sexta-feira, 31 de julho de 2020

Harrow County 7 - As Trevas Aproximam-se (Cullen Bunn e Tyler Crook)

O fim está próximo, mas o sofrimento está longe de ter terminado. A descoberta da sua família sobrenatural não trouxe paz a Emmy, mas sim a certeza de que uma terrível ameaça paira sobre si e sobre todos os que lhe são queridos. E embora os pactos estabelecidos impeçam a sua família de a atacar directamente, isso não implica que não possam pôr em acção outras peças. Kammi está prestes a regressar, e traz consigo um furioso desejo de vingança. Mas atacar Emmy onde mais dói e também despertar a sua fúria. E a vingança será terrível...
Há algo de fascinante na forma como, a cada novo volume, esta história vai ganhando novas complexidades e desvendando novos mistérios, sem nunca perder o seu contraste certeiro com o que é - assombrações à parte - um cenário de grande simplicidade. Há um equilíbrio poderoso entre a aparente pacatez de Harrow County e as sombrias forças sobrenaturais em conflito nas suas sombras. E, chegados ao penúltimo volume, é inevitável a sensação de que o percurso pode ter sido longo, mas passou com uma rapidez quase sobrenatural, tantas são as surpresas e os picos de intensidade espalhados ao longo da viagem.
Outro contraste poderoso é o que emerge da comparação entre o que é, no fundo, uma separação bem definida entre bem e mal (Emmy e Kammi... ou mais do que isso...) e a ambiguidade resultante do tipo de criaturas e poderes utilizados por ambas. Isto torna-se particularmente evidente na forma como este volume termina, mas é também algo que já vem de trás, com a vontade de Emmy de ser tudo menos o que Hester era, mas a necessidade de recorrer ao seu poder de formas dramáticas. Há, além disso, uma surpreendente profundidade emocional em todo este percurso, que, no caso deste volume específico, ganha ainda mais impacto por surgir de onde - e quando - menos se espera.
Claro que, ao sétimo livro, há certos aspectos que já são familiares, não só a nível de personagens, mas sobretudo em termos visuais. Mantém-se o contraste eficaz entre os tons claros do quotidiano e a escuridão opressiva das partes sobrenaturais, sendo que esta tem vindo a assumir um protagonismo cada vez maior (ou não tivesse este livro o título que tem). Mantém-se a expressividade dos rostos, particularmente eloquente no caso de Emmy e, neste livro específico, no de Kammy. E mantém-se a peculiaridade das criaturas, que alimenta a incessante curiosidade em saber sempre mais sobre o que virá.
Sete livros passados, mantêm-se, portanto, as mesmas qualidades num constante crescendo de intensidade. O mesmo fascínio, a mesma envolvência, a mesma sombria ambiguidade de circunstâncias que contrasta com a firmeza do coração da protagonista. O mesmo equilíbrio, em suma, entre os múltiplos elementos que fazem de Harrow County uma série absolutamente memorável... e prometem grandes coisas para o volume final.

Autores: Cullen Bunn e Tyler Crook
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Da Falta de Liberdade de Expressão (Joshua Wong e Jason Y. Ng)

Ao longo dos últimos anos, os grandes protestos e manifestações realizados em Hong Kong têm sido uma presença relativamente frequente nos noticiários, mas é de certa forma inevitável que a informação e o contexto sejam apresentados de forma reduzida. Que melhor forma, pois, de saber mais do que pela voz de um dos seus mais dedicados activistas? Desde muito jovem que Joshua Wong assumiu a dianteira de um movimento estudantil. A partir daí, a sua dedicação jamais esmoreceu - mesmo quando a sua persistência acabou por o levar à prisão. Esta é a sua história.
São sobretudo dois os aspectos que mais contribuem para tornar esta leitura tão memorável. Primeiro, o relato da situação propriamente dita, com todas as complexidades envolvidas e a longa e árdua luta dos manifestantes. E segundo, o registo pessoal de um livro que, narrado na primeira pessoa e que engloba até um conjunto de cartas escritas na prisão, realça a verdadeira dimensão do impacto que as mudanças que motivaram os protestos tiveram - e podem continuar a ter - na vida de qualquer cidadão. Ler o percurso de Joshua pela sua própria perspectiva cria proximidade e reforça o impacto, pois, além do peso das próprias circunstâncias, é impossível não admirar a coragem e a determinação de Joshua e de outros como ele.
Não é preciso dizer que se trata de um livro muito actual. Basta olhar para as notícias. Mas não é só para a compreensão do que se passa em Hong Kong que este livro é relevante. Há, ao longo destas páginas, uma reflexão muito perspicaz sobre a forma como os protestos - e consequentes represálias - são encarados e que facilmente é transponível para outros cenários. Não é só em Hong Kong que se manifestam pesadas sombras políticas. E a visão que este livro apresenta permite reflectir também sobre mudanças que estão bastante mais próximas.
Não será propriamente o mais importante num livro como este, mas importa ainda fazer uma breve menção à escrita, para salientar não só a fluidez com que torna acessível um tema bastante complexo, mas também a forma como a expressividade das palavras realça a proximidade. Claro que este elo emocional é nitidamente mais palpável na parte dedicada às cartas da prisão, mas está presente em todo o texto. Afinal, é a convicção que move a coragem de Joshua Wong - e a própria escrita reflecte esse facto.
O que fica deste livro é, pois, uma conjugação equilibrada do que é o relato de um percurso pessoal assente em motivações e complexidades mais vastas. É a história de Joshua Wong, mas também a de um mundo em mudança, em que liberdades e garantias começam, lenta e insidiosamente, a ser questionadas. Não falta, por isso, material para reflexão nesta leitura envolvente, actual e muito relevante.

Autores: Joshua Wong e Jason Y. Ng
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Manteiga de Amendoim e Geleia (Ben Clanton)

O Narval adora waffles. Tanto que nunca comeu mais nada. Mas, quando a sua amiga alforreca o convence a provar uma bolachinha de manteiga de amendoim, está longe de imaginar o cataclismo que vai desencadear. É que o Narval gosta tanto que fica viciado em manteiga de amendoim - ao ponto de mudar de nome! E talvez não haja em todo o oceano frascos de manteiga de amendoim suficientes para um narval tão viciado...
Parte do que torna tão encantadores os livros desta série é a forma como, de forma muito breve e concisa, mas também bastante caricata, consegue proporcionar uma leitura que é, ao mesmo tempo, distracção, diversão e um apelo à imaginação. Ou não fosse o protagonista um narval apaixonado por waffles. Tudo nesta história é peculiar e, ainda assim, tudo surge com tanta naturalidade e com um sentido de humor tão delicioso, que é quase impossível não esquecer a improbabilidade da situação. São um narval e uma alforreca que gostam de waffles e bolachinhas - e, ainda assim, durante a leitura, nada disso parece assim tão estranho.
Sendo um livro infantil, é apenas natural que seja tudo muito simples. Nas suas pouco mais de sessenta páginas, tudo acontece de forma muito directa, já que aos diálogos simples junta-se um estilo visual onde domina também a simplicidade. Ainda assim, já se tornou de tal modo familiar que é como regressar a um local onde já fomos felizes. Mesmo - curiosamente - para aqueles de nós que já não pertencem propriamente ao público-alvo desta série.
Importa, finalmente, notar que, à semelhança dos volumes anteriores, também este livro vive mais de pequenos episódios do que uma grande história, embora tendo sempre uma ligação central na forma, neste caso, da manteiga de amendoim. Mais do que uma grande aventura, é a ligação sempre divertida e cativante entre dois bons e improváveis amigos. O que não significa que não haja algumas surpresas pelo caminho...
Breve, simples, mas sobretudo muito divertido, trata-se, pois, de um livro leve e cativante, feito de pequenas coisas, mas principalmente de uma grande amizade. Perfeito para os mais novos, mas capaz de fazer sorrir leitores de todas as idades, uma boa e agradável leitura.

