sexta-feira, 25 de julho de 2014

Florbela, Apeles e Eu (Vicente Alves do Ó)

Em fuga de um amor que se tornou violência por não saber como lidar consigo mesmo, Florbela parte dos braços do segundo marido para encontrar o terceiro. Talvez aí encontre o caminho para o que quer ser, agora que as palavras deixaram de ser a sua voz. Florbela já não escreve. Longe da vida que conheceu, procura ser apenas a esposa de que Mário precisa, mesmo sabendo que o seu verdadeiro ser não é o dessa mulher. Mas os laços de família falam mais alto e ao chamado de Apeles ela não pode deixar de responder, mesmo que o reencontro seja o princípio de um novo abismo nas existências de ambos.
Basta considerarmos quem foi e que obra deixou a protagonista deste livro para prever, à partida, que esta não será uma leitura fácil. Emoções complexas, tão complexas como as personagens que as sentem, e uma história em que o que foi se funde com o que poderia ter sido criam para este livro uma história de emoções intensas, mas em que o percurso interior, a introspecção, o ambiente tormentoso em que a tristeza é tão profunda que tudo consome, fazem com que a narrativa flua a um ritmo lento, exigente em termos de paciência, mas principalmente a nível de impacto emocional. Além disso, o autor torna-se também personagem, desempenhando ele próprio um papel no definir da linha que separa o que aconteceu e o que apenas foi imaginado. Também isto contribui para tornar a história mais complexa e mais densa. Mas também mais interessante.
A impressão inicial desta presença do autor enquanto personagem é, inevitavelmente de estranheza, até porque a barreira temporal é, à partida, difícil de ignorar. Mas, à medida que a narrativa se desenvolve, que os momentos mais dramáticos ganham destaque e que as grandes questões se revelam em todo o seu impacto, a figura de Vicente, quase fantasma numa história em que a própria Florbela também o é, cria contrastes e ligações sob a forma de uma presença que, apesar da distância, compreende o que mais ninguém compreende. Assim, as reflexões e as formas de estar fundem-se numa trindade em que as semelhanças sobressaem. Florbela, Apeles e Vicente, a personagem que é também o autor que, numa escrita de ritmo pausado e registo introspectivo, dá voz a uma história que, no que foi e no que podia ter sido, reflecte bem a faceta atormentada do génio.
Mas o grande ponto forte deste livro está mesmo na forma como esse tormento é reflectido. A escrita é densa, divagativa, o que faz com que, por vezes, seja difícil seguir o rumo dos acontecimentos. Mas é, também, uma voz que transmite com toda a clareza a tal tristeza profunda das personagens, a contemplação da morte, a morte em vida, o abismo no coração da alma. E é isso, acima de tudo, que compensa amplamente a estranheza inicial. É que, do sofrimento dos irmãos Espanca e, em certa medida, dos que os rodeiam, resulta uma evocação de dor e de sonho (e de perda de ilusões) que, de momento em momento, se torna sempre mais fácil de compreender. Como se a dor de Florbela, tão única, tivesse em si algo de universal.
Trata-se, portanto, de um livro denso, complexo, perturbador. Nem sempre fácil de acompanhar, no que tem de improvável e de estranho, leva o seu tempo a assimilar, na história, na escrita e no sentimento. Mas, chegadas as últimas linhas e o fim da história, este é, também, um livro que se entranha na memória e nos sentimentos. Porque são os sentimentos aqui descritos - e a infinita tristeza neles reflectida - o que, acima de tudo, faz com que esta leitura valha a pena.

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