

domingo, 13 de dezembro de 2020

Armazém Central: Confissões | Montreal (Régis Loisel e Jean-Louis Tripp)

Notre-Dame-des-Lacs é um lugar de hábitos fortemente enraizados e de um sentido de comunidade tão sólido quanto... complicado. Existe um conjunto de convenções sociais, de expectativas, por assim dizer, e é por isso que todos esperam de Marie e de Serge que... regularizem as suas vidas e se casem. Só que Serge tem um segredo e só há uma forma de contornar. Quanto ao coração de Marie, terá de o aceitar. O problema é que essa aceitação pode assumir a forma de comportamentos precipitados... e as normas da comunidade podem subitamente tornar-se demasiado pesadas para suportar.
Uma das primeiras coisas que importa dizer sobre este livro é que, correspondendo aos volumes quatro e cinco da série, implica a existência de uma história prévia que, para quem começa por aqui, é totalmente desconhecida. Não é, ainda assim, essencial, porque as linhas gerais são-nos descritas no início e a evolução é bastante específica destes volumes. Ainda assim, e tendo em conta a envolvência do livro, é inevitável não chegar ao fim com uma certa vontade de descobrir também o que está para trás.
Outro aspecto notável não é propriamente fácil de descrever. Sendo essencialmente composto de histórias do quotidiano - e de um quotidiano de local pequeno - não há, à partida, grandes acontecimentos. (Ou, pelo menos, num sentido dramático). Mas há o que são grandes acontecimentos na vida individual de cada um. Amizades, amores, afectos, aproximações, perdas, chegadas, partidas, mortes. E há algo de tão natural e de tão estranhamente intenso neste percurso que, ao longo da leitura, há momentos em que o coração fica estranhamente apertado - ainda que não seja fácil dizer porquê. E um livro que desperta emoções tão profundas - ainda que ligeiramente incognoscíveis - só pode ser bom. Certo?
Em termos visuais, sobressai um aspecto geral e uns quantos pontos particulares. Numa perspectiva mais geral, sobressai a amplitude dos cenários e a forma como, nos seus contrastes, reflectem o pequeno mundo à parte que serve de base a estas histórias. A um nível mais específico, sobressaem as expressões de certas personagens (principalmente aquando de uma ou outra revelação mais drástica), os ocasionais sorrisos que parecem reflectir na perfeição a aura do ambiente e uma pequena - mas deliciosa - dose de fofura na forma de três animais recorrentes e da suas tropelias.
Da comunidade e dos seus dramas. Das convenções e do peso que às vezes têm. E, acima de tudo, de grandes corações numa pequena aldeia. De tudo isto é feito este Armazém Central - e tudo isto o torna memorável. Visualmente marcante, cativante na história e surpreendentemente poderoso nas emoções que desperta, uma belíssima surpresa em todos os aspectos. E uma história a acompanhar.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

A Velha Guarda, Livro Um: Abrir Fogo (Greg Rucka e Leandro Fernández)

Já viram mais batalhas do que as que conseguem contar e em muitas delas olharam a morte nos olhos. Mas não conseguem morrer... por mais que os matem. Não sabem porquê, não sabem como funciona, não podem transmiti-lo a ninguém e a única coisa que sabem ao certo é que, quando surge alguém como eles, a sua presença manifesta-se em sonhos até o conseguirem encontrar. Mas terem vivido milénios não significa que seja fácil adaptarem-se ao novo mundo. E há quem suspeite da sua existência... e queira usá-los para os seus próprios fins.
Provavelmente o que este livro tem de mais impressionante é a forma como consegue abordar temas tão potencialmente introspectivos como a passagem do tempo, a mortalidade (bem... ou falta de), a lealdade e a sempre intemporal amizade numa história que está, apesar de tudo isso, carregadinha de acção. Não faltam cenas intensas, caos, morte em grande escala (e repetida), explosões e movimento em geral. É, aliás, o aspecto mais marcante em termos visuais, pois, tendo como base um grupo que já assistiu e travou inúmeras batalhas, é particularmente importante que as que surgem neste livro sejam também memoráveis.
É também o ponto de partida para um contraste poderoso, já que se, de um lado, estão os conflitos constantes, sejam eles missões planeadas ou o resultado de uma traição, do outro estão conflitos mais íntimos, como a apatia da vida demasiado longa (em contraposição ao instinto de sobrevivência, por assim dizer) e a percepção de que tudo - e todos - têm um preço. Há, pois, como que uma força emocional que, inicialmente secundária à acção, vai ganhando intensidade e reforçando os laços, ao ponto de, no fim, estas personagens parecerem já velhos conhecidos (apesar de ser apenas o primeiro volume).
E ainda um outro equilíbrio, entre estranheza e naturalidade. Afinal, estamos a falar de personagens que não podem morrer - e que o demonstram sucessivamente - o que é, por si só, peculiar. Mas, mais do que isso, há as relações complicadas, a amizade de séculos (mas não de pedra), as declarações de amor nos cenários mais improváveis e um ocasional sentido de humor estranhamente fascinante. Tudo é singular, à sua maneira, mas o que começa por ser estranheza vai ganhando força e gerando proximidade. E vontade de saber mais.
Ao fim do primeiro volume, ficam duas fortes impressões: a de uma estranheza que se tornou fascínio e a de um núcleo de personagens que, apesar da sua singularidade, se tornam absurdamente familiares. Junte-se a estas duas uma boa dose de acção, vários momentos dramáticos e muitas surpresas pelo caminho e o resultado resume-se numa palavra: memorável.

