segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

O Principezinho (Louise Greig e Sarah Massini)

Um piloto despenha-se no deserto e, ao abrir os olhos, depara-se com uma criança singular. Não sabe de onde veio nem como foi ali parar, mas um pedido inocente - desenha-me uma ovelha - serve de ponto de partida para grandes revelações. É que o principezinho não é apenas um rapaz. Veio de um planeta muito especial e deixou para trás algo de igualmente especial, que molda tudo o que faz...
Todos conhecemos esta história. Estudamo-la na escola, ouvimos falar dela muitas vezes, apaixonamo-nos por ela - ou não, mas mesmo assim lembramo-nos. E, sendo algo tão conhecido, é quase irresistível a curiosidade de saber o que tem esta adaptação de diferente, que impacto novo pode ter, que formas pode assumir que não venham já do original. Bem, tem o suficiente de diferente, o impacto surpreendentemente forte de uma versão condensada e uma componente visual que, sendo ao mesmo tempo nova, contém rasgos de familiaridade.
Parte do encanto deste livro vem, aliás, deste equilíbrio entre o novo e o familiar. A história é muito mais concisa, e até frases cruciais do original que estão ausentes desta versão. E ainda assim, toda a essência está presente, é fácil reconhecer este principezinho e a ternura da história que tantos leitores cativou. Já nas ilustrações, há um mundo de diferença e uma imensidão de pormenores deliciosos. Ainda assim, reconhecemos as expressões e as figuras familiares. E quanto ao elo emocional... bem, é curioso como, sendo muito mais conciso, consegue até despertar emoções mais fortes - como uma dose de ternura concentrada em poucas, mas poderosas, páginas.
É, de certo modo, um caso singular, pois o original já era perfeitamente adequado para leitores de todas as idades. Esta adaptação, contudo, acrescenta uma simplicidade que talvez torne a história mais acessível a leitores mais novos, proporcionando um bom ponto de partida para quem ainda não conhece a história que lhe serve de base. E para quem já a conhece... bem, é uma mistura de reencontro e descoberta particularmente enternecedora.
Visualmente magnífico, carregadinho de ternura e com um equilíbrio perfeito entre o familiar e o novo, trata-se, em suma, de um novo olhar à mesma história, que ora a simplifica, ora a expande, transformando-a sem lhe retirar a essência. Resume-se numa palavra, portanto: lindo.

sábado, 26 de fevereiro de 2022

A Arte de Vencer Uma Discussão Sem Precisar de Ter Razão (Arthur Schopenhauer)

Quando surge um conflito de ideias, assumem-se muitas vezes papéis antagónicos, em que cada um dos lados parte do princípio de que está absolutamente certo, estando o outro flagrantemente errado. Num mundo ideal, este tipo de discussões seria movido pela procura da verdade e só esta atribuiria a vitória da discussão a um ou outro lado. Mas a obstinação está na natureza humana, e muitas vezes importa mais a vitória do que a verdade. Como vencer, então, uma discussão - mesmo que a verdade não esteja assim tão perto? Bem, é a essa pergunta que este pequeno livro pretende responder.
Um dos primeiros aspetos que importa referir sobre este livro é que, apesar da relativa brevidade, exige o seu tempo de assimilação. Primeiro, pela forma como analisa os contrastes entre estar certo - conhecer a verdade - e estar certo - impor a própria verdade ao outro, ainda que esta seja falsa, o que leva a uma inevitável reflexão sobre a natureza humana e alguns dos seus aspetos menos luminosos. Depois, pela grande quantidade de estratégias e pelas particularidades de cada uma delas, sendo que algumas são óbvias, mas outras nem tanto.
Também a escrita é algo densa, embora seja, de certo modo, inevitável, uma vez que se trata de um livro sobre os meandros e complexidades do debate. Ainda assim, e apesar deste registo, não deixa de ter o seu lado cativante, para o que contribuem as secções relativamente curtas e os vários exemplos que vão sendo dados ao longo de cada explicação.
Finalmente, importa olhar de novo para a parte do material para a reflexão, pois, além da já referida obstinação da natureza humana, levanta ainda outra questão. O que é a verdade? Ao longo deste livro, traçam-se várias distinções, distinguindo a verdade absoluta do que é verdade para um indivíduo ou grupo de indivíduos. E assim, esta abordagem à arte de debater serve também de ponto de partida para uma ponderação sobre a forma como vemos o mundo: o que para nós é verdade, nem sempre o será para todos. E quando isto se verifica, a discussão torna-se quase incontornável.
Breve, mas surpreendentemente complexo, trata-se, em suma, de uma leitura cativante na sua exigência, quase como um manual de estratégia, mas que não se esgota nos passos apresentados. Uma boa base para treinar a arte do debate e também para refletir sobre os absolutos da vida - se é que existem realmente.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Crime no Campo de Golfe (Frédéric Brémaud e Albero Zanon)

