quarta-feira, 31 de março de 2021

O Livro dos Segredos (Kahlil Gibran)

A vida é feita de segredos. Dos mistérios de como o mundo funciona ao eterno enigma do que há do outro lado da morte, passando pelos pequenos segredos de como lidar com as sombras do quotidiano e de como encontrar algo em que acreditar, em tudo há mistérios e enigmas, labirintos mentais e espirituais. E não há respostas absolutas, ou pelo menos não as conhecemos, caso contrário não seriam segredos. É sobre todos estes segredos e sobre as teias em que eles se tecem que fala este breve, mas muito cativante livro.
Algo que importa começar por referir acerca deste livro é que, tal como O Livro da Sabedoria, é uma antologia de textos pertencentes a várias obras do autor. Quer isto dizer que não há uma ligação absoluta entre todos os textos, que vão de histórias mais ou menos espirituais a poemas que, em poucos versos, descrevem todo um mistério, mas antes uma ligação temática. Quanto às figuras, há encontros com figuras familiares (principalmente para quem já tiver lido o Profeta), mas sobretudo imagens que reflectem uma espécie de arquétipo. E, assim, embora pertencentes a obras distintas, formam um todo coeso, quase como se tivessem sido pensadas para assumir esta forma.
Outro aspecto marcante é a simplicidade aparente dos textos, ao ponto de, nalguns deles, parecer que é mais o que fica por dizer do que o que é efectivamente dito. Ainda assim, do ponto de vista da mensagem, todos parecem ter a medida certa e há alguns que têm um impacto particularmente intenso. Além disso, a diversidade de vozes e de figuras faz com que haja de tudo um pouco em termos de sentimentos e pontos de identificação. E alguns dos textos são muito difíceis de esquecer.
Claro que há em tudo isto um aspecto espiritual, mas também aqui há um ponto particularmente interessante: não há um único sistema de crenças dominantes, mas uma convergência de múltiplas visões para uma perspectiva mais global da espiritualidade. Não importam realmente quais os deuses ou os mestres seguidos. Importa a mensagem e que esta seja bem interpretada. E é isso, acima de tudo, que fica desta leitura: uma visão espiritual de amor, de alegria e de bondade, de júbilo mesmo nos momentos de sombra. E não é esse o maior segredo de todos?
Simples na forma, mas vasto no conteúdo e envolvente na mensagem, trata-se, pois, de um livro que é simultaneamente leve e profundo, cativante e cheio de matizes na sua abordagem aos mistérios da vida. Feita de diferentes imagens, mas que formam um todo equilibrado e envolvente, uma leitura memorável.

segunda-feira, 29 de março de 2021

O Amigo (Sigrid Nunez)

Confrontada com a perda do seu mentor e amigo da mais inesperada das formas - por decisão pessoal -, uma mulher solitária vê-se face à força do seu próprio luto e em busca de uma forma lidar com tudo: com as memórias, com a saudade, com tudo o que ficou por explicar. Mas vê-se também com algo de novo pela frente. É que o seu amigo deixou para trás o seu próprio amigo - um grand danois chamado Apollo - e agora alguém tem de tomar conta dele. Na presença deste companheiro silencioso, a mulher encontrará um receptáculo para as memórias, uma companhia para as suas meditações e um laço que persiste depois da morte. Mas que não é eterno... até porque nunca os são.
Desengane-se quem espera deste livro a habitual história ternurenta de uma mulher com o seu cão e de como o companheirismo fez da vida e do mundo (ou do seu mundo pessoal) um lugar melhor. Não é que não tenha um pouco desses aspectos, e é bem verdade que Apollo é uma das grandes forças motrizes deste livro, mas a história não é só a de uma amizade entre um ser humano e o seu canídeo. É uma história de amizade humana perdida, de perdas inesperadas, de como lidar com o luto, resistindo, persistindo ou simplesmente suportando e de como encontrar formas de esbater um pouco a tristeza. E, claro, é também uma história sobre a leitura e a escrita, ou não fosse a protagonista uma escrita - tal como o seu amigo perdido.
Tendo tudo isto em vista, há algo que é inevitável: é uma história de fortíssimo impacto emocional. É fácil sentir as saudades, a tristeza, a incompreensão e a perda que, ao longo deste percurso, rasgam a vida da protagonista. E é ainda mais impressionante por ser uma história tão humana: nenhuma das personagens (humanas, porque Apollo é um caso à parte) é propriamente imaculada em termos de comportamentos, decisões ou escolhas. Todas são, a espaços, moralmente ambíguas, seja por comportamentos mais dúbios ou por mero pretensiosismo. E, ainda assim, é fácil compreender os laços, sentir a proximidade entre duas pessoas de quem podemos não gostar muito, mas que gostam claramente uma da outra. E, se juntarmos a isto a constante e pesada presença da morte, é simplesmente difícil não sentir.
Mas olhemos ainda para um outro aspecto: a relação das personagens e do próprio percurso com o mundo dos livros e da escrita. Há momentos enternecedores, como quando a protagonista lê para Apollo, reflexões surpreendentemente certeiras e até uma crítica estranhamente precisa a certos preconceitos vigentes no mundo literário (todos conhecemos a visão de que o verdadeiro escritor é o escritor atormentado, a de que a literatura se está a deteriorar e outras perspectivas similares) na forma do protagonista ausente. E há também muitas, muitas frases memoráveis, visões que nos ressoam no pensamento, ideias que, em poucas palavras, ganham vida e que parecem perfeitas. Também aqui há ambiguidade - mas o tipo de ambiguidade que faz sentido. Afinal, se na vida real nada é fácil, porque haveria de o ser na vida literária?
Somadas todas as facetas - vida e morte, realidade e literatura, humanos e canídeos - deste livro, o que fica é uma visão de contrastes: pausado mas fascinante, introspectivo mas cheio de intensidade, transbordante de vida, apesar de feito de morte e de perda. E tudo isto lhe dá vida e o grava aos poucos na memória. De onde parece não querer sair tão cedo...