Autor: Ben Clanton
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 27 de julho de 2020

O Manual da Feiticeira Moderna (Madame Ippò)

Bruxas e feiticeiras sempre foram mulheres associadas ao poder. Temidas por alguns, admiradas por outros, foram, ao longo dos séculos, muitas vezes associadas ao maligno para combater os seus conhecimentos. Mas o que é realmente uma feiticeira? Em que acredita? O que a move? Que tipo de rituais pratica realmente? Este breve manual dá algumas das respostas, de forma muito concisa e vocacionada sobretudo para quem já se enquadra neste tipo de crenças.
Mais do que tudo o resto neste pequeno livro, o que fica na memória são sobretudo as ilustrações. Cheias de cor e de mistério, dão vida e envolvência a um livro que é, na sua essência, muito simples, realçando ao mesmo tempo a sua componente mística. É um daqueles livros que dá gosto folhear, antes mesmo de olhar para o conteúdo. Além disso, sendo um livro com espaços a serem preenchidos pela leitora, este aspecto visual cativante - associado possivelmente à caligrafia de quem preencher estes espaços - conferir-lhe-á também um aspecto único.
Quanto ao conteúdo propriamente dito, sobressaem dois aspectos: primeiro o facto de funcionar efectivamente como um possível manual, com alguns rituais concisos associados a várias explicações e práticas; e, em segundo lugar, e talvez mais interessante, a facilidade com que se reconhecem pontos em comum com múltiplas histórias e lendas sobre feiticeiras, bem como, ao mesmo tempo, uma visão bem mais benigna e positiva do papel de uma feiticeira. É, aliás, este o ponto mais memorável em termos de texto: a visão de um poder que se destina sobretudo ao autodesenvolvimento.
Ficam alguns sentimentos ambíguos, resultantes essencialmente da brevidade. Se olharmos para o livro como manual, as descrições não são muito pormenorizadas - mantras, cânticos, danças e outros tipos de gestos são deixados apenas à imaginação. Se olharmos para ele do ponto de vista informativo, no sentido de satisfazer alguma curiosidade, fica a sensação de que muito mais haveria a dizer sobre os significados e, sobretudo, a longa e turbulenta história das feiticeiras ao longo dos tempos.
É, pois, um livro muito conciso, o que deixa bastantes perguntas sem resposta. Ainda assim, entre a beleza das ilustrações e a base essencial que está efectivamente presente - e que, mesmo para os cépticos, tem o condão de fazer lembrar muitas histórias de fantasia - não deixa de ser uma leitura cativante quanto baste e que, apesar das ambiguidades, tem os seus pontos de interesse.

Autora: Madame Ippò
Origem: Recebido para crítica

domingo, 26 de julho de 2020

A Prometida (Kiera Cass)

Começou por ser um jogo, atrair para si durante algum tempo as sempre oscilantes atenções do rei. Mas, sem saber muito bem como, Hollis parece ter conquistado um lugar duradouro junto do rei Jameson, ainda que essa posição não seja muito bem vista pelos nobres. Mas o que Hollis julgava sempre ter desejado - um compromisso com o rei, uma ascensão apoteótica, a posição de rainha - não é afinal o que ela imaginava e a entrada em cena do jovem Silas Eastoffe mostra-lhe que também não é realmente amor o que julgava sentir pelo rei. Tudo aquilo por que tanto se esforçou corre agora o risco de desabar. E, como se não bastasse, há intrigas de corte mais profundas do que a mera luta pelo coração de um rei. E Hollis está prestes a vê-las invadir o seu mundo...
Provavelmente o aspecto mais cativante desta história, embora assuma, por vezes, um papel relativamente secundário, é a construção dos reinos e das diferentes relações que os envolvem. Mais do que a história de amor, que é envolvente, e as intrigas de corte, que são... bem, intrigantes, são as diferenças entre reinos e os segredos de cada um deles que mais despertam a curiosidade. E é precisamente por isso que o ponto fraco que fica na memória vem sobretudo da brevidade da história. Tudo acontece muito depressa e, embora não falte nenhuma informação essencial, fica a sensação de que um maior desenvolvimento, sobretudo no que toca ao contexto global, mas também às relações, teria tornado a história mais empolgante.
São as relações de Hollis com o rei e com Silas o ponto fulcral do enredo e, neste aspecto, há dois pontos a destacar. Primeiro, a transição gradual do que parece uma relação apaixonada, ainda que meticulosamente construída, para um revelar também gradual das falhas e das divergências; depois, as óbvias diferenças entre Jameson e Silas, não só de personalidade, mas sobretudo no que esperam de Hollis. Também aqui a brevidade acaba por deixar alguma curiosidade insatisfeita, pois há explicações que ficam por dar e um dos grandes desenvolvimentos ocorre de forma um pouco apressada. Ainda assim, no que toca à emotividade, é relativamente fácil sentir uma certa empatia - ainda que, surpreendentemente, esta se dirija, por vezes, para outras personagens que não as principais.
Sendo uma história narrada na primeira pessoa, é apenas natural que seja Hollis a assumir o protagonismo, o que significa que certos mistérios e segredos (nomeadamente no que respeita a Isolte) são desvendados muito aos poucos. E sendo este apenas o primeiro volume, é também natural que muito fique sem resposta. Neste aspecto, porém, importa destacar outra perspectiva: é que a forma como tudo termina pode efectivamente deixar tudo em aberto, mas atinge aí um equilíbrio adequado. A partir desse ponto, o percurso de Hollis terá inevitavelmente de ser diferente. E a nova fase promete ser também bastante intrigante.
Poderia, talvez, ser um pouco mais extenso no desenvolvimento das relações e do contexto. Mas, cheio de emoções fortes, de reviravoltas inesperadas e de pequenas intrigas que assumem grandes dimensões, consegue, ainda assim, cativar desde a primeira página e deixar uma enorme curiosidade em saber o que acontece a seguir. E basta isso para fazer deste A Prometida um belo início de série.

