segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Balanço de 2019

Mais um ano, com os seus altos e baixos, os seus momentos de sombra e de luz, sucessos e esperanças desfeitas, momentos que passaram e outros para nunca mais esquecer. E livros. Muitos livros, como sempre, ao todo 278, entre os muito pequeninos e os muito grandes.

E o que fica ao fim de mais um ano? Ficam as memórias, não só da leitura, mas também. É porque é de leituras que este corvo vos fala, aqui fica a minha lista das melhores entre muitas coisas boas que li este ano.


https://www.wook.pt/livro/samiterio-de-animais-stephen-king/22735922?a_aid=5aa257b7be336


Intenso, sinistro, arrepiante e com uma estranhamente fascinante visão sobre a inevitabilidade e irreversibilidade da morte, é uma história de terror cheia de momentos intensos, mas também com vários picos de emoção marcantes e uma boa medida de matéria para reflexão. Memorável em todos os aspectos, foi, sem dúvida, o livro de um ano repleto de leituras notáveis.



Por falar em matéria para reflexão, dificilmente se podia pedir um livro mais relevante. Com uma visão assustadoramente actual de certos segmentos sociais empenhados em reverter os direitos das mulheres, traça uma distopia arrepiantemente próxima, numa leitura viciante, intensa e muito relevante.



Extenso e detalhado em termos de contexto histórico, mas com uma história profundamente emotiva no percurso que traça para os seus protagonistas, é um daqueles livros que justificam cada instante passado a ler e que, além de despertar emoções intensas, fica na memória durante muito tempo.



A fazer lembrar um bocadinho ali o número um, cedo revela, porém, uma identidade própria na sua visão muito específica da morte e do que existe para além dela, povoada por locais sinistros, actos cujas consequências se prolongam por uma vida inteira e uma sucessão de mistérios e emoções que cativa do início ao fim.



Intenso e perturbador, com uma história feita de medos profundos, de insinuações aparentemente sobrenaturais e de um grande mistério com tanto de sinistro como de fascinante, é, tal como o anterior, um livro estranhamente viciante e também muito memorável.



Helen Grace, claro. Se houve  Helen Grace no meu ano, é certo que o livro vai acabar nesta lista. E, como habitual, não desilude, com a sua protagonista complexa e fortíssima, o seu enredo cheio de surpresas e de reviravoltas e uma mistura de crime e investigação com a construção cada vez mais sólida de uma equipa cuja relação vai muito além de um simples emprego.



Há muitos livros sobre a Segunda Guerra Mundial, mas não há muitos como este, em que, mais do que as consequências globais, é o impacto que a guerra tem sobre as vidas desta comunidade aquilo que mais se destaca. É uma história de união, de espírito de comunidade. E tem também os seus mistérios para lhe acrescentar mais vida.



Difícil de definir, mas irresistivelmente brilhante, esta história de um jovem arrastado para o crime - e para a sombra de uma vingança iminente - para proteger os destroços da sua família é simultaneamente viciante, comovente e muito, muito marcante.



Monstress é Monstress. Visualmente belíssimo, com um mundo repleto de complexidades e um conjunto de personagens tão fascinantes e intrincadas como a teia de intrigas em que se movem, é um daqueles livros em que nunca se esbate a vontade de regressar.



Com uma história independente, mas vários fios a ligar estas personagens a outros livros do autor, traça com a habitual mestria uma história de mistério e romance onde as grandes revelações se entrelaçam na perfeição com o desabrochar de uma história de amor.


Planos para o próximo? Os mesmos do costume. Mais momentos, mais memórias para preservar, talvez - e é um grande talvez - encontrar o caminho de volta para as palavras... E ler, sempre. Sempre, sempre, sempre. Porque os livros continuam a ser a melhor das companhias... e o mais fabuloso portal para outros mundos, mesmo quando não podemos sair do nosso.

Boas leituras para todos... e bom ano! :)

O Eleito da Luz (Marinho da Rocha)

Tiago está prestes a pedir a sua amada em casamento quando, de um momento para o outro, a sua vida fica virada do avesso. Tudo começa com uma presença estranha, que reconhece como a mãe que morreu ao dá-lo à luz, e que vem anunciar-lhe que é o escolhido, o Eleito da Luz, e que, para perpetuar o poder do bem no mundo, terá de se afastar da sua amada, que foi visitada por forças das trevas, até ao dia em que conceberão o próximo Eleito. Mas não basta a distância. Tiago precisa de descobrir a sua verdadeira natureza, regressar às suas origens e encontrar o passado que há muito lhe apontava o destino. E, mesmo assim, as trevas são fortes. E a concepção do Eleito pode ter de seguir por outros caminhos.
É difícil falar sobre este livro sem o dividir em duas facetas bastante óbvias: conceito e concretização. Porquê? Porque é o desequilíbrio entre estas duas facetas que faz com que toda a leitura seja uma longa sucessão de sentimentos ambíguos. No conceito, não falta potencial, ideias cujo ponto de partida promete vários momentos intensos e até um muito promissor equilíbrio entre o mundo sobrenatural e as origens remotas do protagonista. A concretização é... bem, confusa.
O autor tem uma forma bastante peculiar de construir a sua história, com rasgos de poesia, informações em tom quase enciclopédico e laivos de introspecção tão oscilantes como a constante alternância entre passado a presente a quebrar o ritmo do enredo. E, quanto aos grandes acontecimentos, há os momentos realmente marcantes (como é o caso de um episódio específico protagonizado por um cão) e também os que ficam por contar ou que são descritos de forma apressada. E, entre Eleitos da luz e das trevas, fantasmas e mensageiros que se manifestam de forma mais ou menos óbvia e uma concepção predestinada que acaba por se multiplicar, tudo acaba por ser posto em dúvida, principalmente porque o final dá verdadeiras respostas a muito poucas perguntas.
E depois há o protagonista, cujo percurso se vai tornando também cada vez mais ambíguo. No início, e apesar da estranheza das circunstâncias, é fácil compreender a relutância e a dúvida de uma personagem que, ante a concretização iminente do seu amor, é forçada a afastar-se para o bem de todos. Mas, à medida que o enredo evolui, essa empatia vai-se esbatendo, não só pelas escolhas duvidosas do protagonista (que, diga-se, não é tão luminoso quanto seria de esperar) como pela facilidade com que deixa partes da sua vida para trás. Facilidade que é também um pouco estranha na forma como as outras personagens aceitam o improvável.
A imagem que fica é, portanto, a de uma concretização confusa de uma ideia que tinha bastante potencial. Apressada e ambígua, embora com alguns momentos bem conseguidos, podia ter sido uma história memorável... mas fica-se pelo meramente curioso.

Título: O Eleito da Luz
Autor: Marinho da Rocha
Origem: Recebido para crítica

domingo, 29 de dezembro de 2019

Espada que Sangra (Nuno Ferreira)