Hercule Poirot está aborrecido. E, por isso, quando recebe uma carta a pedir a sua ajuda para resolver uma questão de vida ou morte, a reação é imediata. Na companhia do seu fiel amigo, o capitão Hastings, parte ao encontro do seu potencial cliente. Chega, porém, demasiado tarde. O homem foi assassinado, e resta-lhe agora apenas descobrir o responsável. O problema é que não faltam suspeitos...
Parte do que torna esta leitura tão cativante, à semelhança dos outros volumes da coleção, é que, sendo embora uma adaptação, se lê perfeitamente sem qualquer conhecimento prévio do romance original. A história é um todo completo, e não lhe falta nada de essencial, ainda que possa certamente ser também um belo reencontro para quem já tiver lido o livro que lhe serviu de base.
Se, ao que tudo indica, a história parece seguir fielmente as linhas do original, há, ainda assim, algo de novo na transposição para o visual. A construção das personagens, com especial destaque para a singularidade de Giraud e para a aura de mistério que envolve as mulheres da história, ganha neste formato uma intensidade especial, fortalecida também pela expressividade das personagens e pelo contraste desta com os cenários aparentemente tranquilos.
Finalmente, importa destacar o enredo propriamente dito, que, para quem não conhecer a história, será uma bela sucessão de surpresas, em que a verdade absoluta só surge quando tudo parece já estar resolvido. Ou não fosse este um dos casos de Poirot.
Intrigante na história, fascinante nas personagens e visualmente notável, trata-se, pois, de um mistério memorável em todas as suas facetas. E de uma descoberta - ou reencontro - a não perder.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Divulgação: Novidades Saída de Emergência para Março

A guerra tomou conta do Mundo Conhecido e Maika Meiolobo está no seu epicentro. Enquanto a jovem e os seus amigos tentam lidar com as consequências das suas ações, segredos do passado e reencontros há muito aguardados ameaçam transformar as suas vidas.
Neste sexto volume, Maika e Kippa partilham as memórias de infância que as transformaram no que são atualmente. Quando esse passado complicado colide com o presente tumultuoso, Maika terá de escolher sabiamente os seus aliados, num equilíbrio delicado — e mortal — entre a confiança e a prudência.

Zoe e o seu filho necessitam desesperadamente de uma mudança. Ela quer deixar Londres e construir uma nova vida. Entre o minúsculo estúdio que mal pode pagar e as buzinas que os mantêm acordados, Zoe sente que está prestes a enlouquecer.
Num impulso, ela aceita um emprego nas Terras Altas. A função exige alguém capaz de cuidar de três «crianças dotadas», duas das quais se comportam como pequenos animais selvagens. O pai está de rastos, e os filhos correm livremente pelo enorme castelo em ruínas nas margens de um lago repleto de urzes.
Com a ajuda de Nina, a simpática livreira local, Zoe começa a criar raízes na comunidade. Serão os livros, o ar fresco e a bondade suficientes para curar uma família destruída?

Rose e Luke estão a discutir. Antes do casamento, ele prometeu que não queria ter filhos, mas entretanto mudou de ideias. Ela concordou em tomar as vitaminas pré-natais, mas não o fez. De repente, o casamento de ambos passa a depender de uma única resposta: conseguirá Rose encontrar dentro de si o desejo de ser mãe?
Ao narrar uma escolha de vida decisiva em nove versões diferentes, Donna Freitas leva-nos pelos caminhos que definem a nossa vida, refletindo sobre as muitas faces que o amor pode assumir e sobre as trajetórias que definem o que é ser mulher. Um romance comovente e provocador sobre os mistérios da maternidade, da traição, do divórcio e da morte. E sobre uma escolha que significa reinventar o futuro com que sempre se sonhou.

A água é um bem essencial para a Humanidade. A sua posse, gestão e distribuição ao longo dos milénios moldou a civilização numa história que abrange continentes e que não se faz apenas de geografia e engenharia, mas essencialmente de política e estratégia.
Dos primeiros agricultores sedentários até às grandes obras de engenharia atual que alteram o curso de rios e permitem armazenar este recurso fundamental, a água acompanhou de perto a história do Homem. Ela foi responsável pela ascensão e queda de impérios, por conflitos políticos que duram até hoje e por grandes crises ambientais.
É impossível compreender o mundo atual sem conhecer a nossa relação com a água. Nesta biografia reveladora, Giulio Boccaletti oferece‑nos uma visão fascinante onde podemos perceber melhor a relação da sociedade com a água e a sua total dependência daquela que é a substância mais elementar do planeta.