Título: A Prometida
Autora: Kiera Cass
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Roughneck - Um Tipo Duro (Jeff Lemire)

Derek Ouelette pode ter sido, em tempos, um jogador famoso, mas os seus dias de glória acabaram. Agora, vive essencialmente dividido entre o álcool e as lutas constantes com aqueles que o provocam. Mas também isso está prestes a mudar, com o regresso de Beth, a sua irmã, que regressa à sua terra natal para fugir ao namorado abusivo e ao vício das drogas que continua a trazer consigo. Numa tentativa de lidar com a situação, e com os mais recentes problemas que Derek arranjou, ele e a irmã escondem-se numa cabana isolada. Mas o mundo não parou e o namorado de Beth não desistiu dela - o que significa que, mais cedo ou mais tarde, o conflito terá de acontecer.
Parte do que torna esta leitura tão marcante é a capacidade de gerar sentimentos intensos por um protagonista cujas características mais destacadas são os defeitos. Com a sua propensão para reagir com violência e a vida perdida entre o álcool e as deambulações, Derek não é propriamente do tipo que gera empatia imediata, mas, à medida que a história se desenrola e as marcas do passado vêm à superfície, gera-se uma impressão bastante diferente. Derek, tal como a irmã, é, em grande medida, o resultado do passado que o moldou. E esta percepção, associada à sua faceta protectora e à profunda melancolia que o envolve, mostram um Derek bem mais humano e digno de compaixão.
Também particularmente interessante é a forma como esta profunda melancolia se torna tangível em termos visuais. Sendo uma história maioritariamente de diálogos sucintos, e em que os percursos isolados desempenham um papel fundamental, é apenas natural que a arte ganhe destaque. Mas, mais do que o traço propriamente dito, fica na memória o poderosíssimo impacto da cor, com o azul predominante a reflectir a desolação geral, interrompida pelos rasgos de cores quentes que reflectem memória e tumulto. Até as próprias expressões, não muito pormenorizadas, mas muitíssimo eloquentes (e note-se que isto não se aplica apenas a expressões humanas) reflectem com precisão as emoções e ambiguidades das diferentes personagens.
E importa ainda voltar à história para referir o final. Sendo moldado, em muitos aspectos, pela violência, é expectável que o derradeiro confronto implique uma certa medida de agressividade. Já a forma como esta se concretiza é, além de bastante inesperada, perfeita para o percurso do protagonista. A capacidade de Derek de, com toda a sua história, tomar a decisão certa para resolver, de uma vez por todas, o problema que se avolumava diz muito também da verdadeira complexidade da personagem. Não é apenas o rufia que afirma ser no início - e essa percepção é um dos aspectos mais brilhantes deste livro.
Feito de sombras profundas e de corações que - apesar de tudo - continuam no sítio certo, trata-se, pois, de uma história que, apesar de ambígua nas suas emoções, nunca deixa de  transmitir força. Intenso, contrastante e profundamente humano, um livro que fica na memória... pela melancolia e pela emotividade.

Autor: Jeff Lemire
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Em Caso de Dúvida, Escolhe o que te Faz Feliz (Manuel Clemente)

A vida é muitas vezes feita de rotinas, de passos repetidos em resposta às expectativas. Expectativas essas que muitas vezes nem são as nossas. Há um plano a seguir, ambições a definir e uma certa sucessão de passos correspondentes às normas sociais. Mas é isso que queremos? Sentimo-nos bem com o que fazemos? O que este livro propõe é uma reflexão pessoal e intransmissível sobre o que realmente somos e de que forma nos realizamos. Através de um conjunto de textos relativamente breves - acompanhados por umas quantas frases particularmente certeiras - leva-nos a questionar a felicidade... e o que podemos realmente fazer para a alcançar.
Algo que, por vezes, tende a acontecer neste género de livros é a inclinação para um de dois extremos: ou tudo parece demasiado fácil ou tudo se cinge a um conjunto de regras muito rigorosas. Bem, este livro parece encontrar o ponto de equilíbrio entre as duas possibilidades. Por um lado, ao recorrer ao seu percurso pessoal, o autor individualiza e humaniza as perspectivas, abrindo caminho a uma percepção individual. Podemos não concordar com tudo, mas é muito fácil ler estes textos e extrair deles aquilo que faz sentido para nós. Por outro lado, regras universais rigorosas é coisa que não existe neste livro. Dizem que o caminho faz-se caminhando e é precisamente essa a impressão que fica desta leitura: uma reflexão pessoal, assente em experiências pessoais, da qual será possível retirar o que mais se harmoniza com cada leitor.
Este registo pessoal tem ainda a qualidade acrescida de criar uma sensação de aproximação. Aliada a uma escrita muito fluida, além de surpreendentemente directa, tendo em conta que são sobretudo reflexões, esta visão individual da vida - em ligação com o mundo, mas feita de passos pessoais e intransmissíveis - cria uma maior proximidade, como que de conversa entre amigos, de partilha de experiências. Mais uma vez, podemos não concordar com tudo ou não reconhecer algumas experiências, mas também isso faz parte do que torna a leitura interessante, pois é bem provável que deixe uma marca diferente em cada um dos seus leitores.
Não é propriamente um guia universal para a vida - até porque isso não existe - mas está repleto de ideias e conselhos interessantes. E, escrito de forma cativante, com uma visão muito pessoal e um percurso que, embora individual, fala ao que há de comum em todos nós, lê-se com a leveza de uma conversa entre amigos e fica na memória sobretudo pela proximidade que evoca. Envolvente e inspirador, uma boa leitura.

Autor: Manuel Clemente
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 21 de julho de 2020

Némesis (Mark Millar e Steve McNiven)

E se um multimilionário aborrecido decidisse pegar na sua fortuna e começar a espalhar o caos? Bem, as consequências podiam ser devastadoras. E foi exactamente isso que Némesis fez. Com meios e astúcia aparentemente ilimitados ao seu dispor, parece andar pelo mundo a matar polícias de forma maquiavélica e meticulosamente planeada. Mas é bem possível que tenha finalmente encontrado um adversário à altura. Blake Morrow já resolveu muitos casos difíceis na vida e está decidido a que este não seja a excepção. Mas, com um inimigo que parece saber tudo, a batalha parece estar perdida à partida. Ou será que não?
Basta a premissa desta história para despertar curiosidade. Afinal, todos conhecemos a história de um milionário que se transformou em super-herói apesar de os seus únicos poderes serem o dinheiro e a inteligência. Bem, de certa forma, Némesis funciona como uma inversão de Batman. Uma inversão violenta, implacável e muito, muito maquiavélica.
Não se trata, pois, de um livro que nos deixe a torcer pelo vilão. Não. Desde a sua alegada história de vingança à muito evidente falta de escrúpulos no que toca a planear mortes, Némesis não parece conter em si uma única partícula de bondade e, assim, é natural que a empatia vá maioritariamente para Blake Morrow. Mas isso não quer dizer que não haja espaço para a ambiguidade. Parte da vulnerabilidade do chefe da polícia vem dos segredos que o envolvem e a percepção de que é possível falhar sem más intenções é também uma força bem presente neste livro. Além disso, esta presença ambígua de rasgos emocionais cria um contraste poderoso com a base essencial da história onde dominam a violência, o conflito e a brutalidade.
E, por falar em brutalidade... Sendo, acima de tudo, a história de um super-vilão - ainda que o final deixe outro tipo de possibilidades em aberto - não é propriamente uma surpresa que, visualmente, faça lembrar as histórias de super-heróis, com as grandes cenas de acção e perseguições cheias de movimento. O que mais fica na memória são, ainda assim, dois aspectos: a surpreendente expressividade de um Némesis cuja parte superior do rosto quase nunca é visível e a forma quase tangível como os rasgos de caos - a começar pela situação do comboio logo no início - parecem irromper de cenários aparentemente tranquilos.
Com um protagonista absurdamente fácil de odiar no cerne de um enredo cheio de surpresas, trata-se, pois, de uma história que, embora parecendo ter muito em comum com as aventuras de super-heróis, constrói um percurso totalmente diferente. Intenso, implacável e inesperado em todos os aspectos, um livro que facilmente fica na retina... e na memória.