Avizinham-se tempos de mudança em Terra Parda, e nas diferentes espadas - reinos - que a constituem. De um lado, a rainha Lazard Ezzila vê-se cada vez mais empurrada para longe do trono que lhe pertence por direito por um ambicioso e intriguista marido que, embora cruel por natureza, conseguiu cair nas boas graças do povo. Do outro, Ameril Hymadher sabe que o seu próprio reino é um ninho de conspirações e que a única forma de combater nessa frente ao mesmo que se protege contra a ameaça externa que paira sobre o reino é partir, acompanhado por um grupo de homens de relativa confiança e tentar obter reforços e alianças. Mas as intrigas não se esbateram e o que parecem duas conspirações distintas são, afinal, parte de uma teia maior e tão complexa como o mundo em que se desenvolve.
Um dos primeiros aspectos a sobressair neste livro - e que, inicialmente, pode tornar a leitura ligeiramente intimidante - é a suma complexidade do mundo aqui apresentado. Raças antigas, múltiplos reinos, sistemas de governação e posições hierárquicas distintas e uma teia de relações passadas com repercussões no presente fazem com que a primeira sensação ao embarcar nesta leitura seja de relativa perplexidade, até porque também a escrita um tanto elaborada contribui para reforçar a já bastante vincada impressão de complexidade. Ainda assim, vale a pena persistir. À medida que as personagens se vão revelando, que a distância inicial resultante de uma maior atenção dada ao mundo do que aos seus habitantes vai dando lugar às experiências e emoções mais pessoais dos protagonistas e que os picos de tensão e emoção começam a manifestar-se, a leitura vai-se tornando cada vez mais envolvente e mais forte a vontade de saber o que acontece a seguir.
Outro aspecto que importa destacar, e que contribui em muito para este adensar gradual do impacto, é que, além da escrita elaborada, o registo é consideravelmente descritivo, principalmente - e mais uma vez - na fase inicial. Claro que faz sentido que assim seja, tendo em conta a vastidão do cenário, e embora também isto contribua para a tal distância inicial, é também um aspecto que se vai esbatendo à medida que a acção se intensifica e que as peculiaridades do registo - que vão do vocabulário elaborado a uma forma peculiar de construir certas frases - começam a tornar-se mais naturais.
A história - e as personagens - vão-se, por isso, entranhando. A estranheza inicial dá lugar à curiosidade, e depois a uma certa proximidade. Afinal, é difícil não sentir empatia por alguém cujos maiores inimigos vêm dos laços mais profundos. E, ao chegar ao fim da leitura, com todas as perguntas que ficam sem resposta (como é natural, sendo o primeiro volume de uma série), mais do que as marcas da longa e complexa viagem, fica uma grande vontade de saber que novas intrigas estarão reservadas a estas interessantes personagens.
Sim, é um pouco intimidante no início, tanto pelo tamanho como pela complexidade do mundo. Mas ultrapassadas as barreiras iniciais, torna-se uma história intrigante e pontuada por vários momentos genuinamente memoráveis. A impressão que fica é, por isso, a de uma boa história - com muito potencial para o que se poderá seguir.

Título: Espada que Sangra
Autor: Nuno Ferreira
Origem: Recebido para crítica

Nota: Para quem ainda não se cruzou com ela, há uma edição mais recente e revista deste livro, publicada pela Editorial Divergência.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Harrow County 4 - Laços de Família (Cullen Bunn e Tyler Crook)

À superfície, as coisas parecem estar calmas em Harrow County. Mas, não sendo um lugar normal, há sempre coisas em movimento nas sombras, e desta vez não se trata das assombrações do costume. Emmy não é a única, tal como Hester não era. Há outros como ela e, embora se apresentem como a sua família, e os únicos capazes de lhe explicar as suas origens e a sua natureza, o que pretendem em troca é um preço demasiado alto a pagar. Pois, fruto da ambição desmedida de Hester, Harrow County é, aos olhos destas entidades, uma distracção que precisa de ser destruída. E Emmy não está disposta a permitir isso.
Um dos aspectos mais cativantes desta série é que, mesmo nos momentos em que, à primeira vista, não há muito de dramático a acontecer, há sempre como que a promessa de uma sombra a pairar sobre tudo. Uma sombra que se reflecte, desde logo, nos ambientes, com o contraste entre a luz dos dias soalheiros da vida aparentemente normal de Emmy e a escuridão rasgada a tons de fogo e sangue dos elementos sobrenaturais. Quase não é preciso ir além da imagem estática para detectar este contraste sombrio. E, em conjugação com uma história também ela cheia de contrastes e surpresas - no rumo das personagens, nos diálogos certeiros, nas tensões palpáveis e no contraste entre paragens e movimentos - o resultado só pode ser viciante.
É como que um equilíbrio de... bem, de múltiplos equilíbrios. A situação de Emmy em Harrow County, simultaneamente temida e adorada, é em si mesma um equilíbrio delicado, mas cada novo volume coloca-a também perante novos desafios e verdades perturbadoras. As origens de Emmy vão sendo reveladas aos poucos, e de uma forma que traz com cada resposta novas e intrigantes perguntas. A entrada em cena de novos intervenientes vai expandindo também as forças em colisão, sem nunca esbater por completo a relativa (ou aparente) pacatez do cenário. E, ao fim de mais este volume, voltam a ser muitas as perguntas sem resposta, mas ainda assim sabemos mais. E o que sabemos faz com que seja irresistível a vontade de descobrir o que vem a seguir.
Há ainda um outro aspecto a sobressair deste estranho e fascinante percurso. É que cada novo fragmento de informação parece afastar um pouco as pessoas que rodeiam Emmy, seja pelo que escolhem fazer ou pela mera visão daquilo que são. E, ainda assim, as convicções e os afectos de Emmy estão profundamente enraizados neste pequeno lugar, o que cria um laço emocional complexo e estranhamente enternecedor. Emmy é Hester, mas é diferente de Hester. E, rodeada de sombras, de perigos, de trevas dentro e fora de si, tem ainda assim um toque de inocência e de bondade que é como uma luz nas trevas exteriores. O que me leva ainda uma vez mais ao contraste de cores: a luz que rodeia Emmy na sua normalidade possível... e as trevas cada vez mais sinistras de tudo o resto.
A mesma força, os mesmos contrastes, a mesma envolvência e uma sensação de cada vez mais intensa empatia por uma personagem cercada de tudo aquilo que não compreende. São estas as impressões que ficam destes Laços de Família. Estas e a já habitual muito grande vontade de ler o mais rapidamente possível o volume que se segue desta fascinante série.

Autores: Cullen Bunn e Tyler Crook
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

A Revolta dos Deuses, vol. 1 - O Dia da Tempestade (Afonso Azevedo)

Vivem-se tempos conturbados. O rei morreu inesperadamente em combate e o mesmo aconteceu ao seu herdeiro. Agora, há um problema para resolver. Os filhos sobreviventes do rei são gémeos e é preciso decidir qual deles governará. Um deles parece ser sensato e capaz. O outro é irascível e cruel. Mas, embora seja claro quem será a melhor escolha, o outro não está disposto a afastar-se simplesmente. E eis que se escolhem lados, forças fazem as suas jogadas e tudo se encaminha para uma resolução que trará novos perigos e intrigas. Ninguém está realmente seguro quando dois irmãos lutam pelo poder. Principalmente quando a morte do rei é mais suspeita do que inicialmente se julgava...
É difícil não partir para esta leitura sem reconhecer quase de imediato os paralelismos com As Crónicas de Gelo e Fogo. A começar desde logo pela estrutura, pois a história é contada do ponto de vista de múltiplas personagens, cada uma com um papel a desempenhar no tabuleiro da intriga e associada a uma casa antiga ou com laços a um passado distante. Há também personagens cujas circunstâncias recordam um pouco a série de George R. R. Martin. Ainda assim, esta familiaridade que inicialmente parece um pouco excessiva vai-se esbatendo aos poucos à medida que as personagens vão revelando a sua identidade própria. Nunca se desvanece por completo, até porque as bases de intrigas e traições com laivos de magia são comuns, mas a história acaba por encontrar o seu próprio rumo.
Outro aspecto que cedo se torna evidente é que a teia de intrigas é muito mais complexa do que inicialmente seria de esperar, o que se torna particularmente surpreendente tendo em conta os capítulos muito curtos do livro. Tudo acontece muito depressa. Tudo muda num instante. E se há momentos em que esta forma sintética de contar as coisas faz com que certos desenvolvimentos pareçam um pouco apressados, também é certo que este ritmo de constantes mudanças torna a leitura bastante viciante.
Sendo apenas o primeiro volume, escusado será dizer que ficam perguntas sem resposta. Fica tudo sem resposta, na verdade, pois os capítulos finais apresentam uma série de acontecimentos que tornam o futuro num absoluto mistério. Ainda assim, ao longo do caminho, ficam algumas certezas interessantes: a de que há personagens com espaço para crescer e outras que atingiram já o seu auge nos grandes momentos que protagonizaram neste primeiro volume; a de que há forças em jogo que ainda mal se revelaram; e a de que ninguém está realmente seguro nesta história. Tudo isto deixa uma grande vontade de saber o que acontece a seguir.
Pode não parecer uma história particularmente nova, mas não deixa, ainda assim, de ser estranhamente cativante. E, com os seus momentos intensos, a capacidade de surpreender e o muito potencial contido nas personagens, não deixa de ser um muito empolgante início de série, envolvente e bastante promissor. Um bom ponto de partida, em suma, e uma leitura muito agradável.