Berlim, 1939. A Alemanha está em guerra e os nazis apertam o seu cerco aterrador. Na capital, a paranoia é intensificada por um rígido e forçado blackout que mergulha a cidade numa opressiva escuridão a cada noite que passa.
Quando uma mulher é encontrada brutalmente assassinada, o inspetor Horst Schenke é pressionado para resolver o caso rapidamente. Com a desconfiança a pairar sobre si por não se ter juntado ao Partido Nazi, Schenke vive sob permanente suspeita – pois a deslealdade é uma sentença de morte.
Enquanto a investigação o leva a ficar mais próximo do sinistro coração do regime, Schenke apercebe-se de que o perigo está em todo o lado – e de que as fações antagónicas do Reich podem ser tão mortais como o assassino que assombra as ruas.

Nove anos depois da desastrosa missão da Discovery, uma nova expedição composta por americanos e russos parte para recuperar a nave perdida e procurar no banco de dados do rebelde computador HAL 9000 algo que explique o que aconteceu… e onde está o comandante Bowman.
Contudo, uma expedição chinesa parte com o mesmo objetivo, pelo que a missão de resgate se converte numa corrida louca para obter a preciosa informação que pode ajudar a compreender o enigmático monólito.
Entretanto, o ser que outrora foi Dave Bowman, e que ainda conserva vestígios da sua natureza humana, é a única pessoa capaz de desvendar o mistério sobre o monólito que se dirige para Terra com uma missão vital.

Há 40.000 anos, não éramos a única espécie humana no mundo. Existiam igualmente os Hobbits (Homo floresiensis) na ilha das Flores, na Indonésia; os Denisovanos na Sibéria; o Homo luzonensis nas Filipinas; e o Neandertal no que é agora a Europa e partes da Eurásia.
Neste livro, Tom Higham apresenta‑nos a mais recente investigação científica que permitiu transformar o nosso conhecimento sobre a história humana. Aliando investigação arqueológica e novos métodos laboratoriais, o autor desvenda as mais recentes descobertas sobre estas espécies humanas e explora o que poderemos descobrir das suas ligações genéticas. Um relato envolvente do nosso conhecimento atual sobre as origens humanas que levanta novas e interessantes possibilidades — particularmente no que diz respeito ao contacto (se existiu) que estas outras espécies podem ter tido connosco antes da sua extinção.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Até te Encontrar (Kate Eberlen)

Letty e Alf são os únicos alunos a falar inglês na sua turma de italiano em Roma, e talvez por isso haja uma certa empatia imediata entre ambos. Ainda assim, e apesar da curiosidade mútua, o que começa por prevalecer é a distância. Alf tem namorada, e há na base dessa relação raízes profundas resultantes do que teve de deixar para trás. Letty, por outro lado, sofreu múltiplas desilusões, o que a leva a ter grandes dificuldades em confiar nas pessoas. Ainda assim, têm algo em comum: uma paixão partilhada pela dança. E é após a primeira dança que a curiosidade começa a dar lugar a sentimentos mais fortes, a uma partilha mais profunda, mas que pode ser posta em causa quando as verdades de ambos vierem à superfície. Pois o amor pode ser belo, mas as dificuldades não deixam de existir. E a realidade continua à espera do outro lado...
Parte do que torna esta história tão cativante está no delicado equilíbrio que permite uma leitura leve e divertida, mas abordando temas profundos e experiências traumáticas. Tem como que uma aura de comédia romântica, com os encontros casuais, a descoberta da cidade e as tribulações que levam à descoberta do amor. Mas tem também toda uma sucessão de temas sérios a dar profundidade à leveza, abrangendo questões tão distintas como o consentimento, as relações de poder, a depressão pós-parto e a exposição na internet, só para citar alguns.
Este contraste entre leveza e complexidade tem um efeito particularmente cativante: o de gerar uma forte empatia pelos protagonistas, levando, ao mesmo tempo, a uma reflexão mais profunda. E isto é especialmente notável tendo em conta que toda esta história está repleta de personagens imperfeitas. Ninguém é absolutamente bom nem absolutamente mau (ainda que haja um ou outro caso que não fica assim tão longe). As vidas de Letty e Alf, e também, em certa medida, as dos seus familiares, definem-se por escolhas certas e erradas, conflitos e reconciliações, palavras que magoam e que curam. Como no mundo real, não é verdade?
Há ainda um último ponto a destacar. Sendo que tanto as personagens como os seus passos fogem premeditadamente da perfeição, é apenas expectável que a história não culmine num final absoluto e em que tudo fica perfeitamente resolvido. Faz sentido que assim seja. E, sendo certo que, no caso de algumas personagens secundárias, fica uma ligeiríssima insatisfação por não haver consequências mais drásticas, também isto torna a história mais realista. Na vida real, a justiça nem sempre é absoluta. E entre o que fica por resolver e as possibilidades prometidas pela forma como tudo termina, a sensação que fica é também a de um equilíbrio adequado.
Carregado de emoções fortes, mas com o toque perfeito de leveza e de humor, trata-se, em suma, de um livro de contrastes e equilíbrios, envolvente, surpreendente e cheio de momentos marcantes. Uma história de amor, naturalmente. Perfeitamente imperfeito, como no mundo real.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

