sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Morte no Nilo (Isabelle Bottier e Callixte) | O Misterioso caso de Styles (Jean-Francois Vivier e Romuald Gleyse)

Um aparentemente inócuo - ainda que fascinante - cruzeiro pelas águas do Nilo que resulta na morte da detentora de uma grande fortuna, alguém que, apesar da juventude, parece ter vários inimigos reunidos no barco. E um misterioso envenenamento em casa de uma família de bem, mas onde grandes segredos parecem esconder-se nas sombras. Ambos casos fatais, intrigantes e aparentemente inexplicáveis. Nada é, porém, indecifrável para uma mente tão arguta como a de Poirot. E, por mais escassas que possam parecer as pistas, a verdade vem sempre ao de cima...
Algo que importa começar por dizer sobre este volume, à semelhança, aliás, das adaptações anteriores, é que se lê perfeitamente sem qualquer conhecimento dos romances que lhe serviram de base. Ainda assim, tendo já lido um dos dois romances, importa também dizer agora que o conhecimento prévio também não prejudica à leitura, não só porque a adaptação, com a sua componente visual e expressiva, lhe confere matizes diferentes, porque o enredo é suficientemente complexo para que haja sempre detalhes novos.
Olhando, pois, para o livro tal como ele é, e pondo de parte a existência ou não de conhecimento prévio do enredo, há dois aspectos que sobressaem: a arte, sobretudo na vida e expressividade que confere às personagens, e a capacidade de construir um equilíbrio perfeito entre a informação dada pelos diálogos e a que está contida nos elementos visuais. O resultado é um livro equilibrado, sem excessos explicativos e em que o impacto das surpresas é maximizado não só pelas expressões das personagens (principalmente em certos momentos mais dramáticos), mas também pelos tons dos próprios cenários.
Sendo um volume duplo, sobressai também o contraste de estilos. O Poirot de Morte no Nilo não é de todo igual ao de O Misterioso Caso de Styles. E, ainda assim, ambos evocam na perfeição a eterna figura do grande detective. Podem ser visões diferentes e estilos diferentes, mas ambos têm a alma da personagem e o seu encanto irresistível. E quanto às histórias... Bem, sobre as histórias não se pode dizer muito sem revelar demasiado segredos. Mas mistério e intriga não lhes faltam...
Não importa, pois, se se trata de um primeiro contacto com estas histórias ou da descoberta de uma nova formulação. O que é certo é que tudo nesta adaptação cativa: as expressões, a cor, os contrastes... e, naturalmente, as histórias e personagens. Envolvente, intrigante e cheio de surpresas, um belo duo de aventuras. Muito bom.

Divulgação: Novidades Saída de Emergência

Há mais de uma década, cinco adolescentes – Sloane, Matt, Ines, Albie e Esther – foram reunidos por uma agência governamental com base numa profecia que dizia serem eles os Escolhidos que destruiriam O Tenebroso, uma entidade maligna que espalhou o caos e ceifou milhares de vidas. Com o objetivo alcançado, a Humanidade celebrou a vitória.
Mas o conflito deixou marcas profundas. Se o mundo seguiu em frente e há uma nova geração que não tem memória da guerra, tal não acontece a Sloane. É impossível para ela esquecer os segredos que a perseguem e O Tenebroso ainda assombra os seus sonhos. Ao contrário dos restantes, Sloane não conseguiu seguir em frente; sente-se à deriva – sem direção, objetivos ou propósito.
Na véspera das celebrações dos Dez Anos de Paz, um novo trauma atinge os Escolhidos: a morte de um deles. E quando se reúnem para o funeral descobrem, para terror de todos, que o reinado d'O Tenebroso nunca terminou verdadeiramente.

VERONICA ROTH cresceu em Barrington, Illinois, e vive em Chicago.
Estudou Escrita Criativa e é a autora de várias obras de sucesso, nomeadamente da série Divergente, adaptada ao cinema.
Pode consultar a página da autora em https://veronicarothbooks.com/.

 
Prisioneira do elfo Avallac’h, Ciri tem de decidir se aceita dar ao rei dos Amieiros um filho para assim poder alcançar a liberdade. Cansada de fugir, a jovem percebe que encarar o seu destino é a única forma de salvar aqueles que ama. Geralt de Rivia e os seus companheiros chegam finalmente ao castelo de Stygga. Para proteger Ciri e Yennefer, o bruxo vê-se obrigado a enfrentar novamente o terrível feiticeiro Vilgefortz. E, para piorar, o mundo continua mergulhado em guerra…
Natural da Polónia, Andrzej Sapkowski (1948-) é um aclamado autor de fantasia, conhecido pela saga The Witcher e pela criação da personagem Geralt de Rivia.
Vencedor de inúmeros prémios polacos e europeus, a sua obra já foi traduzida para mais de vinte línguas. A saga literária The Witcher inspirou uma série de videojogos de grande popularidade que vendeu mais de 20 milhões de cópias no mundo inteiro.


Minerva Hepplewhite aprendeu da pior forma a tomar conta de si. Depois de ser acusada da morte do marido, ela monta um discreto negócio de investigação que atrai atenções indesejadas… nomeadamente a de Chase Radnor, um homem que há anos podia ter destruído a vida de Minerva. Chase não consegue decidir se Minerva é uma mulher injustiçada ou uma femme fatale. Mas tem uma certeza: ela é a pessoa ideal para o ajudar a descobrir por que razão o seu tio, um abastado duque, a nomeou como herdeira e morreu pouco tempo depois em circunstâncias suspeitas. Quando a súbita atração dá lugar a uma sedução mútua, ambos terão de perceber se a parceria na investigação pode ser o primeiro passo para uma aliança muito mais profunda…

Madeline Hunter é autora bestseller de romances históricos e vive na Pensilvânia, EUA, com o marido e dois filhos. Os seus livros ganharam dois RITA Awards e tiveram sete nomeações. Numa existência paralela à que tem como romancista, Madeline é formada em História e é professora numa universidade na Costa Leste.

Estamos no início dos anos 80. O ex-marine Jack Ryan é um historiador que está em Inglaterra a fazer investigação para um livro sobre o IRA. Uma série de perigosos encontros com membros desta organização terrorista chamam a atenção do diretor da CIA, que propõe a Jack trabalhar como analista para a agência. Logo no primeiro dia de trabalho um documento importante chega à sua mesa: o novo Papa, João Paulo II , enviou um ultimato privado a Varsóvia: se o regime continuar com a repressão, ele será obrigado a renunciar ao papado e a regressar à Polónia para lutar contra o bloqueio soviético.
Em Moscovo, Yuri Andropov, diretor do KGB, está seriamente preocupado com tudo o que isto significa para si e para o governo soviético: um só homem pode fazer fracassar todo o trabalho da sua vida. O Papa é muito poderoso, mas também é um mortal… Nas semanas seguintes, Jack Ryan deverá enfrentar uma reação em cadeia que jamais teria imaginado, um jogo de gato e rato entre a URSS e os Estados Unidos que ameaça não só os líderes mundiais mas também a estabilidade do mundo ocidental.