Autor: Afonso Azevedo
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Feliz Natal!



Que nunca nos faltem as palavras para sonhar,
O coração para sentir,
A imaginação para viver todos os lugares
E uma luz para nos lembrar que estamos vivos.

Que nada disto nos falte neste Natal e que a alegria esteja sempre por perto,
neste dia e em todos os outros dias do ano.

Boas Festas!

domingo, 22 de dezembro de 2019

Autópsia (João Nuno Azambuja)

O anunciado cataclismo aconteceu e do mundo só resta uma ilha perdida no nada, cheia de prédios cinzentos e a abarrotar de gente, cuja condenação tem data marcada para o dia em que o afundar progressivo da ilha se tornar finalmente fatal. Mas talvez Autópsia não seja afinal a única terra que resta. A súbita chegada de um navegador solitário, em busca de uma misteriosa ilha deserta cujo único habitante pretende salvar, traz a Autópsia nova esperança... e um novo caos. E é neste cenário que o segredo da salvação emerge... para ser procurado por um e escondido por outros. Pois a salvação de Autópsia pode ser a destruição da inocência dessa outra gente.
Visão de um futuro catastrófico e distópico, em que até a sombra da salvação possível é mais uma ameaça do que uma promessa, este livro tem como uma das suas maiores qualidades a forma como, a partir das catástrofes futuras, traça uma reflexão sobre as realidades presentes. O cataclismo e o afundamento progressivo chamam a atenção para a actual questão das alterações climáticas. As manobras políticas, conspirativas e mais ou menos autoritárias das personagens levantam questões sobre um mundo onde a liberdade é cada vez mais condicionada, não só por autoritarismos, mas pela rotina opressiva de um trabalho constante, levado nesta história a níveis tão caóticos como os de uma vida pessoal sem privacidade. E a terra de Brandão, tão pura, tão inocente... tão longe... é, ao mesmo tempo, o paraíso prometido e o que o mundo podia ser com mais inocência e menos ambição.
Não faltam, pois, significados profundos, mas nem só da mensagem vive este romance. Há uma história povoada por personagens marcantes, com Joe como figura central, naturalmente, mas rodeada de outras figuras igualmente intrigantes, feita de momentos de tensão, de esperança, de desespero e até de auto-descoberta. Há intrigas políticas, confrontos pessoais, amores desfeitos, relações de interesse, um longo cárcere e um prenúncio de morte. Tudo isto se manifesta algures na história e surge precisamente no momento certo. O resultado é uma progressão gradual rumo a um clímax há muito prometido - a ilha está a afundar-se, é um facto - mas, ainda assim, surpreendente em muitos aspectos.
Mas importa ainda olhar um pouco mais para Joe e para Brandão, com os papéis cruciais que desempenham nesta história. Brandão é a promessa inconsciente da salvação, e é o mais inocente dos salvadores, ao ponto de não perceber os planos sombrios que se formam à sua volta. Joe percebe-os, o que o leva à sua difícil escolha. Destruir um mundo para salvar outro seria inevitavelmente um conflito impossível. E esta escolha de Joe - com todas as consequências que isso traz - é também o que faz dele uma personagem tão notável: um homem de princípios firmes no meio do caos e da intriga.
Notável será, por isso, uma boa palavra para descrever este livro: notável nas questões que aborda, na teia de intrigas e conflitos que constrói para este futuro dramático e principalmente nas personagens que habitam esta história. Profundo, complexo, e ainda assim de uma fluidez contrastante, um livro que surpreende desde as primeiras páginas... e deixa a sua marca bem depois do fim.

Título: Autópsia
Autor: João Nuno Azambuja
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Estou Envergonhado (Aurélie Chien Chow Chine)

O Gastão tem uma crina mágica. Quando se sente bem, tem todas as cores do arco-íris, mas, quando há alguma emoção a perturbá-lo, as cores da sua crina alteram-se. Desta vez, o Gastão sente-se envergonhado. É o seu aniversário, mas não quer ser o centro das atenções, pelo que a sua timidez faz com que não se sinta lá muito bem. Como lidar com isso? Bem, talvez respirar um pouco possa ajudar...
Parte do que torna esta colecção de pequenos livros tão interessante é que, embora nitidamente escritos para os mais pequenos, conseguem, na sua enorme simplicidade, dar que pensar até aos leitores adultos. Afinal, também nos sentimos as emoções do Gastão. Sentimo-las quando éramos pequenos (principalmente esta timidez de não querer ser o centro das atenções), e continuamos a conhecê-las agora. Assim, a primeira e essencial qualidade deste livro é a capacidade de ensinar os mais pequenos a reconhecer as emoções, a aceitá-las e a lidar com elas.
Além de ser um livro muito breve, é também um livro muito normal, no sentido em que não há nada na história que indique acontecimentos extraordinários. Ora, curiosamente isto não é um defeito. As histórias do Gastão vêm sempre da sua vida quotidiana, das interacções com a família, com os amigos, com os professores e colegas de escola. E tendo em conta que o objectivo parece ser assimilar as emoções sentidas no dia-a-dia, isto só pode fazer sentido. Não ficamos tristes só quando acontece uma coisa muito má. Não nos sentimos envergonhados só quando temos de fazer um grande discurso. Ver as emoções reflectidas nos dias normais torna-as também mais normais. E é essa a ideia, certo?
Claro que, ao terceiro livro, já não é difícil identificar a fórmula que a história seguirá. Motivos da emoção, consequências da emoção, forma de lidar com ela, regresso à normalidade. Ainda assim, o que é bastante óbvio a um olhar adulto poderá não o ser assim tanto aos olhos dos pequenos leitores a quem esta história se destina. E, tendo em conta que cada emoção tem as suas especificidades, faz todo o sentido que haja uma história específica para cada uma delas.
Leve e simples em todos os aspectos, mas estranhamente terno na sua simplicidade, um bom livro para explicar aos mais novos que sentir faz parte da vida - e não tem nada de mal. E para nos lembrar também a nós que já não somos crianças essa pequena e importante verdade.