sábado, 27 de março de 2021

O Despertar do Nefilim - A Batalha dos Caídos (David Costa)

O plano está em marcha. O Apocalipse está próximo. E Gonçalo aceitou finalmente o seu destino e a certeza de que só o poder que lhe corre nas veias pode fazer alguma coisa para o impedir. Sofreu grandes perdas, mas desferiu também um grande golpe nas hostes de Lúcifer. E agora precisa de retomar a busca, de encontrar as partes da espada do seu antepassado para assim poder tomar plena posse do seu poder. Só que ele não é o único a ter planos. E, se os demónios parecem ter abrandado um pouco para lamber as feridas, a verdade é que nem todos seguem as mesmas ordens. E também do suposto lado do bem há intrigas e planos pouco... angelicais.
Uma das primeiras coisas que importa referir sobre este segundo livro é que é uma continuidade directa do anterior, o que significa que é importante ler o primeiro antes de avançar para esta fase da história, pois foi aí que as diferentes peças começaram a assumir as suas respectivas posições. E sendo a continuação da história anterior, há também um aspecto que se desde cedo se torna evidente: a forma como as qualidades do primeiro livro são aqui potenciadas e expandidas ao alargar a história para outros planos e intrigas. Mantém-se a intensidade viciante, a acção entrelaçada em momentos de emoção e até, ocasionalmente, de humor, a escrita envolvente e a capacidade de surpreender. Mas tudo isto é ampliado, com novas figuras a entrar em cena, planos a revelar-se mais intrincados do que pareciam e uma curiosamente fascinante ambiguidade moral vinda sobretudo dos lados do céu.
Há também um percurso de crescimento pessoal no que diz respeito às personagens - sobretudo Gonçalo e Sandra, obviamente. As dúvidas e os dilemas, os momentos difíceis e o laço emocional que começa a crescer conjugam-se com o peso do destino e da responsabilidade para criar um comportamento mais ponderado, ainda que sempre com a presença dos inevitáveis rasgos emocionais, ou não fosse a perda uma parte tão grande do percurso de Gonçalo. Este crescimento torna as personagens mais próximas e reforça a intensidade dos momentos mais emotivos.
Mas, embora seja o protagonista, a história está longe de se cingir a Gonçalo. Há coisas a acontecer no céu e no inferno, fantasmas do passado que voltaram para assombrar os envolvidos, decisões passadas cujas consequências começam agora a manifestar-se, e intrigas... muitas intrigas. Quer isto dizer que não faltam surpresas e reviravoltas, não só no percurso individual de Gonçalo, mas também no que toca às outras forças em jogo. E, entre as surpresas e os momentos marcantes, é muito difícil não querer saber o que acontece a seguir. Até porque... a história não acaba aqui.
Cheio de surpresas, de intensidade, de intriga e de emoção, trata-se, pois, de um segundo volume que corresponde inteiramente às altas expectativas deixadas pelo primeiro. Uma história de anjos e demónios - e de seres humanos, sobretudo - onde nada é o que parece e tudo pode acontecer. Muito bom.

quarta-feira, 24 de março de 2021

O Fato Novo do Sultão e Outros Contos (Guerra Junqueiro)