TOM CLANCY foi autor de vários bestsellers do The New York Times. Apaixonado por história naval, sempre teve o desejo de escrever um romance.
A sua primeira tentativa, A Caça ao Outubro Vermelho, revelou-se um estrondoso sucesso internacional. O realismo e autenticidade dos seus livros, bem como o enredo complexo e o suspense que sempre imprimiu às suas histórias, valeram-lhe um lugar entre os grandes mestres do suspense e do thriller.
Tom Clancy faleceu em outubro de 2013. Pode consultar a página do autor em tomclancy.com.


Durante uma pausa para o almoço, um professor bebe um chocolate quente desconhecendo que acaba de se condenar a uma morte agonizante. A comunidade escolar fica chocada e as raparigas que encontram o corpo ficarão traumatizadas para toda a vida. Para a tenente Eve Dallas, homicídio e mentira andam de mãos dadas, e a sua tarefa é investigar os suspeitos e descobrir a razão de alguém matar um homem que parecia tão inofensivo… tão inocente.
Já Magdelana Percell é uma pessoa que Eve consegue imaginar como vítima de homicídio. Possivelmente às mãos de Eve. A elegante loira — e antiga paixão de Roarke — apareceu em Nova Iorque determinada a recuperar o tempo perdido. Consumida pelo ciúme e pela indiferença de Roarke, Eve tem dificuldades em concentrar‑se no caso, mas terá de pôr de lado a sua vida pessoal quando é encontrada uma segunda vítima e as atenções se voltam para a escola de elite que está na origem dos crimes.

J. D. Robb, pseudónimo de Nora Roberts, é uma das autoras mais lidas, acarinhadas e respeitadas em todo o mundo. Com mais de 500 milhões de cópias vendidas em todo o mundo e cerca de 90 bestsellers na lista do The New York Times, Nora Roberts foi a primeira autora a ser convidada para o Romance Writers of America Hall of Fame. Nascida em Silver Spring, Maryland, é a mais nova de cinco filhos e vive em Keedysville, onde continua a escrever.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

A Axila de Egon Schiele (André Tecedeiro)

Da arte da fuga à permanência da memória. Do contemplar de um mundo ao longe ao lavar as mãos pelo fogo para sentir mais de perto. Da cinza do interior às cores - e ao escuro - do exterior. E de toda uma outra vastidão de imagens difíceis de descrever, mas simultanteamente oníricas e palpáveis. De tudo isto, e mais, talvez, é feita esta antologia poética, voz complexa traçada em poemas breves, mas certeiros e estranhamente universais.
Parte do que torna esta leitura tão marcante é o estranho e fascinante equilíbrio entre uma voz basicamente indescritível e uma familiaridade absurdamente intensa. Talvez devido à brevidade dos poemas, que realça ao máximo o impacto do mais breve dos versos, ou talvez devido ao sentimento latente, que, moldado mais pela projecção das imagens do que pelas palavras que as evocam, se torna fácil de compreender, o que é certo é que, embora seja difícil apontar aspectos concretos, a impressão que fica é profunda, intensa e memorável.
Outro aspecto notável é a nítida sensação de que todo o percurso é algo pessoal. E não pessoal para o autor, mas para quem lê. São versos fixos, palavras definidas e, nalguns casos, visões muito claras, mas a verdade é que cada uma destas imagens ganha uma forma diferente consoante as emoções e impressões que desperta. E claro que isto se aplica um pouco a todos os livros, mas este em particular realça em toda a sua glória o facto de que cada leitor lê um livro diferente - ainda que as palavras que lá estão sejam as mesmas.
Também aqui uma palavra se repete: brevidade. E um brevidade impressionante. Alguns dos poemas são compostos por um único verso e, ainda assim, não lhes falta nada. Outros alongam-se um pouco mais, traçando imagens mais intrincadas, evocando sentimentos mais profundos. Mas todos têm precisamente a dimensão certa, formando cada um um todo independente que, no conjunto desta antologia, forma algo maior que a soma das partes.
Surpreendentemente viciante para um livro de poesia e com um equilíbrio brilhante entre cadência e tom, fluidez e brevidade, trata-se, em suma, de um daqueles livros que - surpreendentemente, mais uma vez - se devora de uma assentada, exigindo, no entanto, múltiplos regressos aos muitos locais onde marcou. E é ao mesmo tempo aberto e pessoal, vasto e simples, belo e poderoso. Numa palavra: memorável.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Kitty e o Desfile das Lanternas (Paula Harrison e Jenny Løvlie)

A Kitty e os amigos estão muito entusiasmados com o Festival da Luz e o consequente desfile de lanternas. Até porque há um concurso para a melhor lanterna e o prémio é uma bonita coroa. Mas há alguém que quer estragar o desfile, esgueirando-se pela multidão e roubando bens valiosos - incluindo o prémio do concurso. Apesar de sozinha, porque os seus amigos felinos têm medo dos foguetes, Kitty não renuncia ao seu papel de aspirante a super-heroína. E os seus poderes felinos vão ser-lhe muito úteis na perseguição a um tão esquivo ladrão.
Um dos aspectos mais cativantes desta série é que, mesmo ao quinto volume de um conjunto de aventuras que seguem a mesma linha essencial - afinal, o objectivo de uma heroína é sempre salvar o dia! -, nunca deixam de existir pequenas surpresas. Neste caso, o desafio está no facto de a Kitty não contar com os seus aliados felinos, o que, além de reforçar a mensagem de confiança nas suas próprias capacidades, que é um dos pontos centrais de toda esta série, acrescenta um percurso um pouco diferente ao enredo. Além claro, nos novos elementos: o Festival da Luz, a Torre Maravilha e a intrigante Dodger, que vêm acrescentar algo de novo a um mundo simples, mas cheio de pontos de interesse.
Também o aspecto visual continua a ser uma das grandes forças, com os tons de negro e laranja e evocar nitidamente os dois elementos centrais da vida de Kitty: a noite e os seus amigos gatos. Junte-se a isto a impressão de movimento e de luz, resultante da forma como as ilustrações mostram as perseguições da Kitty e aspectos como as lanternas e o fogo de artifício, e a inevitável impressão é que a ilustração dá ainda mais vida a uma história já muito animada.
Claro que, sendo um livro pensado sobretudo para crianças, ainda que perfeitamente capaz de proporcionar bons momentos de leitura a quem, como eu, já deixou a infância bem lá para trás, é uma história relativamente simples, sem grandes pormenores nem explicações. Mas isto acaba por ser uma qualidade. Porque lembram-se de quando era fácil acreditar em contos de fadas, em criaturas mágicas e em acontecimentos impossíveis? Pois, este tipo de histórias traz de volta essa simplicidade. E, aos olhos de um leitor adulto, uma agradável nostalgia.
É essa, afinal, a grande beleza destes livros: a capacidade de, durante o tempo da leitura, fazer esquecer as complexidades do mundo, levando-nos numa aventura simples e divertida, onde tudo é possível. Leve, cativante e sempre muito ternurento, é um livro simples, sim, mas doce e encantador.