O Segredo de Portograal (Flávio Capuleto)

Tudo começa com a morte de um homem às mãos de um assassino profissional no interior de uma igreja. Mas esse é apenas um dos pontos da longa e intrincada teia que, construída a partir do segredo dos Templários, conduz a teorias sobre uma dinastia sagrada e aspirações ao regresso da monarquia. E é a partir da investigação dessa morte que os acontecimentos começam a intensificar-se. Chamando a opinar sobre o caso, um historiador e autor de um livro controverso, começa a seguir o rasto de um segredo bem guardado. E, à medida que novas figuras começam a entrar em cena, a trama vai-se adensando e expandindo, ao ponto de abranger planos para alterar o futuro do país e da ciência.
É, de certo modo, inevitável dividir a observação deste livro em dois aspetos: a ideia e a concretização. É entre estes dois parâmetros que mais se notam as diferenças e é também a forma mais clara de separar as forças das fraquezas. Até porque o contraste entre ambas é tão presente ao longo de toda a leitura que é impossível não chegar ao fim com uma boa dose de sentimentos ambíguos.
A parte da ideia é onde se encontram as maiores forças. É certo que não faltam histórias a gravitar em torno dos Templários e dos seus segredos, seja no sentido místico, seja no material. Ainda assim, não deixa de ser interessante a transposição destas teorias para território nacional. Além disso, entre os mistérios das mortes, a personagem com um grande segredo para descobrir, as tensões políticas e religiosas e até os elaborados desenvolvimentos científicos, não faltam pontos de interesse no desenvolvimento desta história.
As fraquezas surgem na execução. Por um lado, a conjugação de tantos elementos e de tantas personagens, faz com que várias pontas vão sendo deixadas para trás ao longo do caminho. Por outro , há desenvolvimentos que acabam por ser demasiado rápidos, pois, mesmo para as quatrocentas páginas deste livro, há toda uma imensidão de coisas a acontecer. Finalmente, e sendo certo que todas as histórias refletem, de uma forma ou de outra, um conjunto de valores, é inevitável a sensação de que a mensagem se sobrepõe à história. E há um certo exagero na simplificação: os monárquicos são o futuro perfeito, todos os restantes são corruptos, e uma invenção capaz de matar silenciosamente não tem tantos dilemas morais quantos devia ter. Finalmente, fica ainda um ligeiro desconforto ante um certo saudosismo dos supostos "melhores valores" de antigamente.
Ao longo da leitura, há momentos em que predominam as forças, pois as ideias despertam a curiosidade de saber mais, e outros em que predominam as fraquezas, pois a posição das personagens facilmente desperta irritações. E, assim, o que fica são sobretudo sentimentos ambíguos face a uma história cheia de possibilidades, e onde não faltam, apesar de tudo, momentos cativantes, mas que se perde pela mistura de demasiadas coisas e por uma visão demasiado linear.
Somadas todas as partes, o que fica é a sensação de uma história que, ao fazer convergir demasiadas coisas, acaba por deixar demasiado por desenvolver. Não deixando, apesar de tudo, de ter os seus momentos de envolvência, na leveza dos capítulos curtos e de algumas ideias intrigantes e interessantes de explorar.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Diário de Uma Miúda Como Tu - Acorda, Francisca! (Maria Inês Almeida e Manel Cruz)