Há histórias que nos transportam directamente para a infância, de tão familiares que são. São também histórias que já foram contadas e recontadas mil vezes - Capuchinho Vermelho, Branca de Neve e a história que dá titulo a este livro e que muitos conhecem pela célebre expressão que diz que o rei vai nu. Mas se essas histórias são intemporais e tão infinitamente repetidas, por alguma razão deve ser. E essa razão pode muito bem ser que nunca deixam de cativar - por mais vezes que tenham sido lidas, por muito longe que a infância esteja lá.
Uma das primeiras coisas que importa salientar sobre este livro é a capacidade de dar um toque de diferença a um conjunto de histórias mais do que familiares. Refiro-me às ilustrações, claro, e à forma como, num estilo muito simples, dão vida própria e traços distintivos a personagens e momentos que todos estamos fartos de conhecer. E é este o primeiro ponto a favor deste agradável regresso: tudo é conhecido, mas não deixa de ter o seu quê de novo.
São também histórias muito breves e das quais é bem possível que conheçamos pelo menos uma versão alternativa - até porque são histórias tradicionais. Ainda assim, também esta familiaridade é positiva, e o mesmo se aplica à simplicidade. É como regressar ao tempo em que a mais simples das histórias nos fazia imaginar mundos inteiros. Voltar a tempos mais simples. E se, para um leitor adulto, é esta nostalgia o que mais se destaca, importa salientar que é também uma belíssima forma de apresentar aos mais novos algumas das histórias com que crescemos.
Ah, e claro, há as lições de moral, tão características deste tipo de histórias tradicionais. Todos as conhecemos, certo? A importância da honestidade, da prudência face a desconhecidos, de seguir as instruções de quem sabe mais do que nós... Também isto nos é familiar, mas não deixou de ter importância uma vez passada a infância. Por isso, é sempre bom recordar, ainda que desta forma simples e improvável. (Mas não nos parecia improvável da primeira vez, pois não?)
Regresso à infância e a quando tudo era possível, reencontro com a simplicidade das primeiras histórias e possibilidade de as transmitir a uma nova geração de pequenos leitores: tudo isto faz parte deste pequeno e cativante livro de contos. Perfeito para despertar nos mais novos o gosto pela leitura - e para nos recordar que o poder das histórias persiste... mesmo quando já deixámos de ser assim tão novos.

segunda-feira, 22 de março de 2021

Uma Viagem Difícil (Jenni Hendriks e Ted Caplan)

Veronica Clarke tem uma vida perfeita. Aos dezassete anos, é a melhor aluna da escola, tem um namorado popular, um bom grupo de amigas e entrada garantida na sua universidade de eleição. Mas tudo isso pode muito bem estar prestes a desabar, pois acaba de descobrir que está grávida. Vendo a sua vida a desfazer-se em instantes, rapidamente percebe que a sua única opção é o que até então viu como inimaginável: fazer um aborto. Mas não tem carro, os pais não podem saber, o namorado agiu premeditadamente de forma a provocar a gravidez e as amigas rapidamente se voltariam contra ela. Resta-lhe a mais improvável das opções: Bailey Butler, o alvo de toda a escola e a sua ex-melhor amiga. Mas estará Bailey disposta a ajudá-la?
Provavelmente a maior surpresa neste livro é a sua capacidade de abordar um tema sério de forma lúcida e eficaz, construindo ao mesmo tempo em seu redor uma história leve e divertida. Há até episódios que chegam a ser improváveis, o que causa por vezes uma certa estranheza, mas o que realmente se destaca é a forma como a viagem de Veronica e Bailey realça as questões sérias e as  transporta para o mundo real - quase ao mesmo ritmo em que se tornam reais para a própria Veronica.
A própria construção das personagens realça este equilíbrio e a abordagem racional ao que é, ainda que não o único, o tema principal. A família de Veronica é religiosa, tal como a própria Veronica, o que significa que a protagonista tem mais algumas questões extra com que se preocupar. Além disso,  a questão do aborto não é o único tema sério nesta história. A pressão social, os perigos do fundamentalismo e as relações entre pais e filhos fazem também a sua aparição neste livro. E, em contrapartida, não faltam momentos de leveza, desde a subida a uma vaca gigante à promessa de uma muito desejada visita a Roswell. E, claro, tendo em conta que nada segue pelo caminho fácil... não faltam imprevistos e momentos surpreendentes.
E, voltando aos contrastes e equilíbrios, importa salientar ainda que, nesta mistura de assuntos sérios e episódios caricatos, há também espaço para episódios de grande emoção, até porque, no cerne desta viagem difícil, está também uma amizade que se quebrou e a possibilidade de reparação. Às vezes, é nos grandes momentos que a emoção se manifesta. Outras, é quando as personagens dizem algo sério a brincar. Mas há sempre um equilíbrio entre a emoção e o humor, e também isso faz parte do que torna esta leitura tão viciante.
É uma leitura leve, mas a que não falta emoção e intensidade. Fala de um assunto sério, mas constrói vida para lá do problema central. E é improvável, às vezes, mas nunca deixa de cativar e surpreender. Somadas todas as facetas, só pode ficar uma impressão: a de uma boa leitura.

sexta-feira, 19 de março de 2021

Woke - Um Guia para a Justiça Social (Titania McGrath)

