quarta-feira, 28 de setembro de 2022

A Noite é um Jogo (Camilla Läckberg)

Anton, Liv, Max e Martina são melhores amigos desde que se lembram. Têm também uma vida de privilégio, como fica bem claro a partir da grande festa de passagem de ano que estão prestes a partilhar - só os quatro, porque é assim que preferem. Por detrás dos comportamentos infantis, das provocações e dos preconceitos, escondem-se, contudo, alguns segredos mais tenebrosos. E, à medida que a noite avança e as verdades começam a surgir, começa também gradualmente a formar-se um plano. Porque os seus maiores inimigos são os que estão mais próximos. E os quatro amigos não se importariam nada de se livrar deles.
É inevitável não começar por referir um aspeto bastante evidente deste livro, mas que define também os seus limites: é bastante breve. E, por ser bastante breve, o desenvolvimento do enredo e, sobretudo, das personagens, acaba por ser bastante conciso. Tudo gira em torno dos quatro amigos e dos seus traumas, e é aí que estão os momentos mais marcantes, ainda que também as maiores ambiguidades. Já quanto ao grande acontecimento no cerne de tudo: é breve. E tem o seu impacto, ainda assim, mas talvez pudesse ter sido explorado mais a fundo.
Dito isto, e apesar do registo bastante mais breve do que o habitual para a autora, não deixa de ser uma leitura cativante. E por várias razões. Primeiro, a escrita fluida e a oscilação entre diferentes pontos de vista criam uma envolvência pontuada por momentos de surpreendente tensão. Depois, o equilíbrio entre as diferentes personalidade significa que as relações não deixam de ter a sua complexidade, apesar da concisão. E, além disso, há várias surpresas ao longo do percurso que tornam inevitável a curiosidade em querer saber o que acontece a seguir.
Finalmente, sobressai um último ponto. É que, embora ambíguas (no mínimo) quanto à sua moralidade, as histórias dos quatro amigos não deixam de projetar uma reflexão interessante sobre certas facetas da sociedade: os vícios, a violência, os segredos, a infidelidade... enfim, as inúmeras coisas que se podem esconder atrás de portas fechadas. E o facto de as personagens não serem perfeitas projeta uma visão interessante: uma vítima não tem de ser perfeita para ser vítima.
Tudo se resume, portanto, a uma impressão bastante simples: a de uma história que podia certamente ter sido mais longa, mas que, mesmo na sua brevidade, não deixa de ter vários pontos de interesse. E de proporcionar bons momentos de leitura, independentemente do que fica sem resposta.

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Terra (Eloy Moreno)

O homem mais rico do mundo - e um dos mais odiados - está gravemente doente e a morte é certa, mas não quer partir sem uma derradeira demonstração do seu poder. E fá-lo não só com um discurso arrasador ao seu vastíssimo público, mas deixando um último desafio aos filhos. Dedicou a vida a enriquecer a qualquer preço. Mas agora o caminho da verdade está próximo. E pode ser devastador. 
Provavelmente a maior qualidade deste livro está na evidente relevância dos temas, com as alterações climáticas em primeiro plano, mas abordando também questões como a dinâmica das redes sociais, a capacidade de influenciar da televisão e a desigualdade de circunstâncias gerada pela riqueza. Não falta, pois, matéria para reflexão e basta isso para que a leitura valha a pena. 
Outro ponto forte está na capacidade de transpor todas estas questões para uma narrativa fluida, cativante e até surpreendentemente leve. Os capítulos curtos e a oscilação entre momentos e perspetivas conferem ao enredo uma intensidade viciante, o que, somado à sucessão de surpresas, prende do início ao fim. 
Quanto à construção das personagens, fica uma ligeira ambiguidade, resultante não só de alguns pontos que ficam em aberto do passado, mas também do facto de nenhuma delas ser do género que desperta empatia absoluta. Sendo certo que faz sentido que assim seja, atendendo às circunstâncias da história e à mensagem subjacente. 
Intenso e viciante, suficientemente ambíguo para recordar as imperfeições da humanidade e carregadinho de matéria importante para ponderar, trata-se, pois, de um livro simultaneamente leve e profundo, complexo quando baste, mas surpreendentemente leve de se ler. E tudo isto converge, enfim, em algo muito simples: uma boa história e uma leitura marcante.

