sábado, 13 de maio de 2017

Outono (Ali Smith)

Daniel tem mais de cem anos e dorme numa cama de hospital à espera do fim. Elisabeth tem o futuro à sua frente, mas, num país abalado pelo resultado do referendo, sabe que esse futuro é incerto. E, porém, têm mais em comum do que parece. Têm as memórias partilhadas do tempo em que Daniel se tornou o vizinho do lado de Elisabeth e lhe revelou todos os mistérios da memória. A descoberta das histórias, da arte e da verdade que contém, do mundo visto pelos olhos da vida que passou e do tempo que resta. Outono, o outono da vida, paira sobre todos - sobre Daniel, mas também sobre Elisabeth. E, enquanto o fim se aproxima, como um sono tranquilo, as memórias vêm à tona, mais uma vez.
Não é propriamente fácil descrever este livro. Sem linha temporal definida, mas antes oscilando entre momentos e memórias, percorre o tempo como um entrelaçado de pontos onde se prende aquilo que é preciso recordar. A história constrói-se de episódios, de recordações, de sonhos, de tal modo que a realidade nem sempre é clara, tão reais parecem os sonhos que no meio dela se entrelaçam. E, contudo, a leitura é incrivelmente fácil, pois o tempo - no sentido de quando acontece aquele evento particular - não é assim tão importante. Importa a vida e o retrato que emerge de todos estes muitos pontos. E esse, a autora constrói-o com uma mestria impressionante.
A alma deste livro está na escrita. As personagens são fascinantes, tal como o é o contexto delicado em que se movem e as visões que transmitem sobre a vida e o que a compõe. Mas é a voz que a autora confere a tudo isto que torna tudo tão memorável. A descrição do Brexit em duas páginas, a longa e bizarra interacção de um encontro com a burocracia, o estranho afecto que nasce do simples acto de contar histórias... Há todo um conjunto de momentos que têm em si muito de marcante e a autora dá-lhes precisamente o tom certo. E é isto que faz com que o que, à primeira vista, poderia ser um conjunto de simples episódios na vida de algumas personagens se torna num todo mais vasto, mais completo, mais equilibrado.
Mas voltando às personagens: também em Daniel e Elisabeth, e na relação entre ambos, há algo de fascinante a acontecer. Figuras de tempos diferentes, têm, ainda assim, muito mais em comum do que à primeira vista seria de esperar. Os sonhos, as aspirações, as percepções da verdade. Têm também um afecto invulgar e estranhamente cativante, que os leva a moldar-se e a aprenderem um com o outro, a partilhar e a descobrir novas possibilidades. É isso também que os torna tão marcantes e tão interessante a forma como tudo termina: sem respostas definitivas, mas com tudo o que realmente importa.
Sempre envolvente e maravilhosamente escrito, trata-se, pois, de um livro memorável, em que o mundo e as memórias ganham vida através dos olhos de duas personagens tão complexas nos seus meandros interiores como cativantes desde a primeira impressão. Marcante, belo e fascinante, um livro que não posso deixar de recomendar. 

Título: Outono
Autora: Ali Smith
Origem: Recebido para crítica

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