Jérôme Bourbon tinha uma vida serena, com o seu cargo de professor universitário e a sua relação feliz, mas tudo mudou com a morte de Isabelle, que o mergulhou numa profunda escuridão. Será uma inesperada descoberta a arrancá-lo do abismo - um quadro à venda numa feira de velharias, pintado por alguém que partilha o seu nome. Por impulso, ou talvez pela força do destino, Jérôme dá por si a seguir os passos do seu homónimo, a comprar a casa do pintor e a partir, sem outra bagagem além do quadro, rumo a uma nova cidade. Aí, encontrará novos mistérios, a fascinante história da vida do seu homónimo - com quem tem, afinal, tanto em comum - e a possibilidade de um amor que, para existir, lhe exigirá que tudo aquilo que foi fique no passado.
Uma das primeiras coisas que importa realçar sobre este livro é que não é propriamente fácil de descrever. Contém no seu interior demasiadas vertentes para o enquadrar numa exposição simples. Alonga-se na introspecção, não só do protagonista, mas também do pintor cujo rasto ele segue, o que lhe confere um registo ao mesmo tempo pausado e intimista. Acrescenta-lhe uma história de amor perdido e de outro que aspira a desabrochar, o que proporciona momentos de estranha emotividade. E junta-lhe ainda mistérios e enigmas em abundância, que vão da identidade do pintor aos quadros escondidos e à história pessoal de um sobrevivente do Holocausto cuja relação com o pintor é surpreendentemente próxima. São múltiplos fios diferentes a convergir para o mesmo centro, e o resultado é algo complexo, mas também equilibrado.
Também a escrita se encaixa nesta espécie de descrição, pois tem, ao mesmo tempo, um encadeamento cativante e a complexidade de uma visão que tanto se demora em acontecimentos concretos como em longas meditações e abstracções. É certo que isto torna a leitura um pouco mais densa, mas confere-lhe também profundidade, o que não deixa de ser particularmente interessante tendo em conta o rumo da história destas personagens.
E há ainda um último ponto que importa referir. Há, ao longo de toda a narrativa, uma discreta presença que não é bem espiritual, mas que traça laços profundos entre vidas. Esta presença vai-se adensando e torna-se particularmente relevante no final que, deixando embora muito em aberto, atinge um equilíbrio estranhamente eficaz. Jérôme e Jérôme dão-se finalmente a conhecer na sua unicidade - mas é aí que as suas vidas convergem. Não são, por isso, as perguntas sem resposta que ficam no pensamento, mas as possibilidades de um fim que é o mais adequado a todo o percurso.
Pausado, complexo e sobretudo profundo nas suas contemplações, é um livro que exigirá o seu tempo. Mas, na sua teia certeira de vidas e de pensamentos - marcados pelo único elo universal da passagem do tempo - vai-se gradualmente entranhando na memória e é lá que fica uma vez terminada a leitura. Vale a pena, sem dúvida, conhecer esta história. E, sobretudo, os mistérios que encerra.
Título: Dias que Voam Outono
Autor: Fernando André Gonçalves
Origem: Recebido para crítica
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