quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Metade Maior (Julieta Monginho)

Crimes autorizados pelo departamento demográfico confundem-se com os actos de um assassino cujas razões e identidade ninguém parece conseguir desvendar. Uma criança que perde a mãe para um desses crimes autorizados e que cria laços com os filhos do assassino. Um rapaz que quer mudar o mundo criando desenhos que se devem tornar reais. E, no centro de tudo, uma investigadora que não sabe bem que pistas seguir, um livreiro que procura a verdade nas palavras e um homem que regressou de longe com sonhos de mudança. Assim é a vida naquela avenida nos dias antes da revolução. Mas que revolução? Nem eles sabem ao certo...
Parte do que torna este livro cativante está na conjugação entre a simplicidade de alguns momentos (e na inocência das vontades de algumas personagens) e a complexidade resultante de tantas histórias cruzadas. O ambiente parece ser, inicialmente, o da realidade quotidiana, mas cedo revela a sua verdadeira natureza nas características do sistema em vigor. Já com as personagens, o mistério é o factor predominante e as suas escolhas e acções são marcadas não só pelo seu papel no sistema, mas também pela forma como se moldam à mudança e à descoberta dos que com eles interagem. É isso que os torna complexos, mesmo quando a vontade na base é tão simples como a de querer alguém com quem contar. Desejos comuns num cenário diferente dão, assim, forma a uma história - ou teia de histórias - feita de contrastes.
Também a escrita é cativante. Sem ser demasiado elaborada, mas com momentos poéticos que lhe definem um estilo próprio, adapta-se ao conteúdo, dando voz às emoções, pensamentos e palavras das personagens e definindo-lhes uma identidade própria, que se diferencia da voz do narrador. Narrador este que tem as suas opiniões, também, mas que surge como uma presença discreta em complemento à força das personagens.
Apesar das muitas histórias cruzadas e do ambiente de mudança global a aumentar-lhe a complexidade, este é um livro relativamente breve. E essa brevidade leva a que certos elementos sejam explorados apenas na medida em que são essenciais ao rumo das personagens. Fica, assim, a impressão de que mais poderia ser dito, nalguns aspectos, principalmente no respeitante ao funcionamento do departamento demográfico (e do sistema em geral) e a certos mistérios, como o buraco da Loja da Felicidade, que ficam em aberto. Já à história individual das personagens, nada falta, e a conclusão acaba por ser a mais adequada ao seu percurso.
Complexo e envolvente, Metade Maior tem tanto de estranheza como de fascínio no seu mundo, que, apesar de todas as diferenças, se aproxima, por vezes, tanto da nossa realidade. E é essa proximidade, afinal, às personagens e à empatia que as suas circunstâncias despertam, que mantém viva a envolvência despertada pelo mistério. Vale a pena ler este livro.

2 comentários:

  1. Obrigada, Carla Ribeiro, pela sua leitura.
    Foi intencional, a falta de descrição dos departamentos; considerei que conduziria o livro para uma espécie de profecia "à la" 1984, que não desejei, tanto mais que excederia o registo da alusividade, esse sim desejado. Quanto à descrição do que se passa na Loja da Felicidade (os que entram e não voltam), cheguei a escrevê-la com alguma minúcia; retirei-a da última versão por razões idênticas (demasiado aproximada ao universo da ilha das magias, na Odisseia). Percebo que o leitor sinta a falta destas descrições.
    Fico muito contente por considerar o livro cativante e recomendar a sua leitura.
    Julieta Monginho

    ResponderEliminar
  2. a semelhança com o 1984 existe, embora haja mais diferenças que semelhanças entre os dois romances. em orwell é mais o sistema de governo que conta, no de j m o que é mais obsessivo é a falta de espaço, esse aperto sem horizontes a que os personagens estão condenados e limitados. claro, o controle demografico feito a posteriori (e aparentemente sem um critério de selecção) tem algo de orwelliano. mas talvez seja quase só isso. durante a leitura pensei no 1984, mas mais pensei em certos romances da ultima fase de josé saramago. ou até, embora a violencia deste seja muito maior, no 2deus das moscas" de golding. Aliás, até pensei por vezes no "que diz molero" em certos momentos dos diálogos. enfim, uma sensação de claustrofobia invade por vezes o leitor, o espaço vai-se apertando; e na ausencia de passado, na dificuldade em se imaginar um futuro, o tempo é o presente e nunca me tinha sentido tanto encerrado no presente como neste "metade maior"...

    ResponderEliminar