segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Já não me deito em pose de morrer (Cláudia R. Sampaio)

As sombras e os enigmas de uma mulher da cor de um lírio, de um coração que parece não saber muito bem onde pertence, mas sabe que sente, de mulheres individuais que podiam ser todas as mulheres e de uma sombra raiada de luz que é tanto de morte como de libertação. As sombras de uma poesia que, sendo tão peculiar como indescritível, deixa poucas alternativas para a descrever além de uma linguagem também ambígua e poética, pois é mais de imagens e de impressões do que de regras concretas e cenários claros que vive este livro de poesia. E é precisamente isso que o torna notável.
Se todo o livro é diferente consoante o ponto de vista de quem o lê, mais ainda isto se aplicará à poesia. E muito especificamente a esta poesia. Não há normas, não há regras estritas, não há uma estrutura imposta a determinar rimas ou métricas. O que há é uma cadência fluida e natural que se ajusta, na sua máxima liberdade, a um conteúdo que não segue também normas nenhumas, deixando fluir imagens muito concretas, rasgos de locais específicos, por entre uma teia de abstracções algo sombrias e algo melancólicas de onde é possível retirar todo o tipo de sensações. Alguns dos poemas parecem falar directamente ao coração, sem ser, contudo, possível apontar qual é o elemento que neles os torna tão próximos. É poesia feita de sentimento - sem por isso perder nenhuma da complexidade evocada pelas suas imagens mais obscuras.
É também um livro com um curioso efeito sinestésico, ainda que relativamente discreto. É que, partindo da tal mulher da cor de um lírio, nasce no pensamento como que uma impressão de cor, ainda que não seja propriamente um elemento recorrente nos poemas. Talvez sejam os laivos de sombra dos poemas mais soturnos, ou então a própria primeira impressão que se prolonga para o resto, mas a cor do lírio permanece na memória ao longo de toda a leitura, mesmo quando as mulheres dos poemas são já outras e diferentes.
E há ainda um último contraste, o que resulta do equilíbrio entre as abstracções complexas que vão sendo tecidas a partir das imagens peculiares (começando, uma vez mais, pela mulher da cor de um lírio) e a simplicidade de outros versos e imagens que, na sua brevidade, parecem tornar normais até os elementos mais absurdos. O resultado é uma voz muito única, muito própria, mas capaz de criar, a espaços, laços de identificação estranhamente profundos.
É, de certo modo, uma poesia de sombras - mas sombras com cor. E é essa dança de sombras, tão peculiares e tão próximas, que faz com que, mesmo nos rasgos mais estranhos deste conjunto de poemas, haja sempre algo de efémero e de frágil que fala, ainda e sempre, ao coração. Cor de lírio, como a mulher. Cor de coração, como a capa. E memorável, sempre.

Autora: Cláudia R. Sampaio
Origem: Recebido para crítica

Sem comentários:

Enviar um comentário