domingo, 25 de outubro de 2020

Dylan Dog - Até que a Morte vos Separe (Mauro Marcheselli, Tiziano Sclavi e Bruno Brindisi)

Antes de enveredar pela carreira de detective do pesadelo, Dylan Dog foi em tempos um jovem agente da Scotland Yard, dedicado ao seu trabalho e suficientemente idealista para acreditar numa certa noção de justiça. Mas nenhum idealismo dura para sempre, principalmente em tempos conturbados como aqueles. No mesmo dia em que o seu parceiro é morto por uma bomba, Dylan conhece Lillie, uma irlandesa interessante com um fraquinho por batatas fritas. Só que Lillie acredita em causas e tem associações perigosas. E o que parece ser uma paixão ardente pode esconder segundas intenções. Afinal, Dylan e Lillie estão de lados opostos... e não há muitas formas de a história poder acabar bem.
Poderá, talvez, ser uma surpresa, tendo em conta a relativa brevidade do livro, mas um dos primeiros aspectos a surpreender - e um dos mais marcantes, tendo em conta o percurso global - é a complexidade das relações, não só no contexto global da situação, mas sobretudo nos laços entre os protagonistas. É relativamente fácil prever que uma relação entre um polícia inglês e uma simpatizante do IRA não poderá propriamente acabar num final feliz e cor-de-rosa, mas o percurso não deixa, ainda assim, de ser intenso, repleto de momentos dramáticos e também de uma ou outra situação divertida, abrindo caminho para um final poderosíssimo.
Também particularmente notável é o elemento sobrenatural, numa fase da vida do protagonista em que este factor não fazia propriamente parte das suas funções. Nas visões de Lily, mas também na ténue cortina que separa presente e memória, há algo de constante e de intangível que liga Dylan ao futuro - e os leitores a Dylan. Junte-se a isto a construção da própria personagem e o impacto das circunstâncias e o resultado pode não ser obviamente sobrenatural, mas tem, ainda assim, algo de transcendente.
E há algo na arte, que, não sendo propriamente fácil de descrever, é, ainda assim, memorável. Sendo a preto e branco, sobressaem em primeiro lugar os jogos de sombra e a firmeza do traçado na expressão das personagens. Mas sobressai ainda mais o surpreendente pormenor dos cenários, principalmente nos mais complexos, e a sensação quase onírica que deles resulta. Enquanto as páginas voam - e voam realmente... - as imagens vão-se entranhando de forma natural. Mas é impossível não querer voltar atrás, para olhar com mais atenção para a emoção de um rosto, para a sombra de um fantasma que se desvanece ou para o pináculo de uma grande construção.
História de amor jovem, de causas arrebatadoras e de justiça ambígua, trata-se, pois, de uma leitura breve, mas fascinante. Daquelas que se devoram de uma assentada... mas já com a promessa de um regresso em mente. Muito, muito bom.

sábado, 24 de outubro de 2020

Frank e o Amor (David Yoon)

Frank Li tem dois nomes, e às vezes chega mesmo a sentir que tem duas vidas. Uma é a sua vida normal de rapaz americano, no último ano do secundário e prestes a entrar numa boa universidade. Outra é das expectativas da sua ascendência coreana. Todos esperam que ele saiba tudo sobre a cultura, mas Frank nem sequer fala coreano. E sabe que a sua família espera que não siga o rumo da irmã mais velha e opte por namorar com uma boa rapariga coreana. Ora, acontece que o coração de Frank tem outros planos e é por isso que se alia a Joy, uma amiga da família, a fim de fingirem ser namorados e poderem encontrar-se com os seus verdadeiros amados - que, obviamente, não são coreanos. Só que... as coisas não são assim tão simples, e o namoro a fingir começa a tornar-se perigosamente sério.
Provavelmente o aspecto mais marcante deste livro é a capacidade de abordar temas muito sérios sem nunca perder a leveza, mas também sem nunca dar a impressão de que tudo é fácil. Questões como o isolamento das comunidades, e algum consequente racismo, são factores bem evidentes na vida de Frank e condicionam muitas das suas decisões. Junte-se a isto o peso da doença e da mortalidade, bem como a percepção de que tudo na vida - incluindo o amor - é passageiro, e o resultado é uma carga emocional surpreendentemente forte, aligeirada pela leveza e pelo humor que o autor confere à voz de Frank, mas sem lhe retirar nenhum do seu impacto.
É, aliás, um contraste poderoso o que nasce da contraposição entre estes temas fortes e o espírito de aventura que, de certa forma, está também bem vivo nesta história. Afinal, é o último ano do secundário, um ponto de viragem na vida de Frank e dos seus amigos. E, temas profundos à parte, também as relações de amizade, a paixão das pequenas coisas e a interacção naturalmente divertida entre as várias personagens tem o seu lado marcante. Leveza e profundidade - e completam-se tão bem.
E, claro, há amor e descoberta, com todas as ambiguidades e imperfeições que isso implica. Há os momentos dramáticos e os de cumplicidade natural, as escolhas impossíveis e a sensação de que o mundo acabou... até ao dia seguinte. É amor jovem em toda a sua glória, e é interessante notar que, mesmo nos momentos em que as decisões das personagens parecem ligeiramente incompreensíveis, também isso acaba por fazer sentido.
Leve quanto baste e, ao mesmo tempo, surpreendentemente profundo, trata-se, pois, de uma história de amor juvenil com temas sérios em fundo. Cativante, divertido e - nos momentos certos - emotivo, um livro que prende do início ao fim. E que fica na memória bem depois disso.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Deuses Americanos - O Momento da Tempestade (Neil Gaiman, P. Craig Russell e Scott Hampton)