Autora: Aurélie Chien Chow Chine
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Miss Marple - Um Cadáver na Biblioteca (Dominique Ziegler e Olivier Dauger)

Quando a empregada dos Bantry acorda os seus patrões com a notícia de que está um cadáver na biblioteca, o primeiro pensamento a ocorrer aos donos da casa é que a mulher deve estar louca. Mas é realmente verdade. Está mesmo um cadáver de biblioteca e pertence a uma jovem que nenhum dos moradores parece conhecer. Naturalmente, a polícia é chamada, mas, quando as poucas pistas são tão contraditórias, o raciocínio das autoridades parece não bastar. E é então que a senhora Bantry se lembra de chamar a sua amiga Jane Marple, uma senhora de aspecto inofensivo, mas com uma mente temível.
Sendo uma adaptação de um dos policiais de Agatha Christie, é inevitável partir para a leitura com a ideia de que a história será mais surpreendente para quem, como eu, não tiver ainda lido o romance original. Afinal, parte do que torna esses livros tão empolgantes é o mistério que se prolonga até à surpresa final. Neste caso, não tendo qualquer conhecimento prévio da história, essa impressão confirma-se, pois o que mais marca na leitura é precisamente a sucessão de possibilidades e suspeitas que vão abrindo caminho para o final inesperado.
Outro aspecto que parece ser característico dos livros de Agatha Christie é o raciocínio elaborado que leva à descoberta do criminoso. Assim, poder-se-á sentir uma apreensão inicial face aos inevitáveis monólogos da protagonista. Não há, porém, motivos para apreensão. Embora haja, de facto, diálogos extensos, tudo parece fluir num equilíbrio eficaz entre o texto e a arte, até porque, a contrapor às explicações mais longas, há o muito que se retira da imagem, da expressão e do movimento. Movimento no sentido de acção e também no sentido de movimentações da intriga, pois, sendo certo que não faltam suspeitos nem álibis, há uma teia de perguntas sem resposta para desvendar.
Mas, voltando à expressão, importa ainda destacar que todo este livro transborda de britishness, da atitude um tanto snobe com que os figurões da sociedade olham para as personagens mais humildes à própria forma de falar das personagens, e sem esquecer aspectos como a indumentária e o comportamento sempre muito digno e sereno - mesmo face aos momentos mais dramáticos - das personagens.
Tudo somado, fica a imagem de uma adaptação que vale por si mesma - sendo, possivelmente, até mais marcante para quem embarca na leitura sem conhecer as grandes revelações. Completa, empolgante e visualmente muito apelativa, principalmente a nível de desenvolvimento dos cenários, transporta perfeitamente para este novo formato a aura de mistério e de intriga que se sente ao ler um dos policiais de Agatha Christie. Que é, aliás, exactamente o que se pretende.

Autores: Dominique Ziegler e Olivier Dauger
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Saga - Volume Seis (Brian K. Vaughan e Fiona Staples)

A vida de Hazel sofreu uma grande reviravolta desde que perdeu um dos pais e depois o outro. Agora, está presa num centro de reeducação, onde, graças à astúcia da avó, o seu segredo permanece a salvo. Mas será impossível guardá-lo para sempre e é também por isso que Hazel acaba por confiar a verdade à sua professora. E no momento certo, pois, mais uma vez, há caminhos que estão prestes a cruzar-se. Novamente juntos, Marko e Alana não desistem de encontrar a filha e conseguiram finalmente descobrir a sua localização. Agora, só precisam de a tirar de lá, mesmo que para isso precisem de recorrer novamente a um aliado muito relutante.
Chega-se a um ponto, quando se está a ler uma série longa, em que é difícil decidir o que dizer sobre ela sem correr o risco de revelar demasiado, principalmente quando se trata de um percurso tão cheio de reviravoltas e desencontros como o das personagens desta Saga. Mas há, ainda assim, algumas qualidades - e, correndo o risco de me tornar repetitiva, qualidades não faltam a estes livros - que podem, ainda assim, ser destacadas de forma suficientemente neutra para não estragar a surpresa a quem, como eu, se vai apaixonando um pouco mais por estas personagens a cada volume que passa.
Continua a sobressair o desenvolvimento das personagens, tanto a nível de carácter e de eficácia dos diálogos (com Hazel a destacar-se cada vez mais neste aspecto) como da construção visual das diferentes espécies envolvidas. Da estranheza dos habitantes do reino Robot à fofura quase irresistível de Ghüs, passando pela professora de Hazel e pela sempre notável evolução visual de Marko e Alana, há toda uma diversidade de espécies e também de cenários que nunca nos deixa esquecer que é de uma guerra universal que se trata. Mas a evolução estende-se a tudo e sobressai precisamente na forma como o que inicialmente pareciam heróis e vilões relativamente lineares se vai metamorfoseando numa teia de personagens cada vez mais complexas e humanas.
Há ainda um outro factor a destacar e que contribui em muito para o sempre notável equilíbrio entre novidade e familiaridade que parece definir esta série. A história vai-se dividindo entre os percursos das diferentes personagens, já que o que ficou para trás causou uma sucessão de encontros e desencontros. Assim, há personagens que desapareceram deste volume, outras que assumem novo protagonismo ou entram em cena pela primeira vez e outras que, embora sempre presentes, revelam novas facetas da sua personalidade. E, sendo certo que tudo fica, mais uma vez, em aberto (até porque, felizmente, ainda há mais Saga para ler), a forma como tudo termina é, mais uma vez, perfeita: com uma grande revelação e a certeza de que, venha o que vier a seguir, será certamente uma nova e empolgante fase.
Sempre empolgante, sempre surpreendente e sempre belíssimo no seu equilíbrio entre os vastos mundos onde esta história decorre e as complexidades internas de cada personagem, eis, pois, mais um volume que corresponde inteiramente às altíssimas expectativas. Prometendo, como sempre neste mundo maravilhoso, que o melhor ainda está para vir.

Autores: Brian K. Vaughan e Fiona Staples
Origem: Recebido para crítica

domingo, 15 de dezembro de 2019

Percy Jackson e o Último Olimpiano (Rick Riordan)

Aproxima-se a data do cumprimento da Grande Profecia, e os últimos meses serão pejados de batalhas e obstáculos. Cronos tomou posse do corpo de Luke, comanda um exército devastador de monstros, semideuses e deuses menores e não está disposto a parar até ter destruído o Olimpo pedra por pedra. Mas Percy Jackson não está disposto a permiti-lo. Com a ajuda dos seus amigos e dos mais improváveis aliados, Percy prepara-se para defender o Olimpo enquanto os deuses estão ocupados com o maior dos seus inimigos. Mas a sombra da Grande Profecia é pesada... e Percy não sabe se vai chegar vivo ao fim da história.
Parte do que torna estes livros tão empolgantes é a forma como o autor consegue construir uma história onde a acção é constante, os mistérios estão por toda a parte e o percurso das personagens é feito de inúmeros perigos e intrigas, acrescentando ao mesmo tempo um meticuloso desenvolvimento dos elementos mitológicos e um notável equilíbrio entre emoção e humor. Ao contar a história pela voz de Percy, o autor confere a todos os acontecimentos um impacto mais pessoal. Ao intercalar as grandes batalhas com momentos de dúvida e de vulnerabilidade, torna as suas personagens mais humanas. E ao fazer surgir a perda, o amor e também o humor cria um espectro emocional mais vasto que torna a leitura simplesmente viciante.
Sobressai também a capacidade de surpreender, principalmente tendo em conta que tudo gira em torno de um destino profetizado. É neste volume final que a totalidade da profecia é revelada, o que antevê um destino sombrio para o seu protagonista. E, ainda assim, nada nesta história é previsível. Dos mais bizarros momentos nos combates às súbitas viragens em plena batalha, e sem esquecer, claro, a verdade escondida sob os versos da profecia, nada segue exactamente o rumo esperado, e também isso contribui para que seja tão difícil parar de ler. É impossível não querer saber o que acontece a seguir - e se o que julgamos ser certo afinal não é bem assim.
Há ainda um outro ponto a destacar, vindo já dos volumes anteriores, mas que aqui atinge o seu auge natural. Conhecemos Percy Jackson com doze anos e o tempo passou. Ao longo da série, foi possível vê-lo crescer e amadurecer, sem perder nenhuma da irreverência que tão carismático o torna. Mas esta evolução de Percy e das outras personagens, feita não só do crescimento normal, mas também das dificuldades, da perda, da descoberta de laços insuspeitos e da necessidade de ser forte mesmo perante os maiores adversários e das mais profundas vulnerabilidades pessoais dá a toda esta história um envolvimento pessoal. São heróis, são semideuses. Mas são acima de tudo humanos. Muito humanos.
Foi uma longa aventura, cheia de peripécias, perigos e grandes batalhas. Mas foi, acima de tudo, uma história onde as personagens ganharam vida, tanto nos momentos mais duros como nos mais leves e divertidos. É esta aventura que chega ao fim neste derradeiro volume das aventuras de Percy Jackson. Mas fica na memória, sem dúvida, durante muito tempo.