Revelação de capa: A Espia do Oriente



UM ATENTADO IMINENTE. UM SEGREDO ENTERRADO NO PASSADO. UM HOMEM E UMA MULHER QUE SE ODEIAM, FORÇADOS A TRABALHAR JUNTOS.
A gozar de uma licença de serviço por motivos de saúde, o diretor do Gabinete de Informação e Imprensa do Ministério dos Negócios Estrangeiros, um espião ocasional, é chamado de regresso ao ativo. Um cientista foi raptado e um atentado afigura-se no horizonte, ameaçando o equilíbrio político da Europa.
Porém, quando uma mulher enigmática, cujo nome e passado são mantidos em segredo, se oferece para trabalhar com o espião português, o mistério adensa-se. Ela tem no seu historial vários furtos e homicídios, mas será ele capaz de resistir à tentação da sua beleza exótica e invulgar?
Entre cenários tão variados quanto cosmopolitas de locais como Courchevel, Budapeste, Dubai e Lisboa, A Espia do Oriente é um thriller psicológico de leitura compulsiva, que nos transporta para uma teia complexa de mentiras, traições e reviravoltas inesperadas, como só Nuno Nepomuceno consegue criar. 

sábado, 10 de setembro de 2022

Senciente (Jeff Lemire e Gabriel Walta)

A vida na Terra parece estar próxima do fim, e é por isso que a esperança da humanidade está no envio do maior número possível de naves para a colónia, a fim de reconstruir a vida noutro local. Mas há um grupo de separatistas que acredita que a liberdade só pode ser conseguida cortando todas as ligações com a Terra. E é assim que se justifica o ataque que mata todos os adultos da U.S.S. Montgomery, mas que está longe de ser um sucesso total. É que, antes de morrer, uma das tripulantes conseguiu alterar os protocolos da inteligência artificial da nave, Valarie, e assim salvar as crianças. Agora, cabe a estas completar a missão e encontrar o caminho para a colónia... apesar dos perigos que continuam à espreita.
Parte do que torna esta história tão cativante é que, apesar do seu cenário futurista, dos elementos completamente distintos e da inevitável brutalidade de certos aspetos, a alma e a essência deste percurso está em algo de muito próximo e conhecido: os laços de afeto e as relações familiares - de sangue e não só. A ligação entre as crianças e Valarie é particularmente enternecedora, mas há todo um espectro emocional nesta aventura que gera emoções fortes. A capacidade de emocionar é, aliás, a maior força deste livro, ainda que haja vários outros aspetos cativantes nesta história.
Outro aspeto particularmente poderoso prende-se, aliás, com este contraste entre ternura e brutalidade, que é particularmente visível no aspeto visual. Algumas das mortes são bastante gráficas e o facto de os sobreviventes serem crianças gera necessariamente uma sensação de inocência perdida que transparece das expressões. Ainda assim, não é só o choque que transparece. Há uma expressividade bastante tangível nas personagens, sobretudo em Lil e em Isaac, que faz com que as emoções estejam sempre à flor da pele, mesmo nos momentos em que é a ação a dominar o enredo.
E, por falar em ação, importa salientar que, embora as emoções pareçam dominar, ação é coisa que não falta neste livro. Há momentos de grande intensidade desde as primeiras às últimas páginas e várias surpresas ao longo do caminho a manter sempre viva a curiosidade em saber o que se seguirá. Além disso, dado o rumo da história, é inevitável que não possa haver conclusões perfeitas. Mas, no seu equilíbrio de perda e sobrevivência, de perplexidade e superação, tudo converge para um final perfeitamente adequado ao caminho percorrido por estas personagens.
Intensidade, ação, expressividade e muita, muita emoção: são estes os elementos que tornam esta aventura tão memorável. Uma viagem a um futuro diferente, igualmente suscetível à crueldade e ao erro, mas onde o amor e a ternura permanecem imutáveis. Muito bom.