Titania McGrath é uma activista de causas. De todas as causas. E a sua forma de lutar por aquilo em que acredita é através do que considera ser um estilo de poesia brutalmente inovador, de uma actividade online que visa eliminar o discurso de ódio - nem que isso signifique eliminar o discurso, ponto final - e de uma visão do mundo que é a ideia de "woke" levada ao mais extremo dos extremos. Titania McGrath não existe, sendo obviamente a protagonista de uma sátira. Mas, com os seus exageros, consegue chamar a atenção para vários temas importantes - e para a forma como eles são abordados.
A primeira palavra que importa usar para descrever este livro é obviamente exagerado. E exagerado de forma absolutamente premeditada, como se nota por muitas das observações da "autora". Para quem acompanha as discussões sobre o que é geralmente agrupado sob o termo "causas fracturantes", não é propriamente uma novidade que às vezes há exageros, atitudes mais extremas e comportamentos que chegam a ser contraproducentes. Bem, tudo isto se reflecte em Titania McGrath, ao ponto de ser difícil, às vezes, reconhecer quantas das ideias vêm do seu muito evidente exagero e quantas foram inspiradas em atitudes reais.
Claro que há um aspecto delicado a ter em conta: é que também há questões nestes debates controversos que são automaticamente descartadas como "exageros" por quem preferia que quem luta pelos seus direitos ficasse quieto e calado. E, às vezes, o exagero não é assim tão exagerado. Não parece, ainda assim (e apesar das ambiguidades resultantes de se tratar de uma sátira), que o objectivo deste livro seja ridicularizar as causas, mas sim fazer reflectir sobre o necessário equilíbrio. Além disso, as ideias da protagonista são, regra geral, suficientemente estranhas para que seja difícil confundi-las com uma posição real.
E, por falar em estranheza... Além dos capítulos dedicados a cada uma das causas desta personagem, este livro inclui também um curioso conjunto de poemas da mesma, que, além de reforçarem a estranheza global, criam um contraste estranhamente intrigante. É que, muito à imagem da postura da "autora", também os poemas têm um óbvio factor choque - com rasgos bizarros e macabros a contrastar com a leveza improvável do texto.
Fica, pois, uma impressão curiosa: a de um livro divertido e caricato - além de manifestamente exagerado - mas capaz de fazer reflectir sobre temas pertinentes e sobre o necessário equilíbrio na luta pelo que se pretende que seja um mundo melhor para todos. 



NOTA: Se ficaram curiosos, ainda podem aproveitar a pré-venda no site da Guerra e Paz - https://bit.ly/3bwJKCF - até ao dia 20 deste mês. E não se esqueçam de indicar o nome do blogue nas notas. :) 

quarta-feira, 17 de março de 2021

Get Jiro - Sangue e Sushi (Joel Rose, Anthony Bourdain e Alé Garza)

Antes de se transformar num irascível chef de sushi, Jiro teve outra vida - e outra forma de dar uso aos seus talentos com a lâmina. Teve uma vida antes de ir parar à América, onde ocupava uma posição de poder numa família tão disfuncional como aparentemente coesa - como convém às famílias que se dedicam aos ramos mais... obscuros da vida. Mas algo aconteceu que fez com que tudo mudasse e com que o sonho de Jiro se tornasse na única alternativa. O quê? Bem... a resposta está neste livro.
Dedicado à história de Jiro antes de se dedicar totalmente ao sushi, ainda que seja uma paixão já presente nesta parte da história, este livro não se centra tão exclusivamente na faceta culinária da vida de Jiro, já que, embora envolvendo também negócios e violência, estes dois aspectos têm uma abrangência muito mais global. Além disso, o percurso familiar de Jiro na máfia acrescenta uma faceta diferente a esta história: a das relações familiares, com conceitos de honra e compromisso (mesmo em negócios obscuros e mortíferos) e sonhos barrados pelo peso da expectativa. É mais fácil compreender o jovem Jiro do que aquele que ele se tornará depois - ainda que a sua posição nunca deixe de ser, no mínimo, moralmente ambígua.
Sendo uma história de sangue e sushi - mais sangue que sushi, na verdade - implica também luta e violência, o que visualmente se reflecte em cor e movimento. Movimento não falta, de facto, e o vermelho predomina em grande parte do livro. Há, aliás, longos momentos em que o texto fica para um óbvio segundo plano, deixando à arte o papel de contar a história das lutas, das perseguições e das mortes. E há-as em tão grande número que é impossível não ficar com a impressão de que os outros aspectos acabam por ser abreviados para dar destaque a estes grandes momentos.
Há ainda um outro ponto curioso a destacar: o ambíguo e cativante impacto emocional. Nenhuma das personagens principais é propriamente do tipo que desperta uma empatia profunda - nem mesmo o próprio Jiro. Ainda assim, têm os seus momentos. E se Jiro tem realmente as suas ambiguidades, ainda que também um sentido do correcto bastante razoável, já as pessoas que lhe são mais próximas geram uma sensação de lealdade verdadeira que contrasta com a dos seus laços familiares. Assim, nem sempre é fácil sentir pelas personagens. Mas as emoções não deixam, ainda assim, de ser fortes.
Deixa sentimentos ambíguos - até porque é ambíguo por natureza. Mas não deixa, ainda assim, de ser uma leitura cativante, cheia de movimento de intensidade e com alguns momentos realmente brilhantes. Uma boa leitura, em suma, e um bom complemento à história do que veio depois.

segunda-feira, 15 de março de 2021

Vamos Ler! Um Cânone para o Leitor Relutante (Eugénio Lisboa)

Quem tem o hábito de ler regularmente (ou até, quem sabe, compulsivamente) sabe bem todos os benefícios e prazeres que acompanham a leitura. Quem não lê? Bem, quem não lê não sabe o que está a perder. Mas como se desperta o leitor relutante para o vício da leitura? Com leituras capazes de cativar e fascinar claro. E é isso que este livro se propõe fazer: reflectir sobre o maravilhoso mundo da leitura e sugerir uma lista de iscos para caçar quem (ainda) não gosta de ler.