Autor: Rick Riordan
Origem: Aquisição pessoal

sábado, 14 de dezembro de 2019

Contos da Sétima Esfera (Mário de Carvalho)

Contos da Sétima Esfera. Não são das mil e uma noites nem histórias do outro mundo - ou será que são? São certamente contos onde o improvável domina e em que cada história, da mais breve à mais extensa, contém em si a matéria de que são feitas as surpresas. São histórias de gente bizarra - e de circunstâncias bizarras. Mas é precisamente isso que as torna tão interessantes.
Divide-se em três partes este conjunto de contos. E sendo o livro dividido em três partes, em três partes também se dividirá este texto.

I

Agade e Nimur dá início às hostilidades narrando a breve história de um rei que, tendo profanado a sua cidade, se vê castigado por uma intervenção divina... intervenção está que será, por sua vez, vingada. Muito breve, mas com um embalo estranhamente cativante, este pequeno conto em tons de lenda antiga abre da melhor forma as portas destes intrigantes Contos da Sétima Esfera.
Do deus memória e notícia fala da manisfestação de um novo deus - o verdadeiro, claro! - cujo poder traz todo o tipo de benesses... e respectivos preços, mas cuja destruição pode ainda assim ser consumada. Relativamente extenso, mas sempre cativante, sobressai principalmente pelos dois aspectos: pelo tom quase bíblico da narrativa, pontuada também pelo registo de pretensos cronistas e pela forma como põe em evidência o contraste entre fé e racionalidade.
Segue-se A simetria, história de um trono sucessivamente usurpado, de ressentimentos transformados em mortes macabras e de uma estranha simetria chamada justiça poética. Empolgante e ao mesmo tempo enigmático, cativa acima de tudo pela sucessão de acontecimentos intensos, bem como pela concepção de justiça feroz e implacável subjacente a esta sucessão de destinos.
O desafio fala de um homem que, inspirado por uma história que ouviu em tempos, escolhe colocar acima de tudo a defesa da sua honra, com consequências desastrosas para a missão que lhe incumbia cumprir. Com aura quase que de história das mil e uma noites, e contendo também uma lição algo sinuosa a descobrir, trata-se de um conto bastante cativante em que, embora o protagonista não seja particularmente memorável, a ideia que o move é difícil de esquecer.
Almocreves, publicanos, ricos-homens e ciganos encerra a primeira parte com uma história de encontros casuais de consequências imprevistas e que se prolongam para lá do tempo numa linha temporal difícil de definir. E difícil de definir é uma boa expressão para descrever este conto, pois, pese embora o embalo dos acontecimentos que torna a leitura estranhamente empolgante, no fim são muitas as perguntas que ficam sem resposta e acaba por ser o mistério a alma da história.

II

Do problema que o capitão Passanha houve de resolver, quando em circunstâncias atribuladas, comandava o Maria Eduarda no estreito de Malaca e do bom despacho que lhe deu com a cooperação de todos ou O Enigma da estátua mutilada encontrada nos fundos de Shandenoor, história de longo título, mas relativa brevidade, fala de uma batalha naval que deixa um morto incompleto e da solução encontrada para lhe dar um funeral condigno. Bastante caricato em termos de premissa, não deixa de ser, ainda assim, especialmente cativante pela naturalidade com que esta ideia bizarra ganha forma.
Definitiva história do Professor Pfiglzz e seu estranho companheiro apresenta-nos um anjo da guarda que, após se tornar visível, é seriamente maltratado e posto à prova pelo seu protegido. Até ao dia... Bastante extenso, mas sempre cativante, parte de uma premissa ligeiramente bizarra - um anjo da guarda que se torna visível a todos! - e vai ganhando intensidade à medida que passa de protector a vítima, abrindo assim caminho para uma mudança de destino. Cheio de surpresas e com um final muito forte, é provavelmente um dos melhores contos do livro.
Segue-se Que todos ficassem bem..., história de uma atribulada viagem de barco e da aparição de um deus que exige um sacrifício. Também bastante extenso e bastante descritivo, avança a um ritmo bastante pausado, mas não deixa, ainda assim, de ser uma leitura interessante, primeiro pela estranheza de toda a situação e depois pela mistura de valor e importência que envolve o protagonista.
As três notícias do diabo falam precisamente disso, de três confidências feitas pelo diabo sobre o futuro de três homens diferentes. Um pouco distante, talvez por ser contado como a história de uma história contada a alguém, deixa sobretudo na memória a visão de três catástrofes tão dramáticas quanto bizarras, o que acaba por ser, por si só, uma surpresa.
O bólide conta a história de um ditador que queria a Lua, mas acabou por provocar apenas a sua queda. Não é a história da queda do ditador, queda essa afirmada logo de início, mas a das suas bizarras aspirações, o que faz com que, mais do que de dramas e emoções, seja, acima de tudo, uma história caricata e divertida.
Segue-se O Caminho de Cherokee Pass, história de uma dica oportuna surgida no meio do nada e que acaba por se revelar frutífera... das mais inesperadas formas. Com o seu ambiente de história de pistoleiros e um enigma nunca totalmente resolvido, cativa acima de tudo pela aura de mistério que envolve o misterioso fornecedor da dica. Além, claro, das peripécias que este tão friamente se digna contar.
O Contrato conta a história de um falso pacto com o diabo que talvez não seja assim, afinal, tão falso. Só que com nomes diferentes... Provavelmente o melhor conto do livro, trata-se de uma história envolvente, com a medida certa de mistério e de sobrenatural associada a uma visão tristemente certeira da forma como certos poderosos vêem os seus subalternos. Muito bom.
E é com A pele do judeu que a segunda parte termina, história de um estranho mapa traçado em pele humana que promete conduzir à prata, mas tem contornos de ruína. Relativamente pausado, mas muito intrigante na forma como o protagonista é conduzido, marca principalmente pelo enigma de Magda, que, embora nunca totalmente resolvido, faz com que todo o percurso esteja envolto em mistério.

III

O desdobramento, breve história de um ritual que resulta em multiplicação, consegue, na sua relativa brevidade, introduzir as medidas certas de mistério, misticismo e um estranhamente humano toque de confusão que faz com que, embora quase tudo fique sem resposta, tudo pareça também estranhamente adequado.
Também relativamente breve, A espada japonesa fala de uma espada herdada por um monge e que traz consigo um legado bastante mais sangrento do que as meras mortes do passado. Intrigante, misterioso e intenso, apesar da brevidade, é um daqueles contos que provam que uma história não precisa de ser grande para ser uma grande história.
A autora dá vida a uma imagem no espelho, fazendo dela autora de uma obra literária desconhecida, mas familiar, à dona do corpo que reflecte a imagem. Um tanto bizarro e bastante intrigante, mais uma vez deixa tudo sem resposta, mas de uma forma que faz um certo sentido.
Segue-se O circuito, que fala da estranha mancha na parede de um quarto e de como os seus movimentos parecem pressagiar uma espiral ominosa. Como habitual, também nesta história há muito que fica envolto em mistério, mas não deixa de ser bastante fascinante o paralelismo entre a espiral da mancha e o círculo da vida.
A passagem é um daqueles contos em que o título diz tudo. É de uma passagem que se trata, bizarra e inexplicável. E, à semelhança dos contos anteriores, também aqui se trata de um fenómeno improvável, que, sem nunca ser realmente explicado, consegue proporcionar uma leitura intrigante.
Coleccionadores fala de um mapa antigo que se revela ser uma mera falsificação, e depois... depois revela-se também algo mais. O mais surpreendente neste conto é a forma como, de um duo de protagonistas que não são propriamente a epítome do carisma, o autor consegue fazer surgir um conto tão empolgante e com um final tão eficaz.
O sonho fala da visita de uma estrangeira a Portugal que traz consigo sonhos tenebrosos vindos de um passado distante e capazes de uma nitidez... devoradora. Também um dos contos mais marcantes do livro, prende da primeira à última frase, não só pelas estranhas ligações entre passado e presente, e pelo final dramático, mas também pela já habitual forma como o enigma nunca realmente explicado acaba por fazer o habitual sentido.
Segue-se O fim, que não é o último conto, mas é realmente uma história do fim... do mundo, claro! De um fim do mundo previsto e anunciado, mas encarado com uma serenidade estranhamente filosófica. Afinal, ninguém morre quando morrem todos... E é esta estranha ideia, mais do que o avolumar da tragédia iminente, que fica na cabeça uma vez terminada a leitura.
E é O emprego o derradeiro conto, história de três homens de vidas atribuladas, funções acolhidas e depois perdidas e um certo acaso meio sobrenatural que faz com que tudo vá mudando. Qualquer dos três protagonistas justificaria um conto só para eles, mas é particularmente interessante ver que, embora os seus caminhos só se cruzem num ponto, as diferentes histórias parecem complementar-se.

