Abandonada pela mãe para morrer no meio da lama, uma criança é salva pelo Rei dos Corvos. Encontrada ainda com vida, é recebida por uma família de acolhimento e mais tarde adoptada por um casal sem filhos. O tempo passa e a rapariga da lama transforma-se em M.R. Neukirchen, a primeira mulher presidente de uma universidade da Ivy League. Mas, entre um presente esgotante e um passado que, de forma nem sempre clara, insiste em infiltrar-se-lhe na memória, M.R. dá por si a lidar com mais demónios do que os que pode gerir. E talvez só a verdade a possa libertar.
De tudo o que este livro tem de fascinante, e tem muito, o primeiro aspecto a chamar a atenção é a aura de mistério que paira sobre toda a narrativa. M.R. é um enigma, tal como as suas origens. E há no seu percurso entre o presente e o passado algo de ominoso, como que uma sensação de uma mudança sombria prestes a suceder, que desde logo desperta a vontade de saber o que se seguirá. Além disso, a forma como a autora molda a história, não só entre diferentes momentos do tempo, mas também entre o real e os momentos de delírio, faz com que esse mistério se adense, insinuando possibilidades e, assim, abrindo caminho a vários momentos surpreendentes.
Também especialmente cativante é o equilíbrio entre o percurso pessoal e profissional da protagonista, bem como o seu enquadramento num contexto mais vasto. Situado num mundo pós 11 de Setembro, aborda diferenças políticas, perspectivas sobre a guerra, posições que se extremam. E, ao mesmo tempo, apresenta uma mulher de ideais bem definidos, mas também com inseguranças claras, a ter de lidar com um contexto complicado e, em simultâneo, com a sua própria realidade.
O que me leva ao que é, talvez, o traço mais peculiar deste livro: a forma como, num registo que oscila entre a introspecção e a análise do mundo exterior, a autora esbate a fronteira entre o real e o imaginário, pondo a sua personagem perante situações tão impressionantes que só podem ser reais, e depois desconstruindo-as. A partir desse ponto, tudo pode ser questionado. E, assim sendo, tudo ganha uma nova dimensão.
Claro que todas estas oscilações - entre presente e passado, real e imaginário, antes e depois da mudança - implicam um ritmo mais pausado, já que são inúmeros os aspectos a considerar e vastíssimas as suas implicações no desenrolar da narrativa. Mas há algo de tão intrigante na forma como a autora constrói a história e uma tal fluidez na escrita que a vontade de saber mais, de entender as raízes do mistério, de ver o que se segue para M.R. Neukirchen, compensa amplamente este abrandamento no ritmo.
A soma de tudo isto é um livro fascinante. Enigmático e sombrio, mas muitíssimo interessante, parte de um percurso pessoal atribulado e acrescenta-lhe as mais relevantes questões globais. E, entre o delírio e a lucidez, constrói uma narrativa equilibrada, surpreendente e que, no seu estranho equilíbrio entre o normal e o peculiar, nunca poderá ser menos que memorável. Recomendo.
Título: A Mulher da Lama
Autora: Joyce Carol Oates
Origem: Recebido para crítica
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