Permitam-me começar com uma afirmação óbvia: esta que vos escreve não é uma leitora relutante. O que significa que não preciso de ser persuadida e que até já li algumas das obras referidas na lista e ao longo do texto. O que retira então deste livro um leitor não relutante? Várias coisas. Primeiro, familiaridade com a descrição da paixão pelos livros, com algumas impressões em comum sobre vários dos livros abordados e com a visão, com o que a leitura desperta e significa. Depois, a sempre cativante proximidade que resulta da partilha pessoal das experiências de um outro leitor, diferentes, intransmissíveis, mas unidas pelo vínculo do vício em comum. E, finalmente, uma mistura de reencontros e descobertas, reencontros com autores já lidos e descobertas de outros livros ainda por ler. (E todos sabemos que, para quem ama a leitura, há sempre uma lista interminável de desejos.)
Mas voltemos aos leitores relutantes, pois importa salientar dois aspectos tendo em vista que é a eles que esta selecção se destina. Primeiro, o cuidado em escolher uma lista acessível, de obras importantes, mas sobretudo cativantes e relativamente fáceis de encontrar, e que é também complementada por outras referências. É uma lista que se cinge a autores portugueses, mas que vem acompanhada no texto por várias menções a outros autores mais ou menos clássicos (alguns adorados e outros odiados). E segundo, a importância de ter em conta o conforto do potencial leitor, pois apresentar a um leitor relutante um livro demasiado difícil e rebuscado é meio caminho andado para o afastar.
Claro que cada leitor (mais ou menos agarrado ao vício) tem as suas próprias predilecções e manias, daí que fique uma ligeiríssima ambiguidade ao ver a breve referência à palavra lixo. Ainda assim, cada leitor terá o seu discernimento e o que importa realmente é a descoberta da leitura. Porque, ultrapassada a barreira da relutância... há todo um mundo para descobrir.
Um cânone para o leitor relutante - que é também percurso pessoal, elogio da leitura, breve biografia de vários vultos literários e visão de um mundo que é infinitamente mais vasto do que parece. Tudo isto e também uma leitura cativante e próxima, para leitores frequentes e raros, relutantes e viciados. Vamos ler? Vamos, pois. E podemos muito bem começar por aqui.

sábado, 13 de março de 2021

Falar Verdade a Mentir (Almeida Garrett)

Antes de autorizar definitivamente o casamento da sua filha Amália com o seu noivo, Duarte Guedes, o senhor Brás Ferreira quer certificar-se da idoneidade do seu futuro genro. Só que Duarte tem um problema: não consegue parar de mentir, e o seu possível sogro está decidido a cancelar tudo se o apanhar numa mentira que seja. Felizmente, Duarte e Amália contam com dois aliados poderosos e, mesmo involuntariamente, Duarte vai descobrir que mentir é mais trabalhoso do que julga. Principalmente quando todos conspiram para que o que ele diz seja verdade.
Parte do que torna cativante um regresso a esta história é notar a diferença entre as impressões de uma leitura sequencial e sem dissecações de estrutura (não querendo, ainda assim, menosprezar a importância dessa análise) e a abordagem meticulosa da leitura em contexto escolar. Além, claro, de ironias que se tornam mais fáceis de entender com um olhar mais adulto. Em todo o caso, ler esta peça pelo simples prazer de a ler torna a leitura mais leve, o que, tendo em conta que se trata de uma comédia, é inevitavelmente positivo.
Pondo de parte os contrastes entre leituras diferentes, destacam-se duas coisas: a brevidade e (obviamente) o humor. A brevidade é natural, uma vez que se trata de uma peça de teatro. E ainda que, lida neste formato, deixe a vaga sensação de que mais haveria a dizer sobre estas personagens (a começar, desde logo, pela relação de Félix e Joaquina), a impressão que fica é sobretudo de que é muito fácil imaginá-la em palco, onde terá certamente um impacto maior.
Quanto ao humor, sobressaem as tiradas irónicas e a forma como toda a peça transmite uma belíssima lição de moral sem, contudo, soar maçadora ou moralista. Talvez as próprias circunstâncias contribuam para isso (com os pensamentos de Félix sobre o dote e as labirínticas mentiras de Duarte a proporcionarem alguns rasgos geniais). Mas também sempre se disse que a melhor forma de ensinar é pelo exemplo, e... bem... Duarte é, sem dúvida, bem ensinado.
Muito breve, mas cativante e sempre actual, eis, pois, uma leitura leve e divertida sobre os problemas da mentira e as formas imprevisíveis da verdade. E um livro que todos conhecemos da escola, mas a que vale sempre a pena regressar.

