quinta-feira, 15 de setembro de 2016

a máquina de fazer espanhóis (valter hugo mãe)

Após a morte da mulher, na sequência do que parecia ser apenas uma indisposição, o senhor silva (sim, com minúscula) é, contra a sua vontade, enviado para um lar de idosos. Apesar dos seus mais de oitenta anos, continua lúcido e plenamente convencido de que o seu lugar não ali, naquela antecâmara da morte. Mas há ainda muita vida à sua espera no lar da feliz idade, lugar onde todos se encaminham para a morte e onde as memórias parecem pairar como uma sombra, mas onde há outras verdades e outros afectos para descobrir. A vida acaba, sim. E, para muitos dos que ali vivem, o fim está talvez já próximo. Mas talvez também as respostas possíveis a uma vida onde tudo é feito de perguntas. E, para silva, de uma perda que o acompanha em cada gesto. 
É difícil de explicar, este a máquina de fazer espanhóis. É esta a primeira coisa que me ocorre dizer sobre este livro. Porquê? Porque tem uma identidade tão própria, tão vincada, e ao mesmo tempo tão etérea e pessoal, que as impressões que provoca são mais sentida do que pensadas e, assim, torna-se difícil explicar em pleno o que fica deste livro. Há, apesar disso, traços que se destacam e que em muito contribuem para este tão belo impacto final. E é desses traços que importa falar.
Primeiro, a escrita. Muito própria, com um estilo bem definido, em que a ausência de maiúsculas e a pontuação reduzida a pontos e vírgulas criam, primeiro uma certa estranheza, para depois realçar no texto uma certa melodia. É um livro que, lido em voz alta, ou simplesmente sussurrado, parece cativar para uma estranha musicalidade, feita de palavras poéticas e de palavras duras, como de sentimentos belos e de pequenas crueldades.
O que me leva aos sentimentos. É fácil sentir alguma empatia para com as circunstâncias do protagonista. Mas o verdadeiro impacto da história é muito mais do que apenas isso. A forma como os pensamentos e emoções do senhor silva são apresentados, numa narrativa em que fantasia e realidade se entrelaçam nos labirintos da mente do narrador, torna tudo mais vivo e mais intenso. E, ao mesmo tempo, há algo neste percurso individual que, ainda que vivido de forma única, não deixa de ser algo universal. A passagem do tempo, a perda, o envelhecimento, a batalha cada vez mais dura entre a alma e o corpo... Coisas que vemos na vida do senhor silva, mas que acabam por acontecer a todos.
Mas há ainda uma outra peculiaridade nesta história. É que, apesar desta aura sombria provocada pela proximidade da morte, o livro tem tantos momentos de tristeza como de leveza de humor. O senhor silva e o seu estranho grupo de amigos tanto protagonizam momentos pungentes como situações caricatas e divertidas. E, no tal cruzamento entre a fantasia e a realidade, em que nem sempre fica claro o que é real e o que não é, cria-se uma certa agradável estranheza, como que de quem vê a vida com um olhar mais criativo.
Tudo isto se conjuga num equilíbrio fascinante, em que acontecimentos, memórias, sentimentos e laivos de introspecção parecem convergir num todo em que tudo encaixa na medida certa. E, assim, a imagem que fica é a de muito mais que a história do senhor silva. É um retrato de uma passagem pela vida que poderia ser a de qualquer um. E uma viagem que não posso deixar de recomendar. 

Autor: valter hugo mãe
Origem: Recebido para crítica

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