Mais um ano escolar que passou, mais umas férias em casa dos avós. São quinze dias de praia na companhia dos primos e, como sempre, não faltam aventuras e descobertas no caminho da Francisca. Desde as suas atividades em defesa do ambiente à angariação de fundos para as obras do lar de idosos, dedicação é algo que nunca falta. Outras coisas, porém, estão a mudar, desde um inesperado mau feitio de pré-adolescente a uma súbita paixoneta (sim, mais uma). E, entre descobertas e surpresas, a mente da Francisca vai divagando. Mas convém que não exagere... senão corre o risco de ficar outra vez de castigo.
Parte do encanto destes livros está, desde logo, identificada no título da série. Chama-se Diário de Uma Miúda como Tu e é exatamente isso, a vida de uma adolescente razoavelmente normal, com as particularidades de uma história específica, mas com elementos com que qualquer pré-adolescente se poderá identificar, desde as frustrações da escola aos castigos, passando também pelas mudanças físicas, pelas primeiras paixões e pelo entusiasmo transbordante de quando tudo parece simples. Todos passamos por lá, certo? E é, de certa forma, reconfortante recordar, ao acompanhar as pequenas aventuras da Francisca, esses tempos mais inocentes - mas, oh, tão dramáticos - do crescimento.
Apesar de ser uma história relativamente simples, como convém tendo em conta o seu público primordial, não faltam questões interessantes ao longo de cada livro. A defesa do ambiente é uma presença constante nas aventuras da Francisca, e há um evidente cuidado em sensibilizar para os vários aspetos desta luta. Mas há ainda outros temas que vão surgindo em cada livro e que reforçam a componente didática de cada uma destas histórias. Neste caso, a viagem a Oxford da Francisca permite abordar não só a história de Malala, mas também salientar a importância da educação (mesmo que a protagonista tenha os inevitáveis sentimentos ambíguos sobre a escola).
Ainda um último ponto comum a toda a série, mas que importa sempre salientar, é o equilíbrio entre o texto e as ilustrações. Trata-se, afinal, de um diário e tem o aspeto de um, realçando os momentos mais memoráveis da vida da Francisca através de representações visuais simples quanto baste, mas particularmente certeiras, sobretudo nos momentos mais divertidos do livro.
É uma história de coisas simples, de uma vida normal, em suma. Mas é, acima de tudo, a história do crescimento da protagonista - e de tantas outras miúdas como ela - aprofundado de livro em livro, e acrescentando sempre algo de novo. É uma miúda normal, a Francisca, e já se tornou familiar. Por isso, é sempre bom vê-la crescer.

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Comissário Ricciardi - Primeiros Inquéritos (Maurizio de Giovanni)

Foi inspirado pelo desejo de justiça e assombrado desde a infância por uma maldição inquestionável que o comissário Ricciardi escolheu a polícia como sua vocação. E é certo que a sua singularidade - a capacidade de ver os últimos momentos de quem morreu de forma violenta - lhe traz algumas vantagens nas suas investigações. Mas, suspenso sempre entre os vivos e os mortos, e ancorado a uma vida onde a justiça é, por vezes, contornável, nem sempre o comissário Ricciardi consegue concretizar a missão que escolheu. E as suas primeiras investigações são prova disso. Descobrir a verdade tem um preço. E há culpados que conseguem fugir às consequências...
Um dos primeiros aspetos a sobressair neste livro, pese embora o facto de o seu impacto resultar também do equilíbrio entre os vários elementos, é inevitavelmente a parte visual. Sendo um livro a preto e branco, vive muito dos jogos de luz e de sombra, da forma como as sombras na expressão das personagens enfatizam os acontecimentos, da forma como, não havendo cor, os contrastes enfatizam a luz ou a escuridão de cada momento. Mas, mais do que isso, há uma complexidade nos cenários, uma vastidão de pormenores, que quase transborda das páginas. E não só na caracterização dos locais, mas na própria atmosfera - ou não estivesse este livro cheio de chuva.
Passando agora ao texto, sobressai também um aspeto singular: a voz do protagonista. Ao ser ele a contar a sua história, assumindo, além dos seus diálogos, o papel de narrador, expõe-se num registo mais intimista, mais introspetivo, enfatizando ainda mais a proximidade que resulta, desde logo, das suas circunstâncias. Além disso, tendo em conta a linha geral dos três casos apresentados neste livro, há sempre um elo pessoal, não só pela sua visão das vítimas, mas pelo impacto que os casos têm na sua perceção da vida. E isso gera empatia profunda - e um fascínio igualmente intenso.
Finalmente, sobressai a construção das personagens. De Ricciardi, obviamente, com a sua maldição singular e a forma como dita todos os aspetos da sua vida. Mas também de Maione, com a sua surpreendente inocência e as suas próprias sombras. São duas figuras complexas, mas com algo de verdadeiro no seu âmago. E isso torna-as marcantes, memoráveis. Acende a vontade de as conhecer melhor.
Feitos de crime e de mistério, com um rasgo sobrenatural, mas também com uma base profundamente humana, estes Primeiros Inquéritos revelam um protagonista forte e complexo, com um percurso pessoal sempre intrigante num mundo cheio de ambiguidades, onde os bons valores nem sempre são o que permanece. Mas é também essa a beleza dessa história: a da integridade no meio das sombras. Uma integridade sólida, fascinante e inesquecível - como este livro.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