O Pai Supremo foi morto pelos novos deuses, o que significa que a guerra é agora inevitável. E é com esta certeza que, com alguns companheiros relutantes, Shadow parte para o centro da América, a fim de, à sombra de uma trégua, recuperarem o corpo de Wednesday. Só que nada do que Shadow julgava saber é verdadeiro e, face a uma longa e potencialmente mortal vigília ao corpo do seu líder morto, muitas verdades virão à superfície. Mais do que uma guerra, avizinha-se um massacre. E só Shadow poderá dar voz à verdade... se sobreviver à sua descoberta.
Terceiro e último volume desta adaptação do romance de Neil Gaiman, um dos primeiros aspectos a sobressair deste livro é a ainda mais irresistível vontade de ler o original que lhe serviu de base. O que não quer dizer que seja necessário, pois estes três volumes valem pela sua própria natureza, proporcionando uma experiência tão peculiar quanto fascinante, e também repleta de intensidade e emoção. Ainda assim, é impossível não querer reencontrá-la noutro formato.
Outro aspecto notável é o simples facto - bem, ou talvez não assim tão simples - de que toda esta viagem tem sido uma sucessão de enigmas e de ilusões criadas pelos diferentes intervenientes. Sendo o último volume, é aqui que todas as revelações se manifestam. Mas, se o mistério já vinha de trás, o que talvez anunciasse já uma certa turbulência, nada poderia ter prenunciado a tempestade de revelações que é este livro. Nada nem ninguém era o que julgávamos ser. E a forma como isso se manifesta - sobretudo no impacto que tem para Shadow - é algo de absolutamente genial.
Mas o mais impressionante de tudo é a capacidade de despertar emoções tão profundas e uma familiaridade tão grande num mundo que é, afinal, tão peculiar. Deuses, antigos e novos, uma sucessão de fenómenos estranhos e uma vigília tão brutal no aspecto físico quanto mística no aspecto onírico, dão a todo o percurso um ambiente improvável. E, ainda assim, é absurdamente fácil compreender a desolação de Shadow, as mágoas, a perda, a sensação de traição, o sacrifício, a determinação... enfim, toda uma natureza humana complexa e vulnerável, mas com o coração e os valores no sítio certo. O que é em si mesmo um prodígio, numa história como esta.
Intenso, belíssimo e emocionalmente devastador, eis, pois, um final notável para esta tão estranha viagem. Uma viagem pela América - e por outros mundos que não este - mas, sobretudo, pelo coração das personagens. Porque, parafraseando uma delas, há sangue, mas também há gratidão. E o inverno foi longo... Mas fascinante, acima de tudo.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Faithless - Volume Um (Brian Azzarello e Maria Llovet)

A vida de Faith não é propriamente empolgante. Demonstra um certo interesse por feitiços e magia, mas não parece ser muito mais do que uma forma de combater o aborrecimento. Tudo muda, no entanto, no dia em que se depara com Poppy. Subitamente fascinada, vê-se arrastada para um mundo de arte bizarra, sexo desenfreado e acontecimentos inexplicáveis que podem ou não ter uma base sobrenatural. O que começa por ser uma atracção bizarra, mas aparentemente inofensiva, traz, afinal, segredos mais sombrios. Mas é possível que Faith esteja já demasiado envolvida para se afastar... ainda que possa querer fazê-lo.
Provavelmente o aspecto mais curioso deste livro é que os mesmos aspectos que o tornam fascinante são os que o tornam também ambíguo. A protagonista, com a sua magia aparente e o tédio das suas rotinas, consegue despertar por vezes indiferença e outras vezes empatia. Poppy e Louis, com o seu mundo de brilhos, loucura, sexo e sobrenatural, nunca assumam uma identidade clara, razão pela qual o delicado equilíbrio entre erotismo e horror é sempre tão surpreendente. E quanto à visão da arte enquanto exposição pessoal... bem, é um conceito em si mesmo ambíguo.
A própria arte parece reflectir esta ambiguidade, com o contraste entre cores vivas e cenários obscuros, entre os momentos de erotismo e as manifestações sinistras de um sobrenatural ainda bastante inexplicável. E, sendo certo que fica muita curiosidade insatisfeita, até porque muito fica por explicar neste primeiro volume, é quase impossível desviar os olhos da página, principalmente nos momentos mais hipnóticos da dita criação artística.
Um último ponto que sobressai é a quase omnipresença da tentação. Sendo uma história de sexo e destruição, em que uma das personagens tem, no mínimo, uma aura diabólica e em que há uma assumida influência da Divina Comédia, é impossível não ver como todo este volume gira em torno das tentações de Faith. Se é fácil compreendê-las? Nem sempre. Mas é perfeitamente visível uma luta interior mais ou menos equilibrada entre a pessoa que era e a que os seus novos... amigos... estão a moldar.
Deixa sentimentos ambíguos, é verdade, até porque está muito longe de ter dado todas as respostas. Mas, mais do que isso, deixa um estranho e hipnótico fascínio pela sua mistura de sedução e de horror, de arte e de sobrenatural, de tentações terrenas... e movimentações infernais. E isso é mais do que suficiente para guardar Faith na memória e querer saber o que lhe acontece a seguir.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Manual da Solidão (Tiago Moita)

A existência, no quotidiano e no seu mais místico. A introspecção transmutada em visão surreal da vida, tanto nos gestos mais banais como nos mais poéticos. E uma figura sem data de nascimento que volta às suas introspecções passadas para se encontrar com novos pontos de vista. É esta a base deste livro, uma viagem ao desassossego pessoano que assume uma forma diferente, mais... pessoal.
A primeira coisa que importa referir sobre este livro é que, apesar dos laços assumidos com a figura pessoana de Bernardo Soares (e com o seu Livro do Desassossego), não é propriamente necessário ter algum conhecimento prévio desta obra para captar as ideias fundamentais deste livro. Sim, é fácil reconhecer influências pessoanas (ao ponto de, por vezes, vir ao pensamento a sua enigmática relação com Crowley), mas as ideias e os pensamentos valem por si mesmos, o que significa que, com essas relações ou sem elas, a reflexão continua a ter impacto.
É também um livro surpreendentemente complexo, se tivermos em conta a relativa brevidade. E mais surpreendente ainda pela concisão com que consegue traçar imagens inesperadas e, às vezes, elaboradas, contrastando-as depois com imagens do quotidiano. Claro que, havendo sempre (ou quase) um elemento místico em torno destas perspectivas, o maior ou menor impacto destas visões poderá depender um pouco das crenças de cada um. Ainda assim, não deixa de ser fascinante a vasta construção que emerge de um livro que é, afinal, relativamente sucinto.
O mais interessante é, contudo, mais simples, pois, sendo embora um toco coeso, cada reflexão - se assim lhes quisermos chamar, pois há as que se voltam para o interior e outras que mais parecem contemplar o mundo - é também perfeitamente completa, tendo a surpreendente capacidade de se entranhar na memória, às vezes, em poucas palavras. Crenças à parte, e visões mais místicas ou mais telúricas, o que é certo é que não faltam frases memoráveis neste livro. E é isso, acima de tudo, o que mais fica no pensamento.
Breve, mas surpreendentemente complexo, introspectivo, mas sempre bastante cativante, trata-se, em suma, de um livro difícil de descrever, mas memorável na sua singularidade. Se esta solidão complementa outro desassossego? É possível. Mas defende-se bem sozinha.

sábado, 17 de outubro de 2020

Os Rapazes de Nickel (Colson Whitehead)