Terminada esta leitura, o que fica é, em suma, a imagem de toda uma caricata sucessão de aventuras feitas do bizarro e do sobrenatural, de mistérios e de perguntas sem resposta e, ainda assim, estranhamente fascinantes. São realmente Contos da Sétima Esfera... ou de outro mundo? Talvez. Mas muito interessantes, sem dúvida.

Autor: Mário de Carvalho
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Sarita Rebelde no Recreio (Lúcia Vicente e Cátia Vidinhas)

Nas férias de Verão, a Sarita teve tempo para fazer muitas coisas, e a sua preferida foi descobrir, nos muitos jogos de futebol com os primos, que é uma excelente ponta de lança. Agora, porém, no recreio, vê-se obrigada a ficar a ver os rapazes jogar, pois nenhum deles a quer na sua equipa. Afinal, as raparigas não sabem jogar futebol, não é? Ou, no máximo, vão à baliza. Mas a Sarita não se conforma e, com o seu talento para o jogo, está decidida a provar-lhes que as raparigas podem fazer o que quiserem - inclusive jogar futebol.
Um dos aspectos mais interessantes deste livro (como, aliás, do anterior) é a clara mensagem positiva que surge desta pequena aventura da Sarita. Não é difícil olhar para o mundo e reconhecer certos preconceitos no que respeita às raparigas e mulheres. No livro anterior, falava-se de que não havia mulheres astronautas (mas afinal...). Neste, fala-se da ideia preconcebida que diz que há brincadeiras de raparigas e brincadeiras de rapazes, o que acaba por impor aos mais novos limitações desnecessárias. Ora, tendo em conta a visão que este livro transmite - todos podem brincar a tudo! - torna-se também evidente que esta não é apenas uma lição para os mais novos, o que faz deste livro, além de uma bela história para ler aos mais pequenos, também um bom ponto de reflexão para os leitores adultos.
Mas nem só da mensagem vive esta pequena história, que, embora muito breve, consegue proporcionar uma leitura envolvente. Vive também da personalidade forte da Sarita, que, embora receosa, às vezes, de agitar as águas, consegue fazer valer o seu ponto de vista; do desenvolvimento da história, que apesar de muito sucinta, culmina num ponto positivo e numa revelação para os colegas da Sarita; e das ilustrações que dão vida e alma a esta história simples, mas muito cativante.
Uma história cativante, uma protagonista forte e uma mensagem muito pertinente: tudo isto se conjuga para dar forma a uma leitura muito breve, mas muito interessante, repleta de bonitas ilustrações e que serve de ponto de partida para gerar, desde cedo, mentes mais abertas. Um belo livro para ler aos mais novos - e também para fazer pensar os que já não o são.

Autoras: Lúcia Vicente e Cátia Vidinhas
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Os Cavaleiros de Heliópolis - Nigredo|Albedo (Alejandro Jodorowsky e Jérémy)

Durante milénios, a sociedade secreta conhecida (entre os seus membros, entenda-se) como Cavaleiros de Heliópolis manteve uma existência invísivel, partilhando os seus segredos apenas com aqueles capazes de superar as mais terríveis provas iniciáticas. Mas é chegada finalmente a hora de conduzir pelo caminho alquímico um iniciado muito especial. Trata-se de Luís XVII, herdeiro legítimo do trono de França, mas destinado a um percurso muito diferente e cheio de dificuldades. Pois a iniciação não termina com a entrada na sociedade. Esperam-no grandes desafios - e a possibilidade, talvez, de moldar o futuro da humanidade.
Conhecem aquela expressão que diz que não se deve julgar um livro pela capa? Bem, neste caso podem. Até porque, com uma capa e contracapa destas, as expectativas não podem ser senão as melhores. O primeiro impacto é como que a imagem visual de uma mistura entre Assassin's Creed e Trinity Blood. E uma das primeiras surpresas é que, embora o interior esconda algo diferente, com uma identidade muito própria, os temas e as ligações históricas fazem com tudo acabe, ainda assim, por ir ao encontro dessa belíssima expectativa inicial.
Outro aspecto que sobressai é que, sendo um livro grande, facilita a apreciação dos muitos pormenores escondidos na arte, sejam eles uma expressão de pasmo ante uma oportuna revelação em pleno combate, os símbolos escondidos nas vestes dos mestres alquimistas ou as simples semelhanças entre personagens aparentemente sem qualquer relação, sendo esta última especialmente importante tendo em conta o desenrolar dos acontecimentos. Junte-se a isto o traçado dos cenários, particularmente notáveis precisamente pela sua vastidão, mas também pelo contraste entre os diferentes períodos históricos retratados, e o resultado é um livro que, além de fascinar pela história, fica na retina pela beleza da arte - nos cenários estáticos, nos estádios alquímicos e principalmente nas sequências de combate.
O que me leva ao que será talvez o aspecto mais intrigante neste livro em que basicamente tudo é intrigante: a cuidadosa teia de história e misticismo que define toda esta aventura. História que abrange os últimos dias de Luís XVI, a revolução, o regresso da monarquia e os primeiros triunfos de Napoleão. Misticismo, que não se cinge à mera existência de uma sociedade secreta, debruçando-se amplamente sobre os seus rituais, simbolismos e práticas iniciáticas. E, no meio de tudo isto, a história de uma personagem misteriosa, tão enigmática no princípio como no final deste volume, mas estranhamente fascinante no papel que tem para desempenhar.
Tudo converge, pois, para um todo harmonioso: cenários belíssimos, sequências de combate que são pura harmonia, diálogos brilhantes e um conjunto de desenvolvimentos que, embora cuidadosamente entretecidos na história, traçam os passos de um caminho algo diferente. Belo ao primeiro contacto e ainda mais ao chegar ao fim, é também, à sua maneira, uma obra alquímica. Daquelas que vale mesmo a pena conhecer.