Título: Némesis
Autor: Mark Millar e Steve McNiven
Origem: Recebido para crítica

domingo, 19 de julho de 2020

Nada a Temer (Julian Barnes)

Que imagem assume a morte para um homem que não acredita em Deus, mas sente a sua falta? E de que forma evolui a percepção da mortalidade e da persistência com o decorrer da vida e a aproximação da velhice aos olhos de alguém que não acredita numa existência após a morte? Eis duas das principais perguntas a emergir da longa e profundamente filosófica reflexão que vai sendo desvendada ao longo deste livro. Um livro que não é exactamente uma autobiografia, mas contém muito da vida e das memórias do autor.
Tendo em conta os temas a que este livro se dedica, não é propriamente uma surpresa que não seja uma leitura leve. Morte, envelhecimento, deterioração de sentidos e memórias, velhice, distanciamento, perda de identidade. Tudo isto está, de alguma forma, presente neste livro, que, tendo o autor que tem, assume necessariamente também uma certa medida de complexidade, tanto na visão como na escrita. Mais surpreendente é a forma como, desta introspecção profunda, complexa e maioritariamente filosófica, emergem não só questões de universalidade, mas sobretudo memórias pessoais. Não é, diz o autor, uma autobiografia. E, ainda assim, são as suas histórias pessoais o que mais fica no pensamento.
Também não é um romance, o que é algo que importa salientar porque toda a estrutura do livro parece realçar a convicção do autor de que a vida não funciona como uma narrativa. Às vezes, quase adquire o tom de uma narrativa, com as histórias de vidas e mortes de autores, familiares e conhecidos. Outras, mergulha a fundo na dissecação científica ou filosófica das questões que rodeiam a memória, o envelhecimento e a morte. E, sendo isto acompanhado por múltiplas histórias, é quase impossível não querer saber mais sobre estas vidas, mas nem todas as respostas estão lá. A vida pode ter princípio e fim - e eis que surge aqui também a questão da possível vida depois da morte - mas tem também muitas pontas soltas. E a própria construção deste livro realça esse facto.
Um último ponto a salientar é que, apesar do ritmo relativamente pausado, inevitável, de certa forma, dada a complexidade dos temas e a profundidade com que são analisados, a escrita nunca deixa de ser fascinante. São muitas as frases memoráveis a reter deste livro e os pensamentos que ficam na memória. Junte-se a isto o recurso frequente ao que parecem ser os escritores de eleição do autor e o resultado é, além de uma meditação profunda sobre a morte e seus companheiros, uma visão da sua inexorável influência na vida e obra de múltiplos autores.
Não é uma leitura ligeira. Exigirá tempo, concentração e talvez até um certo estado de espírito para assimilar esta profunda abordagem à morte e à eternidade em todas as suas facetas. Mas, entre as histórias do autor, a exploração filosófica do tema e o vastíssimo material de reflexão nele contido, trata-se de um livro que justifica todo o tempo, concentração e estados de ânimo necessários. E que fica na memória, não só por aquilo que conta, mas sobretudo pelas questões que deixa atrás de si...

Título: Nada a Temer
Autor: Julian Barnes
Origem: Recebido para crítica

sábado, 18 de julho de 2020

Senhora do Amor e da Guerra (Sebastião Alves)

Uruk, cidade de Inanna. Uma jovem noviça é escolhida para, durante um ano, se tornar Nin, a que fala com a deusa. Mas o que devia ser apenas uma posição cerimonial não chega para Kulita, que, inteligente e ambiciosa, vê como os sacerdotes que comandam a cidade se aproveitam da fragilidade do Ensi para se apoderarem do que a Inanna pertence. E, à medida que vai conquistando um lugar no coração do Ensi, Kulita começa a fazer perguntas desconfortáveis, a investigar comportamentos e falhas, a assumir um lugar de destaque que a muitos desagrada. Há quem queira livrar-se dela e regressar aos hábitos de sempre. Mas Kulita pode ser tudo menos fraca. E, com a voz de Inanna do seu lado, tudo é possível.
Parte do que torna esta leitura tão empolgante é a capacidade do autor de mergulhar num passado longínquo, com tradições, crenças e hábitos distintos e torná-lo tangível, não só através das movimentações das personagens, mas através dos evidentes paralelismos com outros períodos históricos. Não importa que tudo decorra num período antes da escrita - sendo esta, aliás, um dos desenvolvimentos mais notáveis a ocorrer ao longo desta narrativa. A actuação pouco correcta dos sacerdotes, o desprezo com que qualquer novidade é encarada, a aversão à entrada em cena de um grupo de estrangeiros e, claro, à posição de poder de uma mulher como Kulita despertam questões tão poderosas na antiga Mesopotâmia como nos tempos de hoje. E esta sensação de intemporalidade, associada à força de uma escrita envolvente e de um enredo pejado de personagens notáveis, torna a leitura bastante irresistível.
Também a construção das personagens é particularmente memorável, principalmente no que respeita a Kulita e a Zamug. Ambos são, à sua maneira, personagens fortes, Kulita com a sua curiosidade insaciável e a ambição de fazer tudo pela sua cidade, Zamug com a sua dedicação incansável à descoberta da escrita. E ambos têm também as suas fraquezas e vulnerabilidades, Kulita na forma como a sua ambição a leva, por vezes, a comportamentos ambíguos e a esquecer ligações que lhe parecem secundárias, Zamug no desânimo e no desapego a que, por vezes, a sua missão o conduz. São personagens cativantes, mas falíveis, o que só as humaniza, reforçando também o impacto dos momentos mais dramáticos.
E importa, claro, referir o final, que, embora não seja totalmente imprevisível, tendo em conta certas revelações do início, consegue, ainda assim, surpreender pela intensidade que é dada a uma conclusão relativamente conhecida. Sim, é possível antever de que forma tudo terminará para os protagonistas, mas os passos exactos e a intensidade dos momentos têm, ainda assim, um impacto surpreendente. Além, claro, de estranhamente adequado, tendo em conta a forma como as coisas foram conduzidas.
Intenso no enredo, forte na construção das personagens e muito cativante na escrita, trata-se, pois, de um livro que facilmente nos transporta para o passado, questionando ao mesmo tempo apegos e visões que prevalecem ainda no presente. É uma história de ascensão e queda, de um ciclo, talvez, de glória e de ruína. Mas é, acima de tudo, a história de uma mulher brilhante e ambiciosa - e que história memorável!

Autor: Sebastião Alves
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Os Malditos, Livro Um - Antes do Dilúvio (Jason Aaron, r. m. Guéra e Giulia Brusco)