Inspirado por Martin Luther King, Elwood Curtis sempre quis construir para si uma vida melhor, apesar das restrições da segregação, e participar na luta pela igualdade de direitos. Mas uma boleia inocente a caminho da universidade acaba por o enviar para um reformatório. E a Nickel não é um reformatório qualquer: sob a aparência de uma escola dedicada à regeneração dos mais jovens e ao trabalho de os reenquadrar na sociedade, esconde-se um sistema secreto onde a sobrevivência se consegue com o mínimo e a única forma de sair de lá com vida é baixar a cabeça e obedecer.
Um dos primeiros aspectos a ter em mente durante a leitura deste livro é o facto de ser baseado em factos reais. É algo, aliás, impossível de esquecer, não só pelo cuidado com que o autor apresenta as suas referências no final, mas sobretudo pelo realismo que impregna cada página desta história. É assustadoramente fácil imaginar os acontecimentos narrados deste livro, sentir a revolta e o medo e a dor e as esperanças devastadas das personagens, questionar o mundo em que se movem e tocar de perto a ténue linha que separa a resistência da resignação. E é esta sensação de ter acompanhado toda a viagem que faz com que este livro perdure na memória.
Outro grande contributo para tornar este livro memorável vem da oscilação entre diferentes períodos. O foco está sobretudo no tempo passado por Elwood em Nickel, mas a história projecta-se a espaços para o futuro, para a vida depois da saída e para o momento em que a verdade da escola vem a público. Além de funcionar como uma poderosíssima reflexão sobre os efeitos duradouros do trauma, esta mudança temporal tem ainda o condão de acrescentar um pequeno grande mistério à ligação entre o Elwood de antes e depois de Nickel. Mistério esse que, embora por vezes não pareça existir, abre caminho para um final simplesmente devastador.
E há todo o contexto, claro, e a forma como molda todo o percurso das personagens. A segregação e o racismo surgem também como personagens desta história, tal é o poder que têm de moldar vidas inteiras. Junte-se a isto a impressionante consciência de Elwood e a forma como move cada um dos seus actos e há, ao longo do caminho, toda uma impressionante lição de humanidade. De valores nobres mesmo em tempos de caos, de persistência face ao abismo, do mais improvável dos optimismos. É também por isto que Elwood se torna admirável. E que o final tem o impacto que tem.
Tudo converge, pois, para fazer desta história uma leitura memorável: a intensidade emotiva, a perturbadora realidade do contexto e a alma impressionante de um protagonista demasiado bom para a sua condição. Junte-se a isso a escrita belíssima e o resultado nunca poderia ser menos do que marcante. E inesquecível, de facto.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Avó Sarilho: Birras de Estrela (Sophy Henn)

A Avó Sarilho pode ser uma personalidade bizarra - afinal, o nome diz tudo, - mas sempre teve o condão de resolver crises e acalmar comportamentos incorrectos com os seus planos mirabolantes. Mas eis que o seu ponto fraco começa a ser revelado! Com um passado no mundo do espectáculo, a Avó Sarilho sempre teve um fascínio especial pelas luzes da ribalta. E, quando a Junta de Freguesia decide organizar um espectáculo de Natal onde todos podem participar, a fama - ou, bem, as luzes - começam a subir-lhe à cabeça. Só há uma forma de salvar o espectáculo: desta vez, vai ter de ser a Jeanie a sair-se com um plano mirabolante.
Parte do que torna estes livros tão divertidos é a facilidade com que nos transporta para a nostalgia da infância. Neste caso, temos a peça de Natal da escola, um espectáculo de variedades e o entusiasmo irresistível com a neve. Sabemos como é, certo? E esta leve e divertida leitura consegue, além de nos contar uma história cativante, recordar esses tempos mais simples, o que basta para tornar a aventura mais próxima e mais envolvente.
Mas passemos à história. O mais surpreendente nesta nova aventura da Avó Sarilho é como acrescenta ao habitual percurso cheio de peripécias e situações caricatas uma curiosa inversão de papéis. Desta vez, em vez de lidar com as birras e problemas dos outros, é a Avó Sarilho que se deixa ofuscar pelas suas ambições. E, assim, continuando bem vivas as características dos volumes anteriores, este novo livro acrescenta uma nova perspectiva: a de os adultos às vezes também exageram. Mesmo aqueles que geralmente se portam bem.
E, claro, é um livro pensado para os mais novos, ainda que perfeitamente capaz de cativar leitores de todas as idades. Não surpreendem, por isso, algumas das suas características: a leveza, a simplicidade com que certos aspectos se resolvem e a facilidade com que certas estranhezas se tornam naturais (como os curiosos trajes da Avó Sarilho, por exemplo). Podia ser uma história mais longa? Podia, até porque as relações vão evoluindo pouco a pouco. Mas a verdade é que não lhe falta nada de essencial.
Simples, divertida e cheia de cor (e lantejoulas): assim é esta nova aventura da Avó Sarilho. Uma leitura leve e inocente quanto baste, mas capaz de nos transportar para tempos mais simples, arrancando pelo caminho umas boas gargalhadas.

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Poemas em Tempo de Peste (Eugénio Lisboa)

Dadas as vicissitudes provocadas por um certo coronavírus, é bem provável que 2020 seja recordado durante bastante tempo como o ano da pandemia. E, embora não sendo propriamente uma peste medieval, trouxe consigo muitas mudanças, a começar pelos meses de confinamento. Bem, é desses meses que data a grande maioria destes poemas "em tempo de peste". Alguns um pouco mais introspectivos, outros até melancólicos e outros, claro, destinados a - como diz o autor - "lavar o fígado" em forma de sátira. O resultado? Bem, o resultado é, no mínimo, interessante.
Se tivermos em conta o título deste livro, não é propriamente uma grande surpresa que a tão omnipresente Covid-19 seja fonte e tema de vários destes poemas. Mais surpreendente é que esta influência conduza a associações menos óbvias, mas igualmente certeiras. Ao longo deste pequeno livro, há espaço para um pouco de tudo, desde a reflexão sobre certos efeitos do confinamento, como um maior isolamento e até uma certa solidão, às manifestações mais bizarras da vida política e social do país. Há espaço para a introspecção, para o expressar de afectos e tristeza, e há espaço sobretudo para a sátira, mais ou menos direccionada, mais ou menos dura, mas sempre bastante presente neste livro.
Outro aspecto que sobressai é a presença de outros autores - sob a forma de versos específicos sobejamente conhecidos - como ponto de partida para uma formulação muito distinta. Basta olhar por exemplo para a versão alternativa da Nau Catrineta ou para a reconstrução de um "Amor é fogo que arde..." de uma maneira diferente. São bases conhecidas para algo que acaba por se tornar diferente, moldando uma mistura de familiar e de novo que se torna especialmente cativante.
Um último ponto que importa destacar são as assinaturas, se assim lhe podemos chamar, complementadas por breves e certeiras observações sobre o conteúdo dos poemas. Pode ser a simples admissão do já referido "lavar de fígado" ou uma caracterização do estado de espírito que inspirou o poema. O que é certo é que estas observações fazem do autor como que uma personagem, tornando a leitura mais próxima, mesmo naqueles poemas em que o impacto parece ser um pouco menor.
Breve, mas muito peculiar e com um surpreendente equilíbrio entre sátira e introspecção, trata-se, pois, de uma leitura ligeira, mas sempre cativante. Reflexão sobre o confinamento, sátira a algumas figuras peculiares destes chamados "tempos de peste" e reconstrução, até, de uma certa nostalgia, um livro que se lê em muito pouco tempo... mas que deixa a vontade de lá regressar.