quinta-feira, 11 de março de 2021

Um Tambor Diferente (William Melvin Kelley)

Tucker Caliban, descendente de um escravo rebelde cuja reputação se tornou lenda e cujos descendentes passaram as suas vidas inteiras a trabalhar para os Willson, sempre foi visto como inofensivo, ainda que com um temperamento singular. Mas isso acabou. Um dia, sem que nada o pareça explicar, decide salgar as terras, abater os seus animais, pegar fogo à sua casa e partir com a família. Um caso estranho. Um acesso de loucura, talvez. Mas, nos dias seguintes, todos os negros da região começam também a deixar tudo para trás, sem explicação, sem motivos, rumo ao norte ou a outro sítio qualquer. Para trás, ficam os brancos, perplexos, desconcertados, tentando entender o porquê. Mas, enquanto uns se agarram às memórias e descobrem sinais do inevitável, outros revoltam-se e apontam culpados... tornando-se eles mesmos a imagem do porquê.
Tendo em conta a importância do tema e as inevitáveis situações sombrias que lhe surgem associadas, não é propriamente difícil de prever que esta não será uma leitura leve. Mais surpreendente é a forma como a estranheza e o desconcerto iniciais, resultantes em parte da estrutura - pois a história da partida dos negros é vista essencialmente pelos olhos dos brancos que ficam - e em parte também da própria escrita, que dá múltiplas vozes à história, dão lugar a um crescendo de intensidade, que faz com que a história se vá tornando gradualmente mais pessoal até culminar num final devastador.
Outro ponto marcante é que desde  cedo que a história se assume como um enigma e chega ao fim sem dar respostas para tudo. Mas é marcante porque faz sentido que assim seja e o desconhecido torna mais reais estas vidas. Além disso, a história parte de uma lenda e avança, à sua maneira, para a formação de uma nova lenda, dando forma a um tipo de luta diferente, não necessariamente assumido e, em certa medida, pessoal, mas que reflecte, à sua estranha maneira, questões mais vastas e profundas do seu tempo.
Ainda um último ponto a destacar tem a ver como este percurso aparentemente individual reflecte questões mais globais. As aspirações falhadas, as revoluções que assumem formas inesperadas e a forma como tudo muda, para que, pelo menos para alguns, tudo fique na mesma, evocam paralelismos que vão muito para lá da acção e do período desta narrativa. A segregação e a escravatura - pelo menos, enquanto comportamentos legais - podem ter ficado para trás, mas os preconceitos e o combate a eles não acabou. Este livro é, pois, mais actual que nunca e é ainda mais pertinente pelo facto de ser tudo menos idealista.
Singular na voz, marcante na história, pertinente no tema; eis, pois, um livro que exige o seu tempo e que deixa a sua marca emocional. Mas, com tudo o que tem de complexo e de poderoso, deixa-se, sobretudo, a si mesmo, gravado na memória bem depois de concluído. E também isso é parte do que o torna tão bom.

quarta-feira, 10 de março de 2021

Pré-lançamento - Woke: Um Guia para a Justiça Social


Ainda estamos em confinamento, mas o mundo dos livros não parou. E uma das novidades que aí vem é esta e promete ser controversa. Parece promissor? Espreitem a sinopse. E, se ficarem curiosos, até dia 20, podem aproveitar esta pré-venda na loja da Guerra e Paz: https://bit.ly/3bwJKCF

Ah, e não se esqueçam de dizer que vão daqui, indicando o nome desta página - As Leituras do Corvo - nas notas no momento da compra.

WOKE é o retrato do delírio que invadiu uma legião de activistas, que julga querer bater-se pela justiça social.
Ricky Gervais afirmou tratar-se de uma «sátira maravilhosa». Quem é Titania McGrath, a sua autora? É uma «activista interseccional», seja lá o que isso for. Ela jura-nos que a justiça social se conquista juntando uma bandeira arco-íris no perfil do Facebook, ou intimidando quem diga desconhecer o significado de «não binário», ou chamando nazi a quem pense votar num partido conservador. Em suma: os que defendem a liberdade de expressão são criptofascistas. Mas será que Titania existe? Titania é a genial invenção do comediante Andrew Doyle, o verdadeiro autor de um livro que satiriza a loucura activista destes tempos. A loucura do fundamentalismo está presente em várias colorações da direita, como se viu com Trump, mas também tingiu fortemente uma certa visão da esquerda progressista que distorce o que é o progresso. A melhor forma de desconstruir o perigo do radicalismo é a sátira. Em WOKE assistimos à irrisão por absurdo das loucuras identitárias, do radicalismo feminista, e das extravagâncias de género, da deposição de estátuas e do cancelamento da cultura. É um livro político? É, garantimos, o livro cómico mais sério do ano.

