Desde que perdeu o emprego, Damián parece viver uma vida confusa, como que olhando de fora para si mesmo. Na sua cabeça, construiu um programa de televisão onde é ele o protagonista e em que o público delira com a narrativa da sua história. E, um dia, numa feira de antiguidades, julgando ter encontrado o presente perfeito para o seu interlocutor, comete um pequeno furto. A este, segue-se uma fuga apressada, que o leva a esconder-se dentro de um armário. Armário que, por sua vez, é vendido, fazendo com que Damián acabe por dar por si numa casa estranha sem que ninguém saiba que ele lá está. Fugir é possível? Provavelmente. Mas Damián dá por si a atrasar a partida, a deixar-se ficar. E aí começa a reconhecer uma nova vida, mais invisível do que nunca e, apesar disso... perfeita para si.
Partindo de uma premissa improvável e, apesar disso, fazendo-a soar perfeitamente natural, este é um livro que cativa, em primeiro lugar, pela estranheza. E estranheza é o que mais abunda neste livro, desde as conversas de Damián no seu programa imaginário à forma como vai parar à casa de Lucía, passando ainda pela revelação das peculiaridades do protagonista e pelo novo papel que assume na sua nova casa. Tudo nesta história é peculiar, nas pequenas coisas como nas grandes revelações e, contudo, nada parece demasiado estranho. E, assim, esta história improvável torna-se quase credível na forma como acompanha o percurso do seu protagonista.
Para isso contribui em muito a escrita. Fluída, envolvente, com rasgos de introspecção e momentos de choque, retrata na perfeição o estranho mundo em que as personagens que movem. Realça-lhes os sentimentos, as pequenas crueldades, a estranha e disfuncional harmonia em que parecem viver. E torna-as mais próximas, o que acaba por ser particularmente importante se se tiver em conta que nenhuma das personagens (e muito menos Damián) é, à partida, do género que desperta grandes empatias.
Nem tudo é explicado nesta história. Parece ser, aliás, esse o objectivo, na medida em que a ambiguidade serve para tornar as coisas mais naturais. Não há grandes razões para que, com todos os comportamentos de Damián, nunca haja grande perigo de exposição, apesar da crença de Lucía. E a forma como tudo termina deixa, na verdade, muito em aberto, ficando assim uma espécie de curiosidade insatisfeita. Mas também é certo que esse fim, tão improvável e natural como tudo o resto, acaba por fazer sentido tendo em conta o todo da história. E, mesmo não sendo completamente satisfatório, acaba por ser bastante adequado.
Bizarro, mas cativante. Estranho, mas surpreendentemente leve. Improvável, mas tão natural quanto ambíguo. Assim se poderá definir este Desde a Sombra. E, por tudo isto e o equilíbrio que isto forma, uma boa leitura.
Título: Desde a Sombra
Autor: Juan José Millás
Origem: Recebido para crítica
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