domingo, 11 de outubro de 2020

Pequenos Acidentes (Sarah Vaughan)

 Jess é uma mãe dedicada, do tipo que faz tudo pelos filhos e se esforça até à exaustão para que tudo seja perfeito, mas parece andar mais abatida desde o nascimento de Betsey. Liz é uma das suas melhores amigas, mas o seu trabalho como pediatra e as suas próprias complicações pessoais fizeram com que as duas se afastassem um pouco. É, pois, um choque quando Liz é informada de que Jess está nas urgências. Betsey tem uma lesão no crânio e a explicação apresentada por Jess não parece bater certo com aquilo que Liz pode ver. Subitamente, começa a formar-se uma suspeita. E se foi Jess a responsável? Será possível? E, se assim for, será que Liz alguma vez a conheceu realmente?
Uma das principais qualidades deste livro - e tem bastantes - é a forma como, do primeiro capítulo até às últimas páginas, a autora consegue manter sempre viva a aura de mistério que envolve toda a situação. Alternando entre diferentes personagens, apresenta múltiplas possibilidades para explicar o sucedido, possibilidades essas que vão ganhando força face às novas revelações que vão surgindo, mas também à interacção entre personagens, o que faz com que as perspectivas vão mudando, alterando também a opinião de quem lê. A verdade final pode ser só uma, mas cada personagem tem os seus pontos de vista e a forma como estes influenciam a percepção das outras personagens é algo de particularmente fascinante.
Outro aspecto interessante surge da própria natureza do caso e da constante ambiguidade que o envolve. Ou foi acidente ou foram maus-tratos. Ou poderá haver outra explicação? Esta dúvida domina grande parte do enredo, mas é apenas o início de uma ambiguidade mais vasta, pois nenhuma das personagens é linear. Jess debate-se com as suas obsessões e dúvidas, tomando decisões impulsivas e alimentando as suspeitas que recaem sobre ela. Liz é, para todos os efeitos, uma médica competente, mas assombrada pelos erros e pelos fantasmas da sua própria família. Ed ama a mulher e quer
acreditar nela, mas o facto de ser um marido ausente faz com que tenha menos conhecimento do que devia. E há ainda outras figuras que, de presença mais discreta, têm também, à sua maneira, histórias e sentimentos complexos.
Claro que, tendo em conta tudo isto, não surpreende que haja também um grande impacto emocional. Surge logo nas primeiras páginas, com a sua visão de isolamento e desespero, seguida da possibilidade de uma agressão a uma criança. E mantém-se ao longo de todo o livro, expandindo-se para lá do mistério central para a vida familiar das várias personagens e para as relações de afecto e de amizade que, com os seus desvios e peculiaridades, parecem, ainda assim, ligar todos os intervenientes. Há, além disso, momentos verdadeiramente poderosos, que, além de estarem geralmente relacionados com uma grande revelação, tornam as personagens mais próximas, mais vivas. Mais reais.
O que fica deste livro é, pois, a imagem de uma história muito marcante. Intenso, surpreendente, emotivo e particularmente eficaz na sua construção de uma zona cinzenta para o que move as diferentes personagens, cativa da primeira à última página e fica no pensamento bem depois do fim... tal como as personagens que o habitam, aliás.

sábado, 10 de outubro de 2020

Falar em Público (Ana Andrade)

Há quem tenha mais medo de falar em público do que da própria morte, mas, mesmo pondo de parte os casos mais extremos, todos - ou quase - todos sentimos um certo nervoso miudinho ante a perspectiva de falar para uma plateia. A verdade, no entanto, é que, a não ser que vivamos em regime de isolamento (tempos de pandemia, à parte), todos falamos, em certa medida, em público. Com familiares, amigos, colegas de trabalho... e isso não nos assusta, pois não? Bem, eis um ponto de partida. E, a partir daí, importam sobretudo a prática e ter bem presentes as características que definem um orador... nunca esquecendo, contudo, que não existem fórmulas universais.
Partamos deste ponto: não existem fórmulas universais... até porque, se existissem, todos seríamos magníficos oradores. Este simples facto é algo que não só está presente em todo o livro como fundamenta a sua característica essencial, ou antes, aquilo que não é. Não é um livro de dicas fáceis e muito menos de soluções milagrosas, chegando mesmo a surpreender pela profundidade com que aborda não só os recursos, mas a própria história da arte da retórica. E, assim, não vamos chegar ao fim deste livro com todo o conhecimento necessário para convencermos o mundo inteiro da nossa mensagem. Não, mas é um ponto de partida. O resto virá da prática, do aprofundar de conhecimentos... e, bem, das nossas características individuais.
Não é - nem pretende ser - um livro milagroso, mas é muitíssimo interessante, não só pela utilidade das perspectivas que apresenta, mas também pela forma como as complementa com um bem desenvolvido, ainda que conciso quanto baste, contexto histórico e filosófico. Às origens da retórica e a sua reputação nem sempre boa, junta-se o percurso individual de vários oradores, natos ou construídos e um conjunto de perspectivas e classificações sobre esta tão importante arte. E quanto ao medo... Pode não conseguir afastá-lo, mas dá-lhe outra perspectiva. Até porque o tal nervoso miudinho pode funcionar como estímulo a uma melhor preparação.
Sendo um livro dedicado à forma de exprimir de uma mensagem, sobressai ainda a forma de expressão da autora. Ainda que um texto escrito não seja uma palestra, é curiosa a sensação que, ao longo da leitura, vai surgindo de que a autora está praticamente a falar connosco. Em parte devido à fluidez, em parte devido ao delicioso sentido de humor, é quase como se pudéssemos ouvi-la, o que torna também a mensagem mais clara.
Útil, interessante e muito agradável, trata-se, pois, de um belo guia para enfrentarmos o medo do público e, sobretudo, aprendermos a falar melhor. Não precisa de ser para uma grande audiência, pois, sem grandes revoluções ou milagres, as ideias extraídas deste livro podem também ser-nos muito úteis na comunicação de todos os dias. E é exactamente isso que se espera, certo?

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Killian's Dead (Josie Jaffrey)

Jack não acredita realmente no amor. A única coisa que a faz sentir-se completa é a música e é só isso que lhe importa. Mas tudo muda no dia em que conhece Winta. Bela e fascinante, Winta fá-la sentir coisas que nunca antes sentiu. E então desaparece e Jack simplesmente não consegue esquecê-la. Segue, pois, as poucas pistas que tem em busca do seu recém-descoberto amor. Mas não faz ideia daquilo em que se está a meter.
Um dos aspectos mais interessantes deste conto é que não parece um conto. Tudo parece completo e, mais do que isso, há uma tal intensidade nos sentimentos de Jack e na descoberta gradual do que ralmente se passa que a história parece maior do que as suas poucas páginas. É também o início de uma série, o que torna tudo mais impressionante, pois cria o cenário perfeito e faz com que seja impossível não querer saber o que virá a seguir.
Também o elemento sobrenatural é bastante intrigante, sobretudo devido à revelação gradual. Há, ao longo de toda a história, muitas coisas que não batem certo, pelo menos para Jack, mas que poderiam igualmente ser explicadas por um desaparecimento "normal". Bem, isto acrescenta à intriga e ao poderoso crescendo que conduz a um final praticamente perfeito. Ambíguo quanto baste, pois, como disse, é apenas o início desta série, mas também muito adequado.
Relativamente breve, mas bastante satisfatório, eis, pois, um início bastante brilhante para uma série muito prometedora. Mal posso esperar para saber mais sobre Jack e as suas próximas aventuras.