A Pessoa e o Sagrado (Simone Weil)

A ideia de um carácter sagrado da pessoa humana, embora sujeita a discussões e a múltiplas perspetivas, é algo frequentemente evocado quando surgem discussões sobre direitos e liberdades, principalmente quando associadas a questões mais controversas. Este ensaio, porém, questiona a base da própria expressão: é a pessoa humana que é sagrada, ou o todo do ser humano? O pessoal ou o impessoal? A resposta não pode ser absoluta - mas a visão que este texto traça é não só um belo ponto de partida para discussões mais profundas, mas também uma poderosa reflexão sobre o que define a verdade, a beleza e a justiça.
Provavelmente um dos pontos mais impressionantes desta leitura é o fortíssimo contraste entre brevidade e complexidade. Não chega às cem páginas, mas contempla a natureza humana - e, sim, a sua sacralidade - com uma profundidade notável, debruçando-se tanto sobre as facetas da vida em sociedade como sobre o que de mais individual existe no ser humano. Além disso, questiona até convicções que podem parecer fundamentais, o que gera, naturalmente, sentimentos ambíguos, mas sobretudo o desconforto que leva a novas interrogações e a uma reflexão mais profunda.
Todo o texto gira em torno da questão da pessoa e do sagrado, e é também para a abordagem a estes dois conceitos que importa olhar. A visão de pessoa como parte, como algo para lá do qual existe algo mais, implica necessariamente algo de transcendente. E a ideia de sagrado... bem, não há como fugir a associações de fé. Mas o que sobressai neste aspeto é que este transcendente, este sobrenatural, tem um lado de contemplação do divino, mas não necessariamente associado a uma crença específica, mas sim a uma mais indefinível fé em algo superior. Não se cinge, pois, à perspetiva de uma única crença, expandindo-se para algo mais abrangente, ainda que também mais difícil de definir.
Sendo uma reflexão complexa, apesar da fluidez das palavras, é um texto que exigirá o seu tempo, apesar da relativa brevidade. E que deixará sentimentos ambíguos, pois desafia convicções arraigadas, partilhando outras com que nem sempre será fácil concordar. É, por isso, mais uma base de ponderação do que uma exposição de verdades. E não se esgota no final da leitura.
Breve mas profundo, complexo mas escrito com uma fluidez fascinante, trata-se, em suma, de um ensaio que opõe ao carácter sagrado da pessoa humana a sacralidade da humanidade no seu todo. E esta perspetiva tão diferente, mas tão bem construída na sua exposição, não deixa de servir de base para uma boa contemplação.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

O Homem de Lugar Nenhum - Volume 1 (Tiago Barros e Fábio Veras)

Perdido num mundo difícil de definir, e onde o estranho e o surreal estão tão presentes que se tornaram naturais, um homem procura uma saída. Diferente de todos, as regras daquele estranho mundo não se lhe aplicam. Mas há toda uma infinidade de coisas que não sabe, sendo a única certeza a de que não é o único naquele mundo à procura de uma saída. Não está sozinho, não é o único que está perdido. E o que o rodeia pode parecer surreal - mas há quem entenda bem menos do que ele.
Uma boa palavra para começar a descrever este livro será improvável. Improvável porque tudo neste percurso é feito de improbabilidades, desde a estranheza dos cenários à possível ligação entre mundos, sem esquecer a estranha naturalidade com que todos os elementos estranhos são encarados. Todo o caminho é como que um labirinto de aspetos surreais, que nem as personagens entendem ainda muito bem e que transmite ao leitor toda a sua estranheza, através dos diálogos estranhos, do mistério que tudo domina e, sobretudo, dos cenários singulares.
Sendo uma história de estranheza e de inexplicáveis - e este primeiro volume deixa mais impressões do que propriamente certezas sobre os comos e os porquês do mundo e das personagens - é inevitável que fiquem perguntas sem resposta. É o que mais fica, aliás. Ainda assim, e apesar dos sentimentos ambíguos gerados pela confusão global que é cair de para-quedas num mundo onde pouco é explicado (à semelhança das personagens, naturalmente), a estranheza de compreender muito pouco é compensada pelo muito que surge já de sugestivo e de intrigante, despertando curiosidade para as muitas possibilidades e prometendo novos mistérios para a parte que falta desvendar.
Ora, se não faltam perguntas sem resposta ao longo do caminho, é de esperar que também as haja relativamente à conclusão - ou não fosse este um primeiro volume. Sobressai, ainda assim, a forma como tudo termina, com um inesperado crescendo de ação e uma cena final que, apesar de obviamente aberta, deixa, ainda assim, uma sensação de possível final de etapa.
O que fica, então, desta aventura surreal é uma conjugação de estranheza e de fascínio, num cenário surreal e intrigante em que ninguém se revela ainda na sua totalidade - até porque nem as personagens conhecem esse todo. Surpreendente e singular, deixa muito em aberto, mas não deixa de ser um início deveras promissor.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Encontro com a Morte (Didier Quella-Guyot e Marek)

