quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Os Meus Heróis Foram Sempre Drogados (Ed Brubaker e Sean Phillips)

Ellie sempre teve uma visão romantizada da droga e isso não mudou agora que está fechada numa clínica de reabilitação. Mas é onde menos espera que vai encontrar sentimentos como nunca antes sentiu. Não é a primeira vez que Skip está numa clínica daquelas, na esperança de que será desta vez que a sua vida vai entrar nos eixos. Mas, além de ser uma má influência, Ellie traz consigo um grande segredo. E o que parece ser um amor que começa a nascer - ainda que do tipo louco, capaz de desencadear fugas e deixar o mundo do lado de fora - esconde afinal um lado mais cruel.
Talvez fosse de esperar, tendo em conta a informação prévia de que é uma história enquadrada no universo Criminal - ou, bem, o nome dos autores - mas a verdade é que nada nos prepara para a sucessão de emoções que o rumo desta história desperta. É esse, aliás - mais do que os diálogos certeiros, mas do que um monólogo interior tão poético como implacável, mas do que os tons claros que apelam à nostalgia ao mesmo tempo que lançam as bases de uma desolação impiedosa - o factor que faz com que esta história tão breve se crave tão profundamente na memória. Sugere uma história de amor, de amor jovem, irresponsável, "sob a influência" talvez. Mas o que acaba por ser no fim de tudo é todo um rasgar de inocência que, além de ser uma surpresa praticamente absoluta, põe tudo em questão: amor, lealdade, confiança, justiça. Mas o mundo não é justo, pois não? Pelo menos o destas personagens.
É efectivamente uma história muito breve. Tudo acontece bastante depressa, ao ponto de quase não dar para pensar - ou preparar - o impacto das coisas. Mas o mais interessante é que também esta brevidade faz sentido. Para o contexto maior, há o universo de uma série mais vasta (e é verdade que a revelação final ganha outra familiaridade tendo já lido o primeiro volume de Criminal). Para o percurso individual desta história, tudo o que ela tem de essencial está lá: o contacto, a delicada dança à volta dos segredos, a promessa de um amor a desabrochar em contraponto a um passado solitário (e é tão impressionante a forma como isto é transporto para a arte no contraste entre cinza e pastel e nos cenários à sombra de Van Gogh) e, no fim... bem, o fim. O fim que desperta emoções tão fortes, mas do qual é impossível dizer muito sem estragar a força do impacto que ele tem.
E importa ainda voltar à arte, para realçar ainda um outro aspecto que contribui para o impacto desta imensa surpresa. É que, para uma história vinda do universo de Criminal - e, mais uma vez, destes autores - os tons são surpreendentemente claros, as expressões surpreendentemente inocentes (e, no caso de Skip, surpreendentemente genuínas), o que só faz com que seja mais profundo e inesperado o impacto de uma escuridão que vem, afinal, de dentro. Mas que está lá, ainda assim.
Amor e crueldade num percurso tão breve quanto impiedoso: poder-se-ia talvez definir assim a viagem que é este livro. Uma viagem pessoal e cheia de sentimentos fortes, de promessas de cor e de negrume... e uma história de inocência quebrada, da mais implacável das maneiras. Todo ele uma surpresa e todo ele memorável, um livro que não posso deixar de recomendar.

Autores: Ed Brubaker e Sean Phillips
Origem: Recebido para crítica

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