domingo, 6 de dezembro de 2020

O Peixinho que Não Sabia Nadar e outras histórias... (Onofre dos Santos)

Um peixinho que, nos seus primeiros instantes de vida, não consegue aprender a nadar sozinho - e que conta com uma ajuda inesperada. Uma pequena árvore que quer crescer e ver o sol - sem saber as consequências que isso implica. E um cãozinho muito estranho - mas, à sua maneira, mais que perfeito. São estas as linhas de partida para as três histórias que compõem este livro: um livro que, embora nitidamente pensado para os mais novos, facilmente consegue cativar leitores adultos.
Provavelmente o aspecto que mais surpreende neste livro é que, sendo um livro pensado para crianças, o registo da escrita consegue, ainda assim, adoptar uma certa profundidade. A história do peixinho, que é também a história de um avô a contar essa história à neta, é simultaneamente o nascer de uma nova vida, uma aventura perigosa e uma recordação de que também a vida termina. Já a da árvore vai ainda mais longe nesta percepção da mortalidade. E, assim, surpreende este lado menos sonhador das coisas que, contrastando com a inocência geral da história, lembra à magia da infância que tudo é possível... mas tudo termina.
Não quer isto dizer que seja um livro triste. Muito pelo contrário. O entusiasmo da pequena Leonor com a história do peixinho - e o da outra pequena Leonor com o seu «cãozinho» - vem acrescentar um rasgo de leveza a este registo mais sério. Além disso, há um carpe diem para cada memento mori. E a lembrança da mortalidade nestas histórias é também um elogio à vida e as coisas que realmente importam.
Importa salientar, por último, dois pontos que contribuem para este equilíbrio delicado: as ilustrações, que dão vida aos acontecimentos, e a escrita, por vezes surpreendentemente poética, mas marcada sobretudo por um registo tão próximo que é quase como ouvir uma voz a contar a história.
O que fica da soma das partes é, pois, uma leitura breve, mas surpreendentemente profunda e com um poderoso equilíbrio entre inocência e realismo. Bom para fazer sonhar - e para lembrar a realidade - um belo conjunto de histórias para pequenos e grandes leitores. Muito bom.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Mulheres sem Medo (Marta Breen e Jenny Jordahl)

Em cento e cinquenta anos, muito mudou no que diz respeito aos direitos das mulheres, o que não significa que todo o trabalho esteja já feito. Em alguns países, há, na verdade, um longo caminho a percorrer. Mas conhecer o longo caminho já feito - e as suas protagonistas - é um bom ponto de partida para reflectir sobre o tema. Além disso, muito há a aprender com estas mulheres sem medo, aquilo por que decidiram lutar e a coragem que foi necessária para o fazer.
Um dos primeiros aspectos que importa destacar acerca deste livro é a acessibilidade do formato, que, além de resultar num livro visualmente bonito, permite que seja lido por leitores de todas as idades. E, tendo em conta o tema, começar a ler cedo sobre o assunto é sempre pertinente - além, claro, de muito interessante. Partindo de um conjunto de figuras centrais - as tais mulheres sem medo que dão nome ao livro - traça não só a história das suas vidas e lutas, mas também uma visão da evolução dos direitos das mulheres e da forma como estes continuam ainda a ser, em certos locais e contextos, mais discutíveis do que deveriam. É, pois, simultaneamente uma leitura leve e carregadinha de matéria para reflexão.
Outro ponto que importa naturalmente destacar é a arte, nomeadamente em dois aspectos: primeiro, os rostos e expressões, que, representando figuras reais, se mantêm fiéis à sua inspiração, mostrando também um estilo próprio que é comum a todo o livro; e segundo, os jogos de cor, que parecem ajustar-se aos ambientes e sobretudo, no caso dos vermelhos, às tensões que retratam. É como se as próprias imagens reflectissem emoção, puxando-nos mais a fundo para a história das suas notáveis protagonistas.
E é, claro, um livro que não se esgota em si mesmo. Cada uma destas figuras - bem como os seus movimentos - tem uma história mais ampla, sobre a qual é difícil não querer saber mais, o que significa que este livro funciona também como um belíssimo ponto de partida para outras investigações e leituras. Afinal, o tema é vastíssimo e cada uma destas mulheres é uma inspiração.
Leve e cativante, mas repleto de material para reflexão, além de notável pelas suas protagonistas, trata-se, pois, de uma belíssima leitura para conhecer a evolução dos direitos das mulheres e as muitas mulheres sem medo que travaram - e continuam a travar - essa luta. Um livro a ler - e reler - por todos.