sexta-feira, 29 de abril de 2022

Que Túmulo em que Talhão (João Moita)

Da decomposição e ressurgimento da terra, transbordante de vida e de morte em equilíbrios ora fascinantes, ora macabros. De paisagens silentes e crueldades quotidianas, vistas por um olhar impávido que não expressa sentimentos, mas visões. De vida que se transforma em morte, desertos que se transformam em água, silêncios que o som da natureza rasga para depois voltar a fundir. De tudo isto é feita esta poesia, contemplando a morte através da vida. Ou vice-versa.
Provavelmente o aspeto mais surpreendente deste livro, e também o mais memorável, é a sua singularidade na construção das imagens. É uma poesia que vive fundamentalmente de paisagem, de natureza, ainda que exista alguma presença humana de vez em quando. É uma natureza feita maioritariamente de elementos razoavelmente normais. Surpreende, portanto, a forma como esta contemplação da paisagem se assume como tudo menos bucólica e harmoniosa. É um olhar à decadência através do que ainda existe, um traçado sombrio de abismos futuros através da serenidade presente. E essa visão soturna tem algo de fascinante - como que um grande memento mori que lembra também que ainda há vida.
Também bastante surpreendente é o facto de todo este contraste resultar de uma poesia que é, do ponto de vista estrutural, aparentemente muito simples, com os seus versos curtos e sem grandes imposições em termos de métrica. Aparentemente simples, contudo, porque a verdade é que há um equilíbrio nesta construção, uma fluidez que quase projeta mentalmente as imagens, e uma cadência na construção da paisagem que facilmente se entranha na memória.
Não é o tipo de poesia que apela às emoções, é certo. É mais como que uma contemplação. Mas também isto faz parte da sua singularidade, esta perceção do mundo não de uma forma emocional, mas vendo-o nos seus equilíbrios e na forma como persistem, mesmo na ausência da sentimentalidade humana.
Singular na paisagem, na voz e na intensidade dos contrastes que confere aos cenários que traça, trata-se, em suma, de um livro que, não sendo propriamente emotivo, facilmente se torna memorável. E de uma forma única de contemplar os ciclos naturais da vida.

Sem comentários:

Enviar um comentário