Eram os tempos do respeitinho, do silêncio, da submissão à autoridade. Do aceitar caladinho, porque, caso contrário, as consequências seriam terríveis. E foi nesses tempos que Amélia conheceu um homem, deixou-se encantar... e viu-se com o filho de um pide nos braços, felizmente aceite por um homem melhor. Mas esse seria apenas o início, pois a história de António seria também a dos primórdios da liberdade. Uma história de descoberta, de coragem e de revolução, acompanhada pelo olhar distante, mas preciso, de um narrador bastante especial.
Contada a dois tempos e acompanhando o que, inicialmente, parecem ser duas histórias distintas - a da ficção e a da realidade do ficcionista - este é um livro que cativa primeiro pelo registo aparentemente simples, mas com uma fluidez cativante e eficaz, e depois pela naturalidade com que as verdadeiras complexidades se vão desvelando. Não é só a história de Amélia e António, nem é só a história de Luís escritor. É também a história do tempo em que se movem. E, todavia, é uma história pessoal: de Amélia e Joaquim, assombrados pelo medo constante; de António, da inocência à descoberta e à vingança; e também de Bárbara, Encarnação, Rui Corninho e todos esses outros que povoam o mundo destas personagens. Todos credíveis, todos genuínos. Todos marcantes.
Há ainda um outro aspecto interessante na forma como o livro está escrito: além dos dois pontos temporais bastante distintos, há também na voz que narra a história de António uma certa peculiaridade, como que uma proximidade que indicia a voz de alguém que esteve lá. Ora, isto faz todo o sentido uma vez feitas as derradeiras revelações, mas tem também o condão de dar à narrativa um tom invulgar. Há, aliás, umas quantas observações certeiras que quase parecem indicar que o narrador (ou bem, o narrador de uma parte do enredo) não tem lá muito boa impressão desta coisa de escrever romances.
E depois, claro, há a história em si e a forma como equilibra um contexto meticulosamente descrito com uma história que vive de experiências individuais. Ao cenário complexo junta-se a tensão e a intensidade do medo, da dúvida, do perigo e da descoberta. E isso faz com que, além de marcante em todos os aspectos, a leitura se torne também surpreendentemente viciante. Claro que também o grande mistério - qual é o elo de ligação entre as duas partes - contribui para este ritmo intenso, mas bastam os acontecimentos para fascinar.
Complexo, mas pessoal e com uma intensidade quase irresistível, trata-se, pois, de um livro notável, não só pelo tempo e pela história que apresenta, mas principalmente pelas vidas que o povoam. Além, claro, da forma que lhe dá voz, que é também parte essencial do que torna este livro tão memorável. E tão, tão bom.
Título: A Noite Passada
Autora: Alice Brito
Origem: Recebido para crítica
Fascina-me esta época do pré e pós 25 Abril e fiquei curiosa com a história. Desconhecia a autora, mas após uma pesquisa descobri que é a mesma de um livro que também quero ler "O Dia em que Estaline Encontrou Picasso". Mais um para a lista :)
ResponderEliminarE a capa tem uma fotografia memorável de Artur Pastor(1922 1999).
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