Passaram 1600 anos desde o Éden... e o mundo já se transformou num inferno. Dominado pela violência, persiste apenas na sobrevivência dos mais fortes... ou dos mais cruéis. E é neste mundo de sangue e de horror que caminha um homem que não pode morrer. Caim, filho de Adão. Autor do primeiro homicídio. Causa de toda a destruição... e, talvez, da única salvação possível. Deambulando pelo mundo, Caim procura a morte, jamais podendo encontrá-la. E, sob a fachada da indiferença, esconde um coração mais profundo.
Provavelmente o aspecto mais marcante deste livro é o facto de partir de uma narrativa mais que sobejamente conhecida, para fazer dela uma visão bastante menos... inocente. Claro que há violência na história de Caim e Abel, mas esta história vai bastante para além disso. E a visão que temos de Noé e da sua arca será provavelmente bem diferente da que este livro apresenta. O primeiro aspecto a ficar na memória é, pois, este: a visão de um Génesis bem mais negro, violento e apocalíptico do que alguma vez poderíamos imaginar.
Outro elemento que se destaca é o caos, até porque é ele que domina este mundo. Neste aspecto, é naturalmente a arte que se destaca, com as longas cenas de acção, pejadas de pormenores e de amontoados de combatentes, cadáveres e tipo o tipo de destroços a salientar em toda a sua brutalidade a violência desenfreada que se apossou deste mundo. Mas é particularmente interessante o contraste entre esta absoluta desordem e o aparente caos ordenado que envolve a figura de Caim. Por onde passa, deixa sobretudo morte, mas arrasta consigo uma pesada sombra. E essa sombra, surpreendentemente mais visível nos momentos mais pausados, contrasta com o caos geral por ser fruto de uma visão mais profunda. Pode ter sido a origem de tudo, mas é talvez Caim quem mais sente as consequências do inferno que desencadeou. E isso é tão evidente nas ocasionais frases certeiras que lhe saem no momento ideal como na expressão surpreendentemente melancólica que, por vezes, emerge do meio do caos.
Sendo o primeiro volume de uma série, não é propriamente uma surpresa que fiquem questões sem resposta, principalmente tendo em conta a forma como termina a situação com Noé. Ainda assim, e apesar da ligeira curiosidade insatisfeita sobre que forma poderá tomar o futuro, o que fica na memória é sobretudo a intensidade de um final implacável, não só pelo inesperado das circunstâncias, mas sobretudo pelo que reflecte da humanidade - ou falta de - que habita este mundo.
Cruel e caótico de uma forma surpreendentemente eficaz, trata-se, pois, de um livro que, situado em pleno apogeu da violência humana, constrói para os protagonistas bíblicos um percurso bem mais duro e empolgante do que o habitualmente imaginado. Um caos que faz absoluto sentido - e que transborda de intensidade.

Autor: Jason Aaron, r. m. Guéra e Giulia Brusco
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Dinastia (Tom Holland)

Começou por ser o reino dos filhos da loba, depois uma república assente nos valores da virtude e da autoridade. Tanto que, quando um cônsul ambicioso quebrou todos os limites e tentou ser mais do que as tradições permitiam, os Idos de Março acabaram por trazer consigo lâminas e morte. Mas a queda de Júlio César seria o início da ascensão de uma dinastia. Primeiro, viria a guerra civil, mas a entrada em cena de um novo favorito - aquele que, para a história, ficaria conhecido como Augusto - abriria portas a um novo regime. De poder, de autoridade, de glória... e, claro, de intrigas e conspirações.
É algo de fascinante que, por mais livros que se leiam sobre o tema, há sempre novas perspectivas para descobrir sobre a complexa e vastíssima história de Roma. Este livro dedica-se, sobretudo, à chamada casa de César (ou de Augusto), narrando os percursos individuais de cada um dos imperadores que deu a Roma ao mesmo tempo que explora o contexto, as tradições, as hierarquias e, sobretudo, os mecanismos da intriga e do rumor. Debruça-se sobre todas as facetas da vida da cidade e dos homens. Para cada Princeps, explora a ascensão ao poder, os laços familiares, a carreira militar, as conspirações, os actos mais chocantes e, em última instância, o fim. E é particularmente notável a forma como, ao longo destes percursos particulares, vai sendo também traçada a história de Roma como um todo.
É também bastante impressionante a facilidade com que, apesar da abundância de nomes e datas (e nomes que se repetem, aliás), de batalhas e intrigas e do aparentemente interminável leque de personagens que surgem ao longo deste texto, a leitura assume um ritmo fluido e envolvente. Facilmente somos transportados para os cenários descritos e, mais impressionante ainda, para a mente dos protagonistas. Ora, isto é particularmente marcante tendo em conta certas facetas dessas figuras - principalmente das mais tardias. A forma como o autor consegue entrar na mente retorcida e complexa destes tão diferentes imperadores, transmitindo-nos toda a vastidão das suas facetas, é algo de verdadeiramente memorável.
Claro que, sendo um livro extenso, e tão vasto em informações, exigirá o seu tempo para assimilar todos os pormenores. Ainda assim, nunca se torna cansativo, proporcionando, pelo contrário, uma leitura envolvente, quase em tom de romance, sem nunca deixar de fora a precisão e pormenor exigidos por um retrato tão completo de toda uma dinastia.
Completo, memorável e surpreendentemente empolgante, eis um livro que é uma intensa viagem aos primórdios do império romano, e sobretudo à mente dos seus protagonistas. Uma viagem cheia de intriga, de acção e de conspirações, às vezes sombria, mas sempre fascinante. Leva o seu tempo? Naturalmente. Mas vale cada segundo.

Título: Dinastia
Autor: Tom Holland
Origem: Aquisição pessoal

terça-feira, 14 de julho de 2020

Este Vírus que nos Enlouquece (Bernard-Henri Lévy)

Covid-19. Dispensa apresentações, não é verdade? Até porque é um nome que está em toda a parte. Mas, mais do que a propagação da doença, os mecanismos de contágio ou até a evolução científica em termos de medidas de combate e prevenção deste infame vírus, é sobre o impacto psicológico, social e - porque não? - filosófico que este pequeno ensaio se debruça. Que outro tipo de consequências pode ter - além das físicas, entenda-se - um vírus que confinou um mundo inteiro? E que tipo de questões se colocam quando certas liberdades são suspensas?
Algo que desde cedo se torna evidente é que este é um livro que desperta ambiguidades. Ao questionar o medo e o confinamento, revela perspectivas que acabam necessariamente por ser também questionadas. O confinamento implicou suspender liberdades? Foi glorificado para alguns enquanto, para outros, era simplesmente impossível? Causou medos profundos em contraste com optimismos irritantes? Tudo isso pode ser possível, mas é difícil não ficar, inicialmente, com uma sensação de desvalorização. Felizmente, isto vai-se esbatendo com o desenvolver do ensaio, que, sem nunca perder por completo as ambiguidades (até porque tende mais para as perguntas do que para as respostas), vai mostrando mais uma faceta de matéria para reflexão, em que questionar não é - embora inicialmente pudesse parecer - necessariamente invalidar.
Mais do que a visão individual do autor, o que fica no pensamento são sobretudo as questões. Podemos não concordar com quem vê o medo como exagerado ou achar que essa ideia de ver o confinamento como uma "oportunidade" é apenas uma forma tão válida como qualquer outra de lidar com uma situação desagradável. Mas a perspectiva do autor tem o dom de nos fazer reflectir e questionar. Afinal, é verdade que nem todos puderam ficar em casa. É verdade que todas as outras notícias desapareceram subitamente face ao coronavírus. É verdade que "vai ficar tudo bem" é mais optimismo do que certeza. Se chegaremos às mesmas conclusões do autor? Sim ou não. De qualquer modo, é importante a reflexão.
Um último ponto que importa salientar é a fluidez da escrita. Reflexiva, filosófica, mas pautada por rasgos de surpreendente beleza, foge à glorificação do confinamento glorificando outro tipo de imagens. E, ainda assim, lê-se com uma envolvência notável, ao ponto de, mesmo quando são as discordâncias que sobressaem, ficar na memória a expressividade das palavras.
Breve, mas repleto de questões pertinentes, ambíguo, mas cheio de material para reflexão, trata-se, pois, de um livro que, mais do que grandes respostas, salienta a importância de questionar. E que, mesmo sem concordâncias absolutas, acrescenta uma nova perspectiva à forma como lidamos com este estranho vírus que parou o mundo.