Divulgação: Novidade Chá das Cinco

Em 2000, Vanessa Wye é uma adolescente de 15 anos ambiciosa e solitária. Sonhando ser escritora, não se importa de estar sempre sozinha, mas abre uma exceção quando Jacob Strane, o seu professor de inglês, lhe começa a dar mais atenção. Antes que Vanessa tenha consciência, iniciam uma relação, e ela acredita que ele realmente a ama.
Em 2017, uma ex-aluna acusa Strane de abuso sexual. Vanessa fica perante uma escolha impossível: ficar calada, acreditando que se havia envolvido voluntariamente naquela relação… ou redefinir a sua grande história de amor como mera violação. Por um lado, não quer rejeitar esse primeiro amor, o homem que a transformou e tem sido uma presença constante na sua vida. Por outro, será possível que ele seja muito diferente do que ela pensava? Será ela apenas mais uma vítima?
Alternando entre passado e presente, Minha Sombria Vanessa é um retrato excecional de uma adolescência conturbada e das suas consequências, levantando questões cruciais sobre liberdade, consentimento, abuso e vitimização, captando de forma brilhante uma cultura em mudança que transforma as nossas relações e a própria sociedade.

KATE ELIZABETH RUSSELL nasceu no Maine. É formada em Escrita Criativa pela Universidade do Kansas. Pode consultar a página da autora em http://kateelizabethrussell.com

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Traição (V. S. Alexander)

Natalya Petrovitch sabe que vive num mundo em que qualquer transgressão será severamente punida. Mas o seu tempo como enfermeira voluntária na Rússia revelou-lhe claramente os horrores da guerra e confirmou-lhe a verdadeira face do regime nazi. É com este conhecimento e atraída por alguns laços de amizade que Natalya se vê envolvida na Rosa Branca, um movimento de resistência pacífica que protesta contra as atrocidades do Reich através da distribuição de folhetos subversivos. Natalya sabe os riscos que corre e que há olhos à espreita em toda a parte. Mas a traição pode vir também daqueles em quem julga poder confiar... e, quando vier, as consequências serão terríveis.
Provavelmente o aspecto mais impressionante deste romance está na forma como até as aparentes imperfeições acabam por fazer especial sentido na construção da história. Enquanto protagonista, Natalya mostra-se inesperadamente ingénua, pois, embora ciente dos riscos e da necessidade de confiar, acaba por ser movida também por um certo sentimentalismo. Já quanto à origem da traição, é verdade que o momento tem um enorme impacto, mas quanto à identidade, as suspeitas eram bastante claras desde o início. E o interessante é que nenhum destes dois aspectos prejudica a história. Muito pelo contrário, pois é a convergência das imperfeições destas duas personagens que faz com que o percurso posterior tenha tantos momentos marcantes.
Outro aspecto que sobressai é o equilíbrio entre a construção de um percurso pessoal para a protagonista e os vários elementos e figuras históricas que surgem ao longo do caminho. Destacam-se, claro, a Rosa Branca e os seus elementos, cuja história trágica e fascinante ganha vida ao longo destas páginas. Mas também a experiência de Natalya na prisão e no asilo, bem como num campo de prisioneiros de guerra, mostra um contexto cuidadosamente descrito que acrescenta realismo à história ficcional.
O maior impacto vem, ainda assim, do aspecto emocional. Nem sempre é fácil entender as decisões de Natalya, mas desde o início que a opressão do mundo em que se move é palpável. Além disso, à medida que a história vai evoluindo, vão-se sucedendo momentos cada vez mais avassaladores. Grandes traições e rasgos de coragem, a sombra iminente do fim e o desespero do isolamento, a adrenalina da fuga e a vaga esperança de um fim para o caos... tudo isto ganha forma ao longo deste livro. E tudo isto fica na memória bem depois do fim.
Meticulosamente construído e muito cativante na história que tem para contar, trata-se, acima de tudo, de um livro que emociona. Intenso nos grandes momentos, marcante no retrato que traça de um período negro, e excepcional na sua visão de bravura em tempos desesperados, não é um livro de personagens perfeitas. Mas são precisamente essas imperfeições que o tornam tão bom.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

O Homem que Matou Lucky Luke (Matthieu Bonhomme)

Mais rápido do que a própria sombra e sempre do lado da justiça, Lucky Luke construiu uma reputação tão poderosa que o segue para onde quer que vá. O que pode nem sempre ser positivo. Ao passar por Froggy Town, vê-se envolvido na investigação ao assalto a uma diligência, alegadamente realizado por um índio. A verdade, contudo, é outra. E, ao criar atritos com os irmãos que parecem dominar a cidade, Luke pode muito bem estar a pôr a vida em risco. Afinal, a sorte não dura para sempre...
Há histórias e personagens que, ou porque crescemos com elas e nos levam de volta a tempos mais simples, ou porque ressoam, às vezes inexplicavelmente, dentro de nós, se tornam intemporais. Lucky Luke é uma dessas personagens. Até quem, como eu, nunca leu os livros, reconhece a personagem da televisão. E, assim, a primeira impressão que fica ao mergulhar nesta aventura é a de um regresso a um mundo já conhecido.
Sendo uma figura tão conhecida, outro aspecto inevitável é a comparação entre o Luke deste livro e o que já vimos noutras andanças. Importa, por isso, destacar o texto final, que explora um pouco esta perspectiva e salienta algumas particularidades sumamente intrigantes, como o uso das cores planas em certos momentos. Não é algo que chame logo a atenção ao longo da leitura, talvez porque a história absorve toda a atenção, mas não deixa de ser ainda um ponto interessante e um elemento peculiar a salientar.
E quanto à história... Bem, tendo em conta o título, dificilmente poderia ser mais intrigante. Mas há, acima de tudo, dois aspectos a destacar. Primeiro, a forma como, num enredo que é tipicamente o de um western, incluindo crimes, tiros e a iminência de um duelo, surgem também elementos inesperados como a difícil relação de Luke com o tabaco e a surpreendente dinâmica familiar dos Bone. E, em segundo lugar, a também surpreendente ambiguidade moral resultante dessa mesma dinâmica. Não deixa de ser a justiça a reinar, mas há algo de inesperadamente profundo - ainda que também com a dose certa de humor - na forma como a situação dos Bone se desenvolve.
Parte regresso à infância, parte revelação, trata-se, acima de tudo, de uma aventura empolgante, surpreendente e com inesperados matizes de ambiguidade - ainda que com os valores sempre no sítio certo. E, independentemente do título, independentemente da história... é também uma belíssima confirmação de um facto. Para quem o conhece, Lucky Luke é imortal.

