É na cantina de Salima que todos se encontram - militares, pides, estrangeiros, prostitutas - e é por lá que, entre festejos e bebidas, a guerra vai passando, deixando as suas marcas numas quantas vidas perdidas, mas, ainda assim, relativamente remota. Mas os tempos têm-se tornado mais perigosos e as relações cada vez mais complexas. Tudo começa com a relação proibida entre um rodesiano e uma prostituta negra. Aparentemente inocente, é mais que o suficiente para acicatar ódios latentes e avivar o fogo de uma guerra cada vez mais próxima. E, entre a paz aparente da cantina e os ataques cada vez mais perigosos, Salima dá por si apanhado no meio do caos, principalmente quando, após um ferimento, é levado para um hospital e aí encontra a mulher que lhe despertará o mais forte amor - e o mais fundo desejo de vingança.
Narrado pela voz de Salima e centrado, acima de tudo, na sua perspectiva do que o rodeia, este é um livro que surpreende, em primeiro lugar, pela capacidade de exprimir com toda a naturalidade não só as impressões e sentimentos do protagonista, mas o estado de espírito geral daqueles que o rodeiam. Enquanto cantineiro, Salima convive com todo o tipo de gente e, talvez por isso, as suas impressões são vastíssimas. Além disso, a própria estrutura do romance propicia esta visão mais ampla, pois começa a partir de uma teia de vários elementos, para se ir depois centrando gradualmente num ponto focal mais nítido, mas, em certa medida, formado por tudo o que vem de trás.
Também muitíssimo marcante neste livro é a forma como, da humanidade de algumas personagens e da crueldade de outras, consegue sobressair não só uma história repleta de emoções fortes, mas também um romance cheio de temas pertinentes. As atrocidades da guerra, o racismo, o preconceito que move à crueldade gratuita e a influência dos poderosos que faz com que a alguns tudo seja permitido são apenas alguns dos muito importantes aspectos que emergem da leitura deste livro. E também eles emergem com naturalidade, por actos mais do que por palavras, o que lhes realça, naturalmente, o impacto que têm nas personagens e no leitor.
E depois, claro, há o impacto dos momentos propriamente ditos e a forma como, do que parece ser uma interacção aparentemente tranquila, emergem as raízes de uma crueldade maior. Há, nos momentos de alegria, uma estranha leveza que apenas potencia o impacto dos momentos cruéis. E, à medida que a narrativa se vai tornando mais sombria, como a vida do próprio protagonista, este contraste torna-se ainda mais evidente, reforçando a impressão de que tudo pode perder-se num só momento.
A imagem que fica é fascinante: por um lado, o percurso cada vez mais avassalador de uma guerra que se aproxima inexoravelmente; por outro, uma jornada emocional da descontracção à devastação. E, no fim, é isso mesmo que impressiona neste livro: a capacidade de nos fazer percorrer um caminho tão complexo como o das personagens e do contexto em que se movem. No fim, é isso que fica na memória. E a soma de tudo é algo de muito bom.
Título: O Último Beijo da Mamba Verde
Autor: Cesário Borga
Origem: Recebido para crítica
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