Autor: Bernard-Henri Lévy
Origem: Recebido para crítica

domingo, 12 de julho de 2020

A Rapariga do Lago (Charlie Donlea)

Summit Lake é um lugar idílico, cuja tranquilidade acaba de ser abalada pelo súbito homicídio, na casa onde se encontrava a estudar, da jovem filha de um advogado de prestígio, que se encontrava ali a estudar para um exame. Mas, mais estranho ainda do que o próprio crime, é a aparente insistência das autoridades em atirar com as culpas para um assaltante aleatório cujas acções acabaram por se descontrolar. Ninguém acredita verdadeiramente nessa teoria. E muito menos Kelsey Castle. Enviada para Summit Lake com a suposta missão de seguir uma história aparentemente inócua - mas, na verdade, para recuperar do seu próprio trauma - Kelsey cedo se apercebe de que a história não bate certo. E está decidida a descobrir a verdade. Por Becca Eckersley - e por si mesma.
Mais do que o mistério propriamente dito - embora tenha também muito de cativante - ou até do que a escrita também muito envolvente, é a capacidade do autor de manipular as impressões que transmite ao longo da história que torna esta leitura tão empolgante. Dividido entre a investigação de Kelsey e os últimos dias de Becca, traça com a iminência do crime um crescendo de intensidade, ao mesmo tempo que, através da sua investigação, vai seguindo os passos das múltiplas possibilidades. Além disso, há, ao longo do percurso, vários factos que parecem evidentes, mas que escondem, na verdade, algo absolutamente diferente. E assim, a história vai avançando de surpresa em surpresa, despertando e descartando suspeitas até ao que acaba por ser um final intenso, surpreendente e inesperadamente desolador.
Com este crescendo de intensidade, há um aspecto que acaba por passar para segundo plano. O porquê do encobrimento e as possíveis consequências associadas a essa acção acabam por assumir um papel secundário face às derradeiras e intensas revelações. Mas também aqui sobressai a intensidade. É que é tão inesperado o impacto dos últimos capítulos que a ligeira curiosidade insatisfeita que fica relativamente a estes aspectos acaba por ser também secundária, até porque não prejudica em nada a linha essencial do enredo.
Ainda um último aspecto particularmente marcante é o desenvolvimento das personagens, sobretudo nos contrastes que as várias revelações vão estabelecendo. As relações de Becca com os diferentes suspeitos, a amizade entre Kelsey e Rae, o desabrochar de uma possível relação com Peter e a recuperação de um trauma através da descoberta da verdade são apenas alguns dos passos que fazem das personagens que habitam este livro figuras tão capazes de cativar como de desconcertar, o que só aumenta a vontade de saber o que lhes acontecerá a seguir. Ninguém é perfeito nesta história, o que, além de expandir o leque de suspeitos, tem o condão de humanizar as personagens.
Pode não dar todas as respostas, mas as que dá são deveras impressionantes. E é também isto que, associado a um enredo cheio de surpresas, com um cenário fascinante e um núcleo de personagens memoráveis, torna esta leitura tão envolvente. Vale bem a pena fazer esta viagem a Summit Lake.

Autor: Charlie Donlea
Origem: Recebido para crítica

sábado, 11 de julho de 2020

Diário de Uma Miúda Como Tu - Sem Pés Nem Cabeça (Maria Inês Almeida e Manel Cruz)

A Francisca está em maré de azar. Por mais que se esforce, não consegue tirar positiva a matemática, o que significa que está outra vez de castigo e sem telemóvel. E, como se não bastasse, o seu primeiro namoro também parece querer ir por água abaixo, pois o Pedro parece estar desconfortavelmente próximo da sua amiga  - e antes arqui-inimiga - Madalena. O que vale é que a Francisca tem sempre muitas ideias para se manter ocupada, seja com as amigas, com a família, a fazer as suas t-shirts ou a lutar para salvar o planeta.
Uma das coisas que é interessante observar neste conjunto de livros é que, embora mantendo sempre as mesmas características essenciais, nunca perdem a envolvência. Talvez porque, tal como o título indica, a Francisca é uma miúda como qualquer outra, o que significa que partilha dos mesmos problemas, anseios, pequenos dramas e grandes aspirações. Além disso, a sua forma divertida de contar as coisas - e importa lembrar que é de um diário que se trata! - faz da Francisca uma personagem próxima. Já conhecemos os seus dramas e a sua personalidade. E, assim, é sempre um regresso agradável mergulhar em mais um dos seus divertidos diários.
Também constante é a simplicidade, que faz especial sentido se tivermos em conta a idade dos leitores a que esta série se destina. É possível que, a um olhar adulto, certos pontos da história pareçam passar demasiado depressa, mas, sendo uma leitura breve, é natural que assim seja. Além disso, também a idade da Francisca é relevante neste aspecto. Afinal, quando somos jovens, tudo muda de um momento para o outro e há sempre muito a acontecer. A brevidade é também um reflexo dessa rapidez.
E importa, claro, destacar um outro elemento recorrente: a consciência ambiental da Francisca. Além de fazer dela uma personagem mais forte, pois é dedicada à sua causa, é uma forma cativante e eficaz de transmitir aos leitores essa mesma consciência ambiental. Seja nas mensagens das suas famosas t-shirts ou nos temas que prepara para o seu canal, a Francisca tem uma mensagem a transmitir. E fá-lo muito, muito bem.
Leve e divertido, mas com uma mensagem relevante, mistura os dramas e descobertas do crescimento pessoal com um tema que é pertinente para todos, independentemente do contexto e da idade. E fá-lo através de uma protagonista irreverente e descontraída, mas com os pés bem assentes na terra. Uma miúda, sim - como já todos fomos. Mas uma miúda muito esperta.

Autores: Maria Inês Almeida e Manel Cruz
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Poesia Grega - De Hesíodo a Teócrito

Quando ouvimos falar em poesia grega, há um nome que vem de imediato ao pensamento do leitor comum: Homero. E, contudo, a poesia da Antiguidade não se esgota no autor da Odisseia. Prova disso é este volume, onde nomes tão familiares como Safo e outros que possivelmente só serão reconhecidos por quem já tiver um conhecimento mais aprofundado do tema, convergem num volume tão complexo quanto fascinante - e capaz de nos fazer pensar que, se calhar não sabemos tanto sobre mitologia grega como julgávamos.
É, aliás, precisamente por este aspecto que tenho de começar: é que, na grande maioria dos poemas, de quase todos os autores, abundam os nomes de deuses, heróis e outras figuras de destaque da história e da mitologia da Grécia antiga. Alguns serão mais do que familiares - ainda que acompanhados, por vezes, de epítetos menos comuns. Outros nem tanto. E assim, um dos efeitos secundários desta leitura é chegar ao fim com uma extensa lista de nomes e aspectos a aprofundar.
É também inevitável referir que, sendo uma edição bilingue, provavelmente terá outro impacto em quem souber... bem, grego. Ainda assim, é interessante notar que - pelo menos aos olhos desta leitora comum que achava que sabia umas coisinhas de mitologia, mas nada do outro mundo - pese embora a abundância de nomes, os pormenores estruturais e até mesmo o contexto histórico (que implica, claro, reconhecer mais nomes), a leitura vale por si mesma. Que importa se o nome referido é, aos nossos olhos um ilustre desconhecido, se o próprio poema realça a grandiosidade? Que importa se há coisas que (ainda) não sabemos, se a cadência e a beleza das palavras fascina mesmo assim?
Importa, por último, realçar dois aspectos mais ou menos formais: primeiro, as introduções relativas a cada um dos poetas incluídos neste livro, que permitem compreender um pouco mais não só da história do autor, mas sobretudo do contexto do seu tempo; e segundo, a diversidade de estilos e temas, sempre com os deuses no cerne de tudo, mas abrangendo registos, estruturas e contextos bastante distintos.
É possível que tenha um impacto ainda maior em que tem tiver mais conhecimento prévio. Ainda assim, fica a impressão de um livro onde predomina sobretudo a beleza das palavras, o fascínio de um tempo - e de um mundo, talvez - vastíssimo e a sempre esclarecedora revelação de que há sempre muito mais para descobrir sobre os antigos. A ler, investigar... e depois regressar.

