Tucker Caliban, descendente de um escravo rebelde cuja reputação se tornou lenda e cujos descendentes passaram as suas vidas inteiras a trabalhar para os Willson, sempre foi visto como inofensivo, ainda que com um temperamento singular. Mas isso acabou. Um dia, sem que nada o pareça explicar, decide salgar as terras, abater os seus animais, pegar fogo à sua casa e partir com a família. Um caso estranho. Um acesso de loucura, talvez. Mas, nos dias seguintes, todos os negros da região começam também a deixar tudo para trás, sem explicação, sem motivos, rumo ao norte ou a outro sítio qualquer. Para trás, ficam os brancos, perplexos, desconcertados, tentando entender o porquê. Mas, enquanto uns se agarram às memórias e descobrem sinais do inevitável, outros revoltam-se e apontam culpados... tornando-se eles mesmos a imagem do porquê.
Tendo em conta a importância do tema e as inevitáveis situações sombrias que lhe surgem associadas, não é propriamente difícil de prever que esta não será uma leitura leve. Mais surpreendente é a forma como a estranheza e o desconcerto iniciais, resultantes em parte da estrutura - pois a história da partida dos negros é vista essencialmente pelos olhos dos brancos que ficam - e em parte também da própria escrita, que dá múltiplas vozes à história, dão lugar a um crescendo de intensidade, que faz com que a história se vá tornando gradualmente mais pessoal até culminar num final devastador.
Outro ponto marcante é que desde cedo que a história se assume como um enigma e chega ao fim sem dar respostas para tudo. Mas é marcante porque faz sentido que assim seja e o desconhecido torna mais reais estas vidas. Além disso, a história parte de uma lenda e avança, à sua maneira, para a formação de uma nova lenda, dando forma a um tipo de luta diferente, não necessariamente assumido e, em certa medida, pessoal, mas que reflecte, à sua estranha maneira, questões mais vastas e profundas do seu tempo.
Ainda um último ponto a destacar tem a ver como este percurso aparentemente individual reflecte questões mais globais. As aspirações falhadas, as revoluções que assumem formas inesperadas e a forma como tudo muda, para que, pelo menos para alguns, tudo fique na mesma, evocam paralelismos que vão muito para lá da acção e do período desta narrativa. A segregação e a escravatura - pelo menos, enquanto comportamentos legais - podem ter ficado para trás, mas os preconceitos e o combate a eles não acabou. Este livro é, pois, mais actual que nunca e é ainda mais pertinente pelo facto de ser tudo menos idealista.
Singular na voz, marcante na história, pertinente no tema; eis, pois, um livro que exige o seu tempo e que deixa a sua marca emocional. Mas, com tudo o que tem de complexo e de poderoso, deixa-se, sobretudo, a si mesmo, gravado na memória bem depois de concluído. E também isso é parte do que o torna tão bom.
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