terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Uma Vida à Sua Frente (Romain Gary)

Momo acha que tem dez anos, ainda que ninguém pareça saber ao certo a sua idade, e a única vida que conhece é a que a Madame Rosa, uma velha judia e prostituta reformada, lhe tem proporcionado desde os três anos. Dir-se-ia ser apenas uma relação de interesse, pois foi a cuidar dos filhos de várias prostitutas que a Madame Rosa começou a ganhar a vida após a sua reforma, mas Momo é diferente. Momo ficou sempre, mesmo quando os cheques deixaram de aparecer. E é pelos olhos de Momo que esta estranha vida ganha forma: a de uma relação profunda entre uma mulher nos seus últimos dias e um rapaz com toda uma vida pela frente.
São tantas as impressões contraditórias ao longo deste livro que nunca poderia ser fácil descrevê-lo. É uma história de crescimento, mas também é uma história de morte. É uma história de relações e de afectos, mas também do desamparo dos mais frágeis. É, no seu âmago, uma história triste, mas capaz de fazer surgir grandes sorrisos. E é, ao longo de tudo isto, relativamente ambígua, como o são as vidas das suas personagens, mas também estranhamente profunda e fascinante.
Também a construção das próprias personagens é ambígua, ao ponto de nunca serem absolutamente adoradas ou odiadas. A Madame Rosa tem as suas excentricidades, a sua posição definida, a sua aparente indiferença... e no entanto, o fim... Quanto a Momo, tem a moralidade dúbia de quem aprendeu a desenrascar-se (porque defender-se tem aqui um significado distinto). E, de entre todas as pessoas que atravessam a relação de ambos, há gestos inesperados de bondade e crueldades escondidas, comportamentos inexplicáveis e o amor em pequenos gestos. E, em cada uma destas figuras, das que se aproximam e das que se afastam, há tantos temas importantes que não deixa de ser uma surpresa que este livro nem chegue às duzentas páginas.
Para isto, contribui também a escrita e o tom simultaneamente íntimo e extravagante que confere a todo o texto. É Momo o narrador, uma criança de possivelmente dez anos, e isso reflecte-se no texto, quer pela percepção de algumas palavras e pelo sentido alternativo dado aos conceitos, quer pela forma como divaga ao ritmo de uma imaginação muito grande. E, sendo certo que este ritmo peculiar torna a leitura um pouco mais pausada, é também crucial para realçar o impacto emocional deste cruzamento - ou colisão - de duas vidas.
Tudo é, pois, de certa forma, uma surpresa, desde o coração dos protagonistas ao grande mundo escondido nas suas pequenas vidas. E, surpreendentemente ambíguo, mas também surpreendentemente intimista, é, em suma, um livro que exige o seu tempo - mas que nem nos momentos mais estranhos deixa de cativar.

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