Autor: Frederico Lourenço (tradução)
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 8 de julho de 2020

A Arte da Guerra (Sun Tzu e Pete Katz)

Considerado o mais antigo tratado filosófico sobre a guerra, e com uma visão facilmente adaptável a outros contextos que não o militar, não é propriamente uma surpresa que este livro tenha perdurado ao longo dos séculos e continuado a ser lido por gente de todos os meios. Mais surpreendente será esta nova visão, que, profundamente ilustrada e acrescentando às ideias uma história pessoal, torna as ideias mais acessíveis e a leitura muito mais envolvente.
E é precisamente pelo aspecto visual que importa começar, para dizer que se trata de um livro lindíssimo. A arte, repleta de pormenores e transbordante de cores, ajusta-se igualmente bem ao percurso mais pessoal do mestre e do seu discípulo, que inclui não só a partilha de lições, mas também momentos de conflito e de perigo, como à ilustração de forma visual das ideias e conceitos explorados ao longo de A Arte da Guerra. E já disse que é belíssimo? Mesmo antes de começar a ler, é um livro que dá gosto folhear, parar para contemplar as imagens e imaginar que histórias e ideias lhes estarão associadas. Antes mesmo da leitura, já cativa, o que só pode ser uma qualidade.
Quanto à guerra propriamente dita, há dois aspectos a destacar: o cuidado em tornar o texto mais acessível, complementando-o com imagens, mas sem grandes desvios à linha original, e a forma como a transposição deste texto para a história pessoal de um muito interessante duo de protagonistas permite uma visão das aplicações práticas deste tão breve - e tão abrangente - tratado.
Claro que, sendo acima de tudo uma adaptação, é A Arte da Guerra que domina, não a história que a complementa. Mas importa dizer que, apesar da brevidade, esta é uma história tão cativante que fica uma irresistível curiosidade em saber mais sobre os seus protagonistas. Servem, ainda assim, o seu objectivo. E é isso o mais importante.
É A Arte da Guerra em toda a sua abrangência original, mas... num formato novo. E, assim, é de certa forma um livro diferente: mais acessível, mais envolvente, mais facilmente cativante no seu equilíbrio entre teoria e história. E, além disso, é lindíssimo. Mas isso já disse, não já?

Autores: Sun Tzu e Pete Katz
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 6 de julho de 2020

O Castelo dos Animais - 1. Miss Bengalore (Félix Delep e Xavier Dorison)

Quando os humanos abandonaram o castelo que haviam transformado em quinta, os animais julgaram ter conquistado algum tipo de liberdade. Fundaram uma república, mas não tardou muito até que percebessem que tinham trocado uma vida de trabalho árduo por outra ainda pior. É que também aqui todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros. E, sob a autoridade do presidente Sílvio e da sua milícia canina, os animais vêem-se obrigados a trabalhar constantemente para conseguir o mínimo essencial. Ou a sofrer as consequências...
Para quem já leu A Quinta dos Animais, está história poderá soar, talvez, um pouco familiar, até porque a premissa é relativamente semelhante. Mas há dois aspectos que a tornam única: primeiro, a construção propriamente dita, em que a arte, os diálogos e o carácter individual das personagens contribuem para formar uma identidade própria; e depois o tipo de rebelião, que, inspirada pela história de um homem que, sem recurso à violência, fez frente a todo um império, se afasta do conflito sangrento da fase inicial.
Claro que o próprio formato define a diferença, mas há muito mais a destacar além dos paralelismos entre estas duas histórias. Primeiro, há a arte, com o seu dom impressionante de conferir expressividade e sentimento às faces de figuras que são, afinal de contas, animais. Depois, o delicado equilíbrio entre a brutalidade do sistema e os rasgos de ternura e de solidariedade que vão surgindo de onde menos se espera. Além disso, há ainda a visão revolucionária de uma mudança isenta de violência. E, claro, a absurdamente brilhante visão de uma revolução feita sob a égide do humor e o símbolo tão eficaz de uma - ou bem, múltiplas - margaridas.
Sendo apenas o primeiro volume, escusado será dizer que tudo fica em aberto. Ainda assim, é interessante notar que a sensação que fica é, sobretudo, a de uma etapa completa, que vai da observação impassível (ou apavorada) da brutalidade das autoridades à percepção de que baixar a cabeça nada mudará e depois aos primórdios de uma mudança que jamais será fácil ou isenta de perdas, mas que é necessária e que já começou. O que se seguirá será inevitavelmente novo: um novo passo na longa batalha por uma verdadeira liberdade.
Visualmente belíssima, além de muito eficaz no seu equilíbrio entre a história individual das personagens e o percurso global da mudança em curso, pode ser, na sua essência, a reconstrução de uma história bastante conhecida, mas segue o seu próprio caminho, vale por si mesma e é, em todos os aspectos, notável. Eis, pois, um início poderoso para uma história que promete sê-lo ainda mais. Cheio de emoção, de intensidade e também de matéria para reflexão, um livro que não posso deixar de recomendar.

Autores: Félix Delep e Xavier Dorison
Origem: Recebido para crítica

sábado, 4 de julho de 2020

Na Farmácia do Evaristo (Fernando Pessoa)

Na sequência de uma tentativa falhada de golpe de estado, vários homens reúnem-se numa farmácia para discutir os acontecimentos e, tendo-os como ponto de partida, filosofar sobre política. Vêm de contextos e ideologias contrárias, pelo que a provocação inicial cedo se transforma numa elaborada discussão sobre questões como o que confere ou não validade a uma revolução, a credibilidade ou falta dela das eleições e até o valor de um juramento de fidelidade. Os ânimos vão-se, talvez, exaltando, mas os argumentos não se esgotam... e a discussão continua.
A primeira coisa que importa referir sobre este livro é que se trata de um conto inacabado, o que significa, naturalmente, que tudo é deixado em aberto no que respeita ao futuro e consequências da discussão. Ainda assim, é uma história interessante de se ler, não só pela sempre impressionante fluidez e complexidade da escrita de Pessoa, mas sobretudo porque é todo um exercício de debate e discussão de ideias diferentes - incluindo provocações, figuras de estilo, manobras mais ou menos filosóficas e até o intemporal papel de "advogado do diabo". Claro que, sendo sobretudo discussão, é um texto de ritmo relativamente pausado, até porque a complexidade da argumentação assim o exige.
Outro aspecto interessante é que este aceso debate tem o condão de pôr em dúvida todas as certezas. Sendo os seus intervenientes defensores de posturas muito distintas, é apenas natural que haja conflito e ambiguidade e o desenrolar da conversa faz com que as várias certezas das personagens vão sendo meticulosamente dissecadas. Mas há também uma outra ambiguidade associada, pois cada leitor terá os seus valores e dará, talvez, por si a tomar partido. Neste aspecto, importa também fazer uma menção à entrevista a Álvaro de Campos que surge no final do livro e que leva a todo um outro nível esta visão de ambiguidade moral. É que, sendo embora um "homem" fruto do seu tempo, Álvaro de Campos tem algumas perspectivas questionáveis, nomeadamente quando se refere à escravatura... com e sem aspas. Isto leva inevitavelmente à comparação e à reflexão sobre quanto do que é dito poderia ser aceitável nos dias de hoje - e quanto não será, talvez, também uma provocação.
É um livro muito breve, daí que surpreenda tanto a complexidade das discussões políticas e filosóficas. E é um livro ambíguo, que deixará, decerto, impressões diferentes consoante o posicionamento de cada leitor. Mas é, sobretudo, um conto bem escrito, com uma visão elaborada e alguns pontos de vista que importa dissecar. E tudo isto gera uma leitura que consegue ser, por vezes, bastante desconfortável, mas que tem também muito de interessante.

