E se eu fosse Deus? É essa a pergunta que serve de ponto de partida a uma primeira conversa - a que abrirá todas as portas para o lado desconhecido da cidade. Quem pergunta é Henrique, um sem-abrigo que quer mostrar ao narrador - já que ele quer descobrir - como são complexos e sinuosos os meandros das vidas de quem vive nas ruas. E, através de Henrique, abrem-se os olhos para a descoberta: a descoberta de que há um lado sombrio escondido na cidade e tantas vidas perdidas a precisar de ajuda. E, pelo caminho, há também a filosofia de perguntar qual é o Deus que tudo isso observa - e se um Deus diferente, mais humano, podia fazer com que as coisas fossem diferentes.
Embora seja identificado como sendo um romance, uma das primeiras impressões a emergir deste livro é que não se enquadra perfeitamente nessa categoria. Primeiro, porque, ao basear-se num percurso de procura de histórias reais, se centra mais na expressão desses testemunhos do que propriamente numa história de natureza ficcional. E, além disso, há uma forte componente de análise social e filosófica que distancia um pouco o texto da narrativa pura e simples, para o tornar mais numa exposição e análise de factos (difíceis).
Se isto retira impacto ao livro? De forma alguma. Os testemunhos - e as duras verdades que lhes estão subjacentes - realçam em si mesmos a enorme importância do tema e, além disso, ao unir todas estas histórias no percurso de Henrique, o autor confere à leitura uma envolvência maior. Sim, os pensamentos filosóficos e a oscilação entre múltiplos percursos tornam o ritmo da leitura um pouco mais pausado e mais distante. Mas a pertinência das questões? Está toda lá.
E, ainda que a história seja essencialmente um meio para um objectivo maior, há ainda assim rasgos de emotividade que conseguem ser, afinal, pura magia. Henrique, força motriz de tudo o resto, divindade terrestre que, à sua maneira, também tudo vê, pode funcionar como veículo para todas as outras histórias, mas tem também a sua. E essa - e particularmente a forma como tudo termina - acaba por aumentar em muito o impacto de todo o percurso. Percurso que, sendo afinal de duras verdades, caminha constantemente sobre a fina barreira entre a esperança e o desespero - barreira essa que é também, de certo modo, tocada no final.
Nem sempre fácil, mas sempre relevante, eis, pois, um livro que importa ler - pelas histórias e pela verdade escondida em todas elas. E por Henrique também, e a sua estranha forma de divindade que mostra a vida nos seus meandros mais sombrios.
Título: E Se Eu Fosse Deus?
Autor: Fernando Correia
Origem: Recebido para crítica
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