segunda-feira, 8 de março de 2021

Spaghetti Bros (Carlos Trillo e Domingo Mandrafina)

Chegaram à América quando eram pequenos, após terem perdido a mãe durante a viagem. Mas a vida reservava muitos caminhos diferentes aos irmãos 
Centobucchi. Um tornou-se mafioso. Outro tornou-se polícia. Outro ainda tornou-se padre. E, quando às irmãs, uma tornou-se mãe de família enquanto outra se tornou atriz de filmes eróticos. Entre si, foram-se protegendo e atacando, escondendo e confessando. E, agora que são adultos, continuam a ter segredos. Uma coisa é certa: nenhum deles é um santo. E a vida que levam, entre o poder e o crime, é tão complexa quanto peculiar.
Um aspecto que desde muito cedo se destaca neste livro, e que nunca desaparece, nem mesmo quando as personagens começam a tornar-se familiares, é a mistura de estranheza e de fascínio que envolve esta família singular. Dadas as suas ligações e escolhas de vida, não é propriamente surpreendente a ambiguidade moral. Mas é esta ambiguidade moral que tão facilmente gera empatia como aversão e mantém vivo o equilíbrio entre a estranheza e a envolvência.
É que, com todas as peculiaridades e choques, até porque esta família não é propriamente composta por cidadãos cumpridores da lei, a leitura é, ainda assim, surpreendentemente leve. Talvez se deva, em parte, também ao aspecto visual, que, sem grandes elaborações em termos de cenário, consegue, ainda assim, ser de uma exactidão notável ao nível da expressão de emoções, mas vem, acima de tudo, do contraste emocional dos acontecimentos propriamente ditos. Há crime e brutalidade, ou não fosse um dos irmãos um mafioso sem escrúpulos... mas diga-se que não é o único com esqueletos no armário. E há também episódios surpreendentemente divertidos (muitos deles envolvendo uma cruz) que vêm acrescentar um toque de leveza a um percurso que é, na sua globalidade, bastante sombrio.
E há... bem, uma família, em toda a sua gloriosa disfuncionalidade. Os laços de protecção parecem estranhamente sólidos, tendo em conta algumas das decisões dos irmãos. E se há também princípios, no mínimo, duvidosos (e, mais uma vez, não só da parte do irmão mafioso), importa ter em conta a época e o meio em que esta história se passa e reflectir em muito do que, desde então, se tornou inaceitável.
Estranheza e fascínio, portanto, numa história estranhamente leve, apesar dos elementos de crime e crueldade. E uma história de irmãos que nem sempre são amigos, mas cujos caminhos diferentes não os conseguiram afastar. Pelo menos ainda...

sexta-feira, 5 de março de 2021

Diários de 1992 (Rosa do Rio)

A escrita de um diário pode assumir muitas formas, desde a descrição precisa de acontecimentos mais ou menos importantes à anotação de pensamentos e emoções, passando pelas meditações mais ou menos poéticas inspiradas por uma ou outra experiência. E pode ser tudo isto em simultâneo ou algo que não é bem nenhum deles. Neste caso, estes diários são ao mesmo tempo uma mistura de todos, pois surgem datas e locais, e até, por vezes, uma história, a contrastar com rasgos poéticos, associações de palavras e observações tão crípticas como certeiras. É um diário que, às vezes, podia ser poema... e outras parece abrir as portas a pensamentos que são simultaneamente singulares e familiares.
Não é fácil descrever este livro, até porque, feito em grande medida de fragmentos e impressões, vive mais das sensações e pensamentos que desperta do que de qualquer linearidade que possa existir. É um registo pessoal, porque é um diário, mas revela muito poucas características específicas, deixando antes rasgos de uma essência a apelar à imaginação. E, assim, não é transmitida uma história (ou quase, porque tem os seus momentos) mas sim uma visão de uma identidade que, apesar de algo críptica, se vai dando a conhecer aos poucos.
Tem uma voz muito própria, que é, aliás, o aspecto mais marcante. Uma cadência singular, onde tudo parece fazer sentido, mesmo quando as línguas estrangeiras vêm rasgar o texto e o pensamento é ambíguo ou evoca imagens estranhas. E, sendo certo que é um texto que vive tanto das interrogações como das respostas, até porque, como já disse, não há uma cronologia linear nem grandes descrições de acontecimentos, não deixa de ser impressionante como, às vezes, uma única frase projeta no pensamento uma imagem completa.
Críptico e singular, mas estranhamente próximo, trata-se, pois, de um diário que, apesar de pessoal, tem muito de transmissível. Pinta imagens com as palavras, e imagens que ficam na memória. E basta isso, no fim de contas, para que valha a pena descobrir este livro.

quarta-feira, 3 de março de 2021

Chapeuzinho Azul na Cidade Maravilhosa (Gladston Salles)