Autores: Alejandro Jodorowsky e Jérémy
Origem: Recebido para crítica

sábado, 7 de dezembro de 2019

Saga - Volume Cinco (Brian K. Vaughan e Fiona Staples)

Quando o que está em jogo é a família, a palavra dominante é sacrifício, e esse sacrifício pode implicar não só correr grandes perigosos como também estabelecer alianças temporárias mais ou menos desagradáveis. Marko vê-se aliado ao Príncipe Robot IV na tentativa de seguir a pista de Alana e dos filhos de ambos, nas mãos de um aspirante a revolucionário. Já Gwendolyn e Sophie juntam-se a A Marca para tentar obter a cura de que A Vontade necessita para sobreviver. E quanto a Alana... bem, as revoluções são mais bonitas na teoria do que na prática e Dengo está prestes a descobrir que os seus aliados têm muito menos escrúpulos do que ele.
É algo de absurdamente fascinante a forma como, ao quinto volume, esta Saga continua a surpreender nas suas múltiplas facetas. No mundo, que se vai expandindo cada vez mais à medida que os vários protagonistas visitam, nas suas respectivas demandas, diferentes locais com os mais diversos habitantes; nas relações, cada vez mais complexas e mais realistas, principalmente por serem tão surpreendentemente emotivas num mundo onde a guerra global parece ter insensibilizado muitos; e no crescimento da intriga para novas possibilidades, abrindo novos caminhos para as personagens para depois os cortar da mais inesperada das formas, deixando um impacto tão devastador como a curiosidade irresistível de saber o que acontece a seguir.
Claro que, sendo banda desenhada, não é propriamente uma surpresa que parte deste delicioso equilíbrio surja também do balanço entre a arte e os diálogos. Já a evolução em termos do papel que cada parte representa é bastante surpreendente. Não desapareceram as frases marcantes, principalmente na narração de Hazel, e muito menos as tiradas certeiras. Mas parece que, à medida que a história evolui, as coisas começam a precisar de menos palavras. Conhecemos o que as personagens sentem ao ponto de lhes vermos esses sentimentos nos rostos - até porque um dos aspectos mais notáveis é mesmo a expressividade de um desenho transbordante de emoções. E mais. Alguns dos momentos mais emotivos estão mais em gestos do que em palavras, e o mesmo se aplica aos mais divertidos e caricatos (com destaque para um certo momento em página dupla).
Mas voltando ao enredo propriamente dito, porque há ainda outra faceta a destacar. É apenas natural que, com o adensar da trama, novas personagens entrem em cena e novos perigos venham à superfície. É, afinal, de uma guerra que se trata. Mas o mais impressionante neste aspecto é a forma como as personagens geram emoções complexas, amores e ódios, empatias relutantes ou simpatias absolutas. E, quando pensamos que os nossos preferidos estão seguros... bem, ninguém está seguro numa história como esta.
Evolução e estabilidade num equilíbrio praticamente perfeito: é possivelmente esta grande força que faz com que esta série consiga, a cada novo volume, tornar-se ainda mais apaixonante. E, com as suas personagens notáveis, o seu mundo cada vez mais vasto e povoado de espécies visivelmente intrigantes e um contraste feroz entre brutalidade e ternura, é como um sempre ansiado regresso a um local onde somos sempre felizes. Belíssimo, encantador... maravilhoso.

Autores: Brian K. Vaughan e Fiona Staples
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Sob a Forma do Silêncio (Emanuel Madalena)

Sob a forma do silêncio - é este o mote para este conjunto de poemas. E há uma figura escondida sob a forma deste silêncio, múltiplas vezes citada e presença discreta ao longo de todo o texto. Wittgenstein está lá, em toda a parte, e no entanto poderia não estar. Pois, clara inspiração de todo o conjunto, é, ainda assim, o eco de uma imagem que soará familiar a muitos outros silêncios.
Parte do que torna um livro de poesia memorável é, muitas vezes, o equilíbrio entre a completude de cada poema e a sensação de unidade que faz do conjunto um todo mais vasto do que a soma das partes. Este livro eleva esse equilíbrio a um outro nível, pois, embora maioritariamente completos em si mesmo (salvo algumas excepções), é clara a pertença ao todo de cada um dos elementos, chegando mesmo a haver uma secção final de notas - que são também poemas, diga-se - a acrescentar novos elementos ao que veio de trás.
Outro aspecto a sobressair é o próprio estilo poético, feito de uma estrutura bastante livre, sem grandes imposições em termos de rima ou de métrica, mas que assume um registo bastante complexo. Isto é particularmente evidente nos poemas mais extensos, evocativos de uma imagem mais elaborada, mas ainda assim de surpreendente nitidez, e que contrastam com o surpreendente impacto daqueles que, em dois ou três versos, projectam também uma imagem igualmente complexa.
Mas voltando a Wittgenstein. Pode-se ou não conhecer o filósofo, que uma coisa é certa: terminada a leitura, fica a vontade de descobrir (ou redescobrir) a sua vida e as suas ideias. E, além do mais, fica outro aspecto intrigante, que a sensação de, independentemente do conhecimento prévio, se ter percorrido as páginas de um elogio feito tanto à imagem do autor como da figura que o inspirou. Pode não se conhecer Wittgestein, mas, no fim, fica a sensação de ter andado por perto. E essa é uma sensação estranhamente fascinante.
Construído como um todo coeso, mas feito, ainda assim, da soma de múltiplas unidades completas, trata-se, pois, de um livro de poesia que deixa uma marca maior se lido consecutivamente. E que, entre a complexidade do estilo e a admiração que parece mover todas as palavras, acaba por se tornar estranhamente memorável também pela forma dos silêncios que evoca.

Autor: Emanuel Madalena
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Diário de Uma Miúda Como Tu - Regresso às Aulas (Maria Inês Almeida e Manel Cruz)

As férias da Francisca terminaram e agora ela está um bocadinho nervosa, pois vai para uma escola nova e não sabe muito bem com o que contar. Mas o medo do desconhecido às vezes é apenas isso e o que está do outro lado não é tão mau como pensamos. Na nova escola, Francisca vai fazer novos amigos, envolver-se em novas actividades e até desenvolver uma pequena paixoneta - sem nunca perder de vista a sua enorme consciência ecológica que a faz querer arrastar o mundo para a sua luta por um ambiente melhor.
Um dos aspectos que mais contribuem para tornar esta série tão interessante é a forma como cada aventura da Francisca consegue ser simultaneamente divertida e educativa. Há espaço para todo o tipo de peripécias, dos pequenos atritos com o irmão às desventuras dos dias que correm mal, passando pela sempre luta da Francisca contra a comida de que não gosta. E, no meio de tudo isto, há uma consciencialização bem estruturada para as questões ambientais e para o que cada um pode fazer para ajudar a salvar o planeta.
Sendo certo que é um livro juvenil, e portanto relativamente simples, é também uma história com muito para ensinar aos adultos, principalmente no já destacado tema da consciência ambiental. Mas, sendo vocacionado principalmente para os mais novos, há dois aspectos que importa salientar: primeiro, a escrita acessível, que confere à Francisca uma voz credível para a sua idade e com que os seus contemporâneos se podem identificar; segundo, as ilustrações, cuja relativa simplicidade contribui para dar ao livro o aspecto daquilo que é: o diário da protagonista.
E, claro, pode parecer secundário, tendo em conta a naturalidade com que tudo acontece e a maturidade ambiental da protagonista, mas uma coisa é certa: a Francisca está a crescer. E a forma como isto se vai evidenciando - no seu recém-descoberto interesse por rapazes, mas também na forma mais sensata com que lida com a sua arqui-inimiga Madalena, por exemplo - torna a leitura mais interessante, pois, além das suas divertidas aventuras, acompanhamos também o crescimento desta miúda.
Ao terceiro volume, já quase é escusado dizer que a impressão que fica é naturalmente boa. Pois, com a sua componente didáctica associada a um aspecto visual muito cativante e a uma história tão leve quanto divertida, os diários da Francisca já se tornaram uma leitura imperdível. Principalmente para os mais novos, claro. Mas não só.