Entre os frequentadores de um luxuoso hotel de Jerusalém, a Sra. Boynton causa uma impressão no mínimo memorável, com o seu ar severo e a forma autoritária como se impõe aos filhos. Mas não é de todo o único acontecimento memorável a ter lugar no hotel. Hercule Poirot ouve uma conversa intrigante, que parece ser o início de um plano para matar alguém, e embora não entenda ainda do que se trata, as palavras e a voz ficam-lhe gravadas na memória. E não tardam a adquirir um novo significado. Durante uma visita a Petra, a insuportável Sra. Boynton morre subitamente do que parece ser um problema cardíaco. Mas só à primeira vista. Há certamente uma explicação mais sinistra para o sucedido. E os principais suspeitos são óbvios...
Algo que importa sempre referir sobre esta coleção de adaptações é a capacidade de cativar tanto quem já conhece a história como quem não faz dela a mais mínima ideia. Neste caso, sem qualquer conhecimento do romance original, cedo se torna evidente que, embora a adaptação relativamente breve possa parecer avançar a um ritmo ligeiramente apressado, não falta nada de essencial à história. O mistério está presente, tal como as tensões entre as personagens antes e depois do crime, bem como o sempre singular método de investigação de Hercule Poirot. E assim, nas suas cerca de sessenta páginas, o que surge é uma história relativamente breve, mas com todos os elementos cruciais e uma grande capacidade de surpreender.
Além dos desenvolvimentos propriamente ditos, que, como habitual, caminham para uma resolução que nunca é a mais esperada, existem dois elementos a destacar. O primeiro é o equilíbrio entre o texto e as imagens. Há uma boa quantidade de diálogos, o que é, de certo modo, inevitável, tendo em conta o rumo da história e os métodos do protagonista, mas sempre complementada por imagens expressivas, personagens bem caracterizadas e cenários amplos e apelativos. O segundo tem precisamente a ver com os cenários e como a cor parece evocar com precisão o ambiente em que o enredo decorre. É, aliás, algo inesperada a intensa luminosidade das imagens no que é, afinal, de contas, uma história de homicídio. Mas, se tivermos em conta o local onde tudo acontece, essas cores fazem todo o sentido.
Tudo somado, fica a impressão de uma leitura breve, mas sempre cativante e surpreendente. Uma boa forma de descobrir esta aventura de Poirot (para quem, como eu, ainda não a conhecia) ou de a reencontrar num formato diferente e muito interessante.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Tempo Curvo em Krems (Claudio Magris)