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

O Ovo Bom (Jory John e Pete Oswald)

Era uma vez um ovo bom. Muito, muito bom. Tão bom que se sentia na obrigação de garantir que os outros ovos da sua caixa eram igualmente bons. Só que, bem... não eram. E um dia, o esforço desmedido de os tentar mudar a todos, sem olhar para si mesmo, começou a cobrar o seu preço. E ao sentir que estava literalmente à beira de quebrar, o ovo bom tomou uma decisão difícil. Difícil... mas possivelmente necessária.
Parte do encanto destes livros - tanto este como o anterior A Semente Má - está na capacidade impressionante de transmitir mensagens importantes de forma muito concisa, mas também muito certeira. Se virmos bem, e ainda que, à primeira vista, a premissa pareça ser diametralmente oposta, os dois livros têm até uma base comum: a ideia de equilíbrio. De certa forma, aqui os papéis invertem-se. É ao querer ser perfeitamente bom que o ovo se esquece de si mesmo e começa a perder a serenidade e o equilíbrio interior. Mas a reflexão é comum, no fundo. Podemos sempre melhorar e corrigirmo-nos. Mas não temos de ser perfeitos sempre e em tudo - até porque ninguém o é.
Ora, tendo esta mensagem em mente, extrai-se uma conclusão: que, sendo embora um livro infantil, a mensagem deste livro é importante para todos. E é particularmente curioso notar que, na sua imensa simplicidade, essa mensagem passa, mesmo aos olhos de um leitor adulto. Há como que uma certa ternura que se sobrepõe às improbabilidades, ao olhar que procura uma história mais complexa ou realista, e que realça o essencial. Há matéria para reflexão nesta muito breve história, e isso independentemente da idade de quem a lê.
Finalmente, importa salientar as ilustrações, divertidas, coloridas e sobretudo muito expressivas. Ora isto é particularmente notável tendo em conta que as personagens são ovos. Mas a verdade é que não são uns ovos quaisquer. São ovos com uma vida muito agitada - e isso reflete-se nas expressões e nos gestos.
Simples, breve, terno e cativante - além de transbordante de cor e com uma mensagem fundamental e muito bem abordada. Assim é este pequeno e encantador livrinho sobre bondade e imperfeição. E não, não só nos ovos. De todo.

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Edgar P. Jacobs - O Sonhador de Apocalipses (François Rivière e Philippe Wurm)

Fascinado pela arte antiga, e sobretudo pelo Egito, com uma veia lírica e uma voz de barítono, grandes sonhos e interesses variados, seriam Blake e Mortimer a guiar grande parte do ritmo das suas criações. Mas, sendo certo que a vida se entrelaça na obra, nenhuma vida é apenas a sua obra. Há também as relações, as aspirações, os erros, os sucessos e os desencantos. E é uma vida toda, refletida na soma das partes, que serve de base a esta singular biografia.
Escusado será dizer, tendo em conta o livro de que se trata, que a grande força desta leitura está no retrato que traça da vida do seu protagonista. E força por duas razões: por ser completa, explorando as muitas facetas do seu percurso, ainda que, nalguns casos, em episódios mais breves, e por ser cativante, dando vida à "personagem" mesmo ao revelá-la aos olhos de alguém para quem será, possivelmente, desconhecida. Podemos chegar a esta leitura sem saber grande coisa sobre Edgar P. Jacobs, podemos até reconhecer apenas o nome. Ao fim do livro, esse conhecimento aprofundou-se consideravelmente.
Outro aspeto particularmente marcante é a exploração do mundo da arte em geral e da banda desenhada em particular, com uma visão bastante pormenorizada de como é construída a arte. Pode até chegar a ser um pouco desconcertante aos olhos de um leigo na matéria - como é, mais do que certamente, o meu caso - mas é também um foco de aprendizagem. Também aqui, podemos não saber nada sobre traços, perspetivas, cores e por aí adiante... Chegaremos certamente ao fim a saber um pouco mais.
E claro, como não poderia deixar de ser num livro como este, sobressai... a arte. O percurso pode até suscitar perplexidade, nomeadamente nas facetas menos conhecidas, mas mesmo nos momentos mais desconcertantes, há sempre o deslumbramento dos cenários e os ecos simbólicos que vão surgindo - egípcios, sobretudo, como seria de esperar. Mas não só.
Finalmente, importa salientar um aspeto especialmente marcante, que é o facto de, além de ser a biografia de um artista, ser principalmente a biografia de um homem, o que significa que há mais do que espaço para reflexões, vulnerabilidades e até alguns inesperados rasgos de emotividade.
Pode ser base de aprendizagem, matéria para reflexão, descoberta do mundo da arte e da vida de uma figura singular. Mas é, acima de tudo, uma história: uma história real, povoada por gente real, e que ganha vida e cor nestas páginas, mesmo para quem pouco mais conhecia do que os nomes. Basta isso para que valha a pena? Absolutamente.