domingo, 4 de outubro de 2020

O Bebedor de Tisanas (Américo Brás Carlos)

Plantada algures entre a nostalgia e a paisagem, uma mente divaga. Percorre rasgos de infância, amores que se desvaneceram, lugares que ficaram para trás, mas permaneceram guardados na memória com os seus encantos especiais e um certo mapa de afeições dispersas que convergem na memória das palavras. Fá-lo em poesia, mas com a simplicidade do que brota da alma. E, talvez por isso, leva-nos consigo na viagem.
Nunca é muito fácil descrever um livro de poesia, principalmente quando são como este, em que a impressão que fica é tanto emotiva e de emoções como do impacto das palavras propriamente ditas. Há, ainda assim, alguns aspectos que se destacam: primeiro, a sensação de proximidade que resulta de uma poesia muito pessoal, que parece abrir o coração e as memórias do sujeito poético; depois, o contraste entre a brevidade e relativa simplicidade estruturais e o impacto das palavras - e das imagens - que subitamente irrompem dos versos; e, finalmente, a coesão com que faz que o conjunto dos poemas não seja só um conjunto, mas uma viagem maior.
Partindo desta coesão, sobressai ainda um outro aspecto. Como é natural, haverá, ao longo da leitura, poemas que deixam uma marca mais intensa, enquanto outros, talvez pelo cariz mais descritivo, assumem mais o tom de uma contemplação distante. Ainda assim, todos têm o seu lugar e o seu sentido no todo, o que gera a curiosa impressão de um livro de poesia que se lê quase como um romance. Estamos lá ao longo de todo o caminho: para o evocar de memórias, para o contemplar de paisagens, para os sentimentos que entendemos e para os que talvez não possamos entender.
É verdade que a viagem é breve, mas não deixa de ser muito interessante. Feita de impressões de afecto e de nostalgia, de paisagens, palavras e até de um certo silêncio, gera um todo composto por partes diversas, umas mais notáveis que outras, mas todas cativantes. E é esta, em suma, a imagem que fica no fim: a de uma poesia simples, mas capaz de contar histórias nos intervalos das palavras.

sábado, 3 de outubro de 2020

Soldados de Salamina (Javier Cercas e José Pablo García)

Frustrado com uma carreira de escritor que pouco mais lhe trouxe do que dissabores, Javier decide voltar ao jornalismo, sem saber que será este a dar-lhe a história que a imaginação nunca lhe proporcionou. Tudo começa com uma entrevista, onde ouve falar pela primeira vez do fuzilamento falhado de Rafael Sánchez Mazas, fundador da Falange e, posteriormente, célebre figura do regime franquista. Intrigado pela história, Javier começa a seguir as pistas do mistério. Mas a história que tem para contar - e que está convicto de que não será um romance - leva-o por longos caminhos. E só com a ajuda de outro escritor, e uns quantos empurrões da sua improvável namorada, é que Javier poderá encontrar as respostas que lhe faltam.
A primeira coisa que importa dizer sobre este livro é que, se fizerem como eu e lerem esta adaptação antes do romance que lhe serviu de base, vão querer ler também o romance. Pelo menos, foi essa a sensação imediata que me ficou ao fechar o livro. Porquê? Porque, embora sendo uma adaptação para um novo formato, em que o aspecto visual assume uma grande importância, parte do que fica na memória é também a beleza das palavras. E, assim sendo, é praticamente impossível não querer conhecer a origem de tudo isto.
Outro aspecto que sobressai é a forma como, mais até do que a própria expressividade dos rostos, é o jogo de tons que parece evocar com mais força o ambiente emocional da história. No percurso de Sánchez Mazas, dominam sobretudo os azuis e as sombras, o que parece evocar com estranha precisão o ambiente de guerra e também o facto de ser uma história vinda do passado - ainda que haja outro passado, o de Bolaño, que assume cores totalmente diferentes. Já no percurso de Javier, dominam cores mais quentes, e até rasgos de cores vivas, particularmente eficazes nos momentos dedicados à improvável Conchi.
E quanto ao enredo em si, é inesperadamente intrincado e, ao mesmo tempo, surpreendentemente cativante. Sánchez Mazas pode ser a base da história, mas Javier, na sua busca de um herói, é o verdadeiro protagonista. E o desenvolvimento de novas perspectivas à medida que ele vai descobrindo novas peças do mistério faz com que seja praticamente impossível parar de ler. Além disso, o contexto histórico é naturalmente complexo, o que faz com que as sucessivas revelações acrescentem também complexidade a este viagem individual a um passado conturbado.
Fascinante na trama, visualmente muito cativante e com uma expressividade no texto que parece insinuar ligações fortes ao original, trata-se, pois, de um livro notável em todos os aspectos. Uma viagem a diferentes passados e à descoberta da história enquanto percurso pessoal.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Correntes (Patrícia Morais)

Muito antes de saber sequer da existência de Diabolus Venator, já a vida de Ada era tudo menos normal. Obrigada a desistir dos estudos para cuidar dos irmãos, tendo de lidar ao mesmo tempo com um pai alcoólico e violento, Ada foi-se habituando a suportar... pelo menos, até poder pôr o seu plano em prática. Só que os planos... têm formas surpreendentes de correr mal e Tide Springs é conhecida pelos seus fenómenos estranhos e lendas de criaturas marinhas. E todas as lendas têm um fundo de verdade...
Não é propriamente novidade para quem acompanha o que eu vou escrevendo por aqui que eu e o formato digital não nos entendemos mesmo. Mas há situações em que se justifica uma excepção. Ora, sendo esta uma história relativamente breve de um mundo que já conheço e aprecio, impossível seria não quer conhecer esta história complementar. E vale muito a pena.
Sendo, como já disse, uma história relativamente breve, uma das principais surpresas é a quantidade de reviravoltas que contém. A linha central é muito simples, a de uma vida já difícil que se torna ainda mais difícil com a entrada em cena do sobrenatural. E, afinal, já sabemos o que se seguirá depois para Ada. Mas ver o seu ponto de partida, com a sua origem já dolorosa e o impacto do percurso que a conduz aos caçadores não deixa, ainda assim, de ser fascinante e, ao longo do caminho, são vários os momentos emotivos a emergir por entre toda a acção.
E há ainda um outro ponto: é que, ao tornar protagonista uma personagem que era relativamente secundária na história principal, cria-se uma maior proximidade, o que significa que, além da envolvência do enredo propriamente dito, esta pequena história consegue também dar uma nova perspectiva da Ada futura.
Breve, mas muito cativante, trata-se, pois, de uma história que, apesar de centrada na sua protagonista, permite um enquadramento maior do contexto a que pertence. Além, claro, de proporcionar uma intensa e surpreendente leitura, simples no essencial, mas cheia de surpresas.