Chapeuzinho Azul é uma menina perfeitamente normal, que gosta de estar com os amigos, de aprender e do seu cãozinho. A sua vida mudou quando a sua família foi expulsa de casa e teve de se mudar para a grande cidade. Mas, com o seu grande coração e o seu espírito de aventura, Chapeuzinho Azul não tardou a fazer novos amigos. E é com esses amigos que partilha agora momentos de alegria e grandes descobertas. Mas será o mundo tão seguro como a sua inocência julga?
Uma das primeiras coisas que importa dizer sobre este livro é que, apesar de ser um livro infantil, não deixa, ainda assim, de ter o seu lado sério, com os motivos da expulsão da família de Chapeuzinho Azul e também o episódio das últimas páginas a proporcionarem muita matéria para reflexão. Claro que, sendo pensado para os mais novos, é uma história breve e as explicações dadas são muito simples (o que, naturalmente, deixa perguntas sem resposta aos olhos de um leitor adulto). Mas, mais do que esta brevidade, o que sobressai é a capacidade de enfatizar o lado bom, ao ponto de, apesar da forma como tudo termina, ser o espírito positivo e de bondade da protagonista o que mais fica na memória.
Apesar da importância dos temas, não deixa de ser também uma leitura leve. As próprias ilustrações, simples, mas expressivas, contribuem para isso, já que, embora não seguindo muito ao pormenor a história, funcionam como uma boa caracterização dos cenários e das personagens. Além disso, ter uma imagem visual da protagonista faz com que seja mais fácil imaginar as suas aventuras.
E não deixa de ser reconfortante ler uma história como esta, onde, mesmo quando as circunstâncias são difíceis, são a bondade e o optimismo as presenças maioritárias na vida da protagonista. Ainda que, mais uma vez, a fase final lhe acrescente uma súbita dose de realismo, a ingenuidade desta história faz sonhar, ainda que apenas durante a leitura, com um mundo de corações melhores.
Breve, leve, simples e cativante. Assim é esta pequena aventura, cheia de inocência e de optimismo, pensada para os mais pequenos, mas capaz de cativar todo o tipo de leitores. Muito agradável, em suma.

terça-feira, 2 de março de 2021

Sete para a Eternidade - Livro Um (Rick Remender, Jerome Opeña, James Harren e Matt Hollingsworth)

A honra e o orgulho de um pai destinado a manter a nobreza em tempos de veneno e sussurros fizeram dos Osidis uma família de proscritos. Ainda assim, exilados longe do mundo, viveram durante anos longe de uma guerra que não lhes pertencia. Mas isso acabou. O Deus dos Sussurros encontrou-os finalmente e, se o patriarca dos Osidis se recusa a ouvir a sua proposta, então tem de morrer. Resta o filho, a quem sobra também pouco tempo, e que tem uma família para proteger. Adam Osidis dirige-se, pois, à boca do lobo, sem saber bem se a sua intenção é matar o Deus dos Sussurros... ou romper com tudo o que lhe foi ensinado e ouvir a sua proposta.

De longe o aspecto mais notável deste livro - que é todo ele bastante impressionante - é a forma como apresenta todo um mundo de estranheza, mas repleto de uma proximidade perturbadora. Desde o Deus dos Sussurros (que molda o mundo com as suas mentiras) ao mercenário disposto a tudo por ouro, passando pelos que estão dispostos a tudo sacrificar em nome de um suposto futuro previsto, há em todos os estranhos elementos deste livro fortes paralelismos com o mundo real. O Deus dos Sussurros manipula através do medo, do incentivo ao ódio pelos outros, da manipulação dos desejos e das aspirações. E, se olharmos para o nosso mundo, vemos os mesmos sussurros, ainda que com formas diferentes.
E tudo isto é próximo, mas tudo o resto é novo. Os poderes das personagens, o tipo de influências que comandam a vida e a morte, os locais por onde as personagens passam e a forma visível como as suas escolhas se manifestam tornam este mundo extremamente complexo, apesar dos evidentes elos de ligação. Mas, em parte devido ao impacto emocional, que é fortíssimo, e em parte também devido à sensação de proximidade (porque o mundo pode ser novo, mas os sentimentos - bons e maus - são universais), é absurdamente fácil mergulhar de cabeça nesta história e impossível parar de ler antes do fim. Fim esse que é relativo, pois trata-se apenas do primeiro volume, mas é também extremamente adequado tendo em conta o percurso até este ponto.
Visualmente falando, destacam-se dois aspectos: a forma como as peculiaridades dos diferentes cenários e personagens realçam a estranheza deste mundo, com visões aterradoras como a do flautista a contrastar com o brilho incandescente do disparo dos pregos, para citar apenas um exemplo; e a expressividade das feições, que além de ser um reflexo perfeito do que move as personagens, realça a intensidade do que sentem (de bom ou mau).
Estranho, mas absurdamente próximo, complexo, mas absurdamente viciante, e ambíguo, mas avassalador na sua intensidade: assim é este primeiro volume de uma história cheia de emoção e de surpresas... e que promete ainda mais para a parte que falta descobrir. Cheio também de estranheza e de uma proximidade impressionante, um livro que não posso senão recomendar.