Autores: Maria Inês Almeida e Manel Cruz
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Criminal - Livro Um (Ed Brubaker e Sean Phillips)

Há locais onde, embora movendo-se nas sombras, o crime parece estar em toda a parte. E, para os que crescem nesse ambiente, a verdade é que a vida não é pródiga em alternativas. Leo Patterson escolheu cingir-se sempre às suas regras, pois, embora soubesse que isso lhe valera uma reputação de cobarde, as sombras dentro dele ameaçavam ser mais fortes, mas seguir as regras deixou de ser opção. Já Tracy Lawless traz a vingança aos ombros, mas não sabe que o irmão que quer vingar já não era a mesma pessoa quando morreu. Cada um carrega consigo o fardo da sua história, mas há ligações apenas insinuadas que fazem deles parte de um todo maior...
Para quem, como eu, já leu o pedaço de génio que é The Fade Out - Crepúsculo em Hollywood, é basicamente inevitável mergulhar na leitura de um livro desta dupla com as expectativas altíssimas. Não se pode esperar menos depois do brilhantismo. E, sendo certo que todos os aspectos correspondem às expectativas, o mais notável de todos é que, entrando num mundo diferente, com uma história mais dispersa entre diferentes personagens e onde o cenário de crimes e golpes não pode senão implicar uma certa medida de violência, o que fica na memória é a mesma desolação profunda, o mesmo impacto trágico da impotência das personagens, a mesma impressionante capacidade de fazer nascer um coração nas trevas.
Claro que, sendo parte de uma série mais ampla, há necessariamente dois pontos a sobressair. Primeiro, as perguntas sem resposta que emergem de duas histórias que são, apesar de tudo, independentes no essencial. Sendo independentes, fecham a linha central do enredo, o que faz com que, mais do que curiosidade insatisfeita, fique a impressão de uma conclusão adequada cujas ramificações se estenderão para o futuro. E depois o ciclo de oportunidades mais ou menos perdidas, resultante do percurso de cada personagem, com todos os seus anseios e decisões tomadas a fim de sobreviver a um mundo do qual é impossível fugir. Isto é, aliás, particularmente marcante, pois tem o impressionante efeito secundário de despertar uma empatia quase indescritível por personagens que não deixam de ser, ao fim e ao cabo, criminosos.
Sendo uma história de crime, e muito especificamente de submundos do crime cujos tentáculos se estendem até às supostas autoridades, faz também todo o sentido que se trate de uma história negra. E negra em todos os aspectos, do desespero latente nos mais impressionantes diálogos aos tons que povoam a arte, pois grande parte do enredo passa-se nas sombras, rasgado embora por clarões de luz e de sangue precisamente acrescentados. Imagem e diálogo fundem-se, pois, num equilíbrio praticamente perfeito, em que as expressões no rosto das personagens dizem tanto ou mais do que as palavras em si.
A única coisa previsível neste livro é mesmo o brilhantismo que se fazia prever. Ah, e claro, a vontade irresistível de conhecer mais deste submundo de sombras e de morte, construído com personagens tão negras como o mundo que se vêem obrigadas a habitar. Intenso, fascinante e repleto de momentos memoráveis, um livro que recomendo sem reservas.

Autores: Ed Brubaker e Sean Phillips
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

O Amigo do Deserto (Pablo d'Ors)

Uma frase na contracapa de um livro chama a atenção de Pavel para a existência de uma estranha associação de intitulados Amigos do Deserto. E, sem saber porquê, Pavel vê-se atraído para eles. Aquela não é, porém, uma associação normal. Só aos verdadeiramente apaixonados pelo deserto é permitida a pertença na associação e têm formas no mínimo caricatas de testar essa paixão. De início, Pavel não sabe bem o que puxa para ali. Mas, embora não o saiba, o deserto chama. E a sua vida nunca mais será igual.
Feito de partes iguais de mistério e de introspecção, este é um livro difícil de descrever. Por um lado, há os enigmas e o estranho comportamento da associação, as viagens, com todas as suas experiências e até os momentos de perigo vividos pelo protagonista. Por outro, há a sensação de uma viagem que, embora situada nos desertos exteriores, é mais ao interior da personagem e àquilo que define a sua busca do que a qualquer deserto do mundo. Tudo acaba, pois, por ser um pouco ambíguo, pois o percurso de descoberta pessoal de Pavel faz-se, acima de tudo, deixando coisas para trás para construir o seu próprio deserto.
Há, é certo, algo de fascinante nesta ambiguidade e o mais surpreendente é que, mais do que dos acontecimentos narrados, é das palavras - e até, de certa forma, dos estranhos desenhos do deserto - que surgem as impressões mais memoráveis. Também elas difíceis de descrever, claro, e emocionalmente complexas, mas estranhamente cativantes na forma como reflectem a confusão, a perda e finalmente a descoberta do protagonista, não só relativamente à tal amizade pelo deserto, mas sobretudo acerca do seu deserto interior.
É quase um percurso iniciático, em que o protagonista deixa a sua vida para trás para assumir uma nova vida, o que acaba por conferir ao livro uma certa e intangível aura de misticismo. Aura essa que, como tudo o resto neste livro, é também difícil de concretizar, mas que está lá, e que cativa também, tornando a fluidez das palavras mais envolvente.
Finda a leitura, fica esta intrigante e surpreendente imagem de um livro que, embora breve e de uma notável fluidez, contém profundidades insuspeitas na forma como a viagem exterior ao deserto reflecte a jornada interior do protagonista. Ambíguo, às vezes, mas precisamente por isso tão intrigante, um livro que nem sempre é fácil de descrever... mas que fica na memória, ainda assim.

Autor: Pablo d'Ors
Origem: Recebido para crítica

domingo, 1 de dezembro de 2019

O Ano do Pensamento Mágico (Joan Didion)

A vida desaba de um momento para o outro. Num instante, julgamos que temos tudo e eis que, de repente, tudo mudou. É esta a história de Joan Didion, que, no espaço de poucas semanas, se deparou com a hospitalização da filha e a morte súbita do marido, vítima de um ataque cardíaco. Começa então o seu ano do pensamento mágico, como se refere a um período em que a vida continua, mas a sombra continua omnipresente, embora não reconhecida. Em que a morte está em todo o lado, mas há um raciocínio latente que lhe diz que o marido vai voltar.
Sendo, acima de tudo, a história de uma experiência pessoal, um dos primeiros aspectos a surpreender é a forma como a autora cruza essa sua experiência com todo um amplo conjunto de referências a estudos e obras sobre a questão do luto. Por entre o registo sempre emotivo daquilo por que está a passar, em termos de tribulações na vida, mas também no seu interior, a autora vai desfiando citações que, embora confiram ao texto um ritmo mais pausado, lhe conferem também uma maior pertinência. Afinal, já todos nos questionámos sobre a morte, não é? E encontrar essas questões reflectidas, e acompanhadas de algumas respostas sobre a normalidade do processo de luto, é estranhamente reconfortante.
Embora relativamente breve, é também um livro surpreendentemente profundo, não só pelas circunstâncias dramáticas narradas acerca desta fase da vida da autora, mas principalmente pela forma como as reflexões que estas inspiram acabam por fazer ecoar dentro de nós. Não estamos lá, não passámos por tudo aquilo - mas é fácil ver a história como externa e, ao mesmo tempo, ver pontos em comum. E, sendo certo que é sempre mais fácil analisar quando se está de fora, há, ainda assim, um certo reconhecimento na imagem global de que a vida é fugaz. Tudo passa. Tudo muda. E mais depressa do que pensamos.
Mas nem só de morte e luto vive este livro. Vive também da história de uma relação duradoura, cujos momentos marcantes são aqui narrados sem uma visão cor-de-rosa, mas realçando acima de tudo a união. Vive das experiências profissionais que também vão surgindo e que, além de mostrarem um pouco mais da vida da autora, conseguem também despertar a curiosidade para os muitos livros referidos e citados. E, no fim, o que fica é acima de tudo a vontade de saber mais, de conhecer mais a fundo a obra da autora e do marido. E uma certa sensação intangível, como que de uma lição aprendida sem querer.
Relativamente breve, portanto, e surpreendentemente profundo. Assim se poderá definir este O Ano do Pensamento Mágico. Um desfiar de memórias e de reflexões que, embora aplicadas à vida de quem as narra, têm muito para nos fazer reflectir a todos.

Autora: Joan Didion
Origem: Recebido para crítica