Autor: Fernando Pessoa
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Criminal - Livro Três (Ed Brubaker e Sean Phillips)

Tracy Lawless regressou à cidade para descobrir o que acontecera ao irmão e acabou preso à mesma vida do pai. Agora, tem uma série de homicídios para resolver, um caso amoroso com a mulher do chefe e o exército à sua procura para o levar de volta. Noutro tempo, mas com o mesmo cenário e as mesmas ligações, Riley Richards começa a fartar-se da vida da cidade e anseia por regressar à tranquilidade, mas, para o fazer sem perder a fortuna, precisa de se livrar da mulher, nem que isso implique fazer favores. Cada um deles tem a sua história, os seus pecados e as suas sombras. Em comum, a mistura de ambição e de desolação que habita esta cidade e os seus habitantes. E a certeza de que, num submundo de crime, dificilmente haverá finais felizes. Sobretudo para os inocentes...
Algo que se vai tornando cada vez mais evidente de volume para volume, e um dos grandes pontos fortes desta série, é o delicado equilíbrio entre a construção de uma linha central independente para cada história e a teia de contactos, envolvimentos e relações que une os diferentes percursos. Novos elementos e personagens já conhecidas cruzam-se neste mundo completo onde a crueldade parece ser soberana, dando forma a percursos com tanto de desolador como de misterioso e personalidades complexas e ambíguas que nunca são apenas o que mostram ser.
Este jogo de sombras e de ambiguidades reflecte-se, naturalmente, a nível visual, com as sombras da noite, os tons esbatidos dos lugares mal frequentados e os rasgos rugros da brutalidade a contrastar com os tons vivos - e quase inocentes - da memória. Este contraste é particularmente vincado em O Último dos Inocentes, pois o passado é a força motriz de tudo o que acontece, mas está também presente, ainda que em menor grau, na história de Tracy. E há, além disso, a já habitual expressividade dos rostos, que, tendo em conta o tipo de acontecimentos que estas histórias envolvem, se revela um elemento particularmente eficaz.
Importa ainda destacar um elemento comum a ambas as histórias e que tem a ver com a destruição da inocência. Tracy Lawless e Riley Richards podem ser os protagonistas de tudo o que acontece, mas os momentos mais marcantes envolvem duas personagens bem distintas: Evan e Freakout. Afinal, é de pecado e de inocência que tratam estes dois episódios - e as consequências de ambos são simplesmente devastadoras. Evan, em particular, tem o tipo de final que se entranha na memória. Freakout... representa o pior tipo de destruição.
Cada volume desta série é um mergulho nas profundezas da desolação e, como tal, desperta inevitavelmente sentimentos fortes. Este mostra que a inocência não pode perdurar e, com a sua mistura de implacabilidade e inocência, intriga e desolação, fica na memória não só pelo muito que acontece, mas pelos pensamentos e sentimentos que desperta. Sombrio nos tons - e sobretudo nas almas - um livro memorável em todos os aspectos.

Autores: Ed Brubaker e Sean Phillips
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 2 de julho de 2020

O Dia em que Perdemos o Amor (Javier Castillo)

Pensavam que tudo acabara com a morte de Laura. Estavam enganados. Vai começar tudo outra vez. E o início é uma mulher nua numa auto-estrada, com papéis que anunciam mortes iminentes, sendo uma delas a da desaparecida que assombra o inspector Bowring. Entretanto, Steven está na prisão. Amanda e Jacob estão finalmente juntos... mas não por muito tempo. A entrada de um intruso na casa que partilham deixa Amanda entre a vida e a morte... e a sua luta pela vida no hospital transforma-se em novo desaparecimento. Vai recomeçar a corrida. Bowring precisa de saber o que aconteceu a Katelyn Goldman. Jacob e Steven precisam de encontrar Amanda. E Carla... Carla vive no passado que a moldou em algo de... indescritível.
Uma das primeiras coisas a chamar a atenção neste livro é que, sendo a continuação de O Dia em que Perdemos a Cabeça, mantém todas as qualidades do volume anterior, para lhe acrescentar mais intensidade, mais mistério, mais acção e uma familiaridade tão irresistível que bastam algumas frases para nos transportar de volta para a vida destas personagens. Talvez porque os aspectos mais estranhos são já relativamente conhecidos - o que não quer dizer que não haja outros novos - é mais fácil entrar no ritmo da história. Talvez porque as personagens já nos parecem mais próximas, é quase impossível não ficar a torcer para que tudo acabe bem. E, entre estes dois pontos e o novo desenvolvimento do percurso de Carla, forma-se um fio de tensão forte e intenso, que culmina num final tão cheio de surpresas que é praticamente impossível de descrever.
Outro aspecto que já vinha do livro anterior, mas que atinge novos máximos neste segundo volume, é a teia de relações e ambiguidades. De relações, porque são múltiplos os caminhos que convergem para a casa onde tudo começou e os passos vão-se cruzando. De ambiguidades, porque ninguém é só aquilo que parece. Isto é particularmente marcante no caso de Carla, pois o seu percurso parte de uma genuína inocência colocada em ambiente de reclusão e as consequências que isto trará são, no mínimo, inesperadas. A Carla que vemos no início do livro é uma jovem à procura do amor. A Carla do fim... é algo diferente.
E importa ainda realçar a cadência e a fluidez da escrita, que, num livro com múltiplos pontos de vista e em que todos convergem com igual intensidade para um foco de surpresas e de revelações, cria um contraste poderoso ao contrapor à intensidade da acção e do drama da corrida contra o tempo a introspecção e a descoberta pessoal do percurso de Carla. Além de tornar a leitura mais viciante, esta forma de narrar a história vem adensar o mistério e reforçar relações. O que, mais uma vez, tendo em conta a forma como tudo termina, é algo de poderoso.
A mesma mistura de estranheza e de fascínio - elevada a novos níveis de intensidade. Assim é este segundo volume, que, intenso e viciante da primeira a última página, ultrapassa em muito as expectativas geradas e eleva enredo e personagens a todo um novo pico de intensidade. Cheio de surpresas, de mistério e de emoção, um livro empolgante, em suma. E muito bom.

Autor: Javier Castillo
Origem: Recebido para crítica