O tempo pode voar ou parecer eterno. Esbater-se em memórias fugidias ou prolongar-se no peso da velhice. Traçar memórias, abrir portas a novos caminhos ou simplesmente embalar. E é o tempo, em todas as suas facetas, o verdadeiro protagonista destas histórias. Tempo curvo, sinuoso, labiríntico, relativo, absoluto. Tempo de sempre e nunca. Tempo em todas as formas.
O Porteiro, o conto que abre este livro, fala de um homem que subiu a pulso na vida, mas que, nunca tendo gostado de dar ordens, encontra na velhice uma ocupação diferente, mais simples e discreta, mas que lhe dá prazer. Introspetivo e nostálgico, trata-se de um relato relativamente pausado, mas que, na sua voz quase intimista e no delicado equilíbrio entre presente e passado, memória e atualidade, se entranha no pensamento de forma natural, quase que numa viagem ao intímo do protagonista.
Lições de Música leva um velho mestre de regresso ao seu talentoso aluno, numa mistura de nostalgia e de ténues ressentimentos que traça a memória da juventude do protagonista. Também relativamente pausado, mas fascinante na forma como transpõe a música para as palavras e na sua contemplação da velhice através da memória, trata-se de uma leitura marcante, tanto no que conta como no que se limita a sugerir.
Segue-se o conto que dá título ao livro, Tempo Curvo em Krems. Trata-se de uma visão labiríntica sobre memórias distorcidas, amizades que nunca aconteceram, mas que se voltam a consolidar após um telefonema, e memórias ilusórias que servem de base a uma sinuosa reflexão sobre o tempo. É um conto curioso, cheiro de circunvoluções e labirintos, oscilando entre memórias, teorias e momentos de presença efetiva. Mas é particularmente notável na forma como constrói um ambiente todo ele surreal, mas ainda assim envolvente e intrigante.
O Prémio descreve um serão de celebração de um prémio literário, da perspetiva de um convidado de honra para quem o tempo passou, deixando a velhice, a nostalgia e uma certa incompreensão face às criações dos outros. Tem também o seu quê de sinuoso, na forma como oscila entre as contemplações do protagonista e e caracterização do serão, mas tudo flui de forma equilibrada, e quase que com um toque de leveza por entre a introspeção.
Finalmente, Exterior, Dia - Val Rosandra narra a gravação de um filme vista pelo olhar do seu protagonista na vida real, com todas as memórias e interrogações que a passagem do tempo sempre desperta. Contemplativo e complexo, explora a vida inteira do protagonista em fragmentos e as transformações do mundo em que viveu, sempre com um determinado acontecimento a pairar na sombra, mas sem se sobrepor à contemplação maior. É também um conto pausado, mas com muito de fascinante.
Relativamente breve, mas de complexidades insondáveis, trata-se, pois, de um conjunto coeso, em que cada história é simultaneamente um todo completo e parte de uma contemplação mais vasta sobre a vida e o tempo. Tempo curvo, tempo mutável, tempo relativo. Tempo que se faz memória, tal como as histórias deste interessante livro.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Cântico Negro (José Régio)

Todos conhecemos certamente o poema que dá título a este livro, com o seu firme "sei que não vou por aí". Conheceremos, talvez, mais alguns dos poemas que o constituem, quanto mais não seja dos tempos da escola. Mas há um todo muito mais vasto à espera, um círculo de criações posteriores que vão traçando regressos à origem. E um mundo de imagens e de sombras que é fascinante de se descobrir. Há um pouco de tudo neste Cântico Negro - fé, assombro, desânimo, esperança, desolação. E, entre o ritmo das palavras e o labirinto das imagens que elas projetam, há muito de notável para descobrir.
Algo que importa destacar, antes de mais, neste livro é o facto de ser uma antologia formada a partir de diferentes obras. Aliás, há ainda uma outra referência a fazer neste sentido, relativa aos ensaios que precedem o poema. São análises complexas, académicas, mas das quais mesmo um leigo consegue retirar muita informação. E uma delas prende-se com a forma como as primeiras obras vão sendo repercutidas nas posteriores. É algo que facilmente se confirma numa leitura sequencial, e que pode até gerar uma ideia de repetição. Mas, mais do que isso, fica uma imagem de evolução - ou de um círculo que se completa.
Outro aspeto particularmente vincado é o forte contraste entre fé - ou religião - e sombra. Seria, talvez, de esperar que as visões mais místicas que surgem ao longo da leitura estivessem associadas a cenários mais luminosos, mas não é assim. E sombras, rasgos de macabro, sentimentos sombrios e imagens de angústia são coisa que não falta ao longo destes poemas. Cria-se, assim, um equilíbrio estranho, mas estranhamente adequado, como que um olhar para o alto a partir das profundezas. Um laço a unir mundano e transcendente.
O outro ponto que falta destacar é, naturalmente, a estrutura. Há uma certa variação de formas, ainda que com um domínio dos sonetos e os poemas longos, e também na métrica e na rima. Mas há um ponto comum a todos: um ritmo próprio, uma cadência peculiar, que confere melodia às palavras e faz com que estas se entranhem no pensamento de forma mais profunda.
Regresso ao familiar e expansão dessa familiaridade, trata-se, pois, de um livro que é um ciclo em si mesmo. E que pode, por vezes, parecer que se repete - mas na forma de um eco a propagar-se através do tempo. Belo, vasto e cativante, um livro a descobrir e a revisitar.