quinta-feira, 27 de maio de 2021

Purgatório (Pedro Eiras)

Depois dos círculos do Inferno, o Purgatório, lugar de expiação dos pecados menos imperdoáveis, talvez um pouco menores, talvez cometidos por aparente desconhecimento, ou espírito de rebanho ou mera sensação de impunidade. Lugar de penitência, e de reflexão, talvez, sobre como o mundo inspira e acalenta a possibilidade de transgressão, ou se torna até Purgatório dos vivos na forma como tece os meandros da sociedade. Purgatório, lugar de passagem, de espera, de esforço pela redenção possível. Mas não é isso mesmo o mundo em que vivemos?
Muito à semelhança do anterior Inferno, há algo de absurdamente indescritível - e absurdamente fascinante - na poesia que dá forma a este livro. Ora lhe basta um punhado de versos para traçar uma imagem inteira (e uma imagem memorável, entenda-se), ora se alonga em poemas mais longos, traçando visões mais complexas, mais labirínticas talvez, mas das quais é fácil extrair um ambiente familiar e até mesmo uma espécie de identificação. É uma voz singular, mas fala às nossas próprias vozes. Parece contemplar o além, mas o mundo que traça está mais próximo deste do que de qualquer vida depois da morte. E é, afinal, também este mundo que contempla - e o que dele ficará após a possível passagem.
Não faltam poemas memoráveis nas cento e poucas páginas deste livro. Não faltam versos capazes de ecoar nos meandros das nossas próprias memórias, de fazer refletir sobre se é realmente este o mundo que queremos e também sobre que formas adotamos para a expiação pessoal. Alguns são verdadeiramente brilhantes, com a sua cadência natural, os rasgos de inesperado e uma voz tão clara, tão forte, que ler este livro é quase como ouvi-lo em voz alta. E quase damos por nós a fazer isso mesmo.
E importa finalmente realçar o aspeto inevitável: a coesão do todo, a união praticamente perfeita que faz com que cada poema seja uma unidade completa, mas também elo de um todo que é maior do que a soma das partes. Pode facilmente ser lido aleatoriamente, e tendo em conta o apelo quase imediato que fica a um regresso, isso é quase inevitável. Mas lido de ponta a ponta, deixa esta imagem poderosa: a de uma verdadeira viagem a um Purgatório que não é o de Dante, mas tem as suas ligações, sendo embora uma versão diferente e própria.
Belo nas palavras, belo na cadência, belo nas imagens que traça. Belo em tudo, em suma, e memorável também em tudo o que contém. Assim é este singular Purgatório, leitura breve, mas que perdura por muito, muito tempo.

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