No lote 19, vivem muitas vidas umas sobre as outras: a Mulher Gorda quer comprar jacintos e a filha, a Rapariga Magra, aceita tudo menos ficar igual à mãe. O Velho sabe que não pode deixar que a morte o apanhe a dormir, enquanto o Homem Desempregado não sabe como saciar a fome a não ser com a memória de refeições passadas. E, entre estes e outros, a vida passa: para uns, traz vinganças e ligações de amor e ódio; para outros, a apatia do que se deixou de sentir. Ao lado, o lote 17 é um buraco à espera de construção - buraco como o das vidas que o observam ao passar.
Não é propriamente fácil traçar uma linha geral para este livro - e, contudo, ela está lá. A história nasce de uma multiplicidade de fragmentos, de pequenos momentos das vidas das várias personagens, como que vistos pelo olhar de alguma entidade distante. E, ainda assim, é incrivelmente fácil entrar na vida destas pessoas, querer saber mais - sobre o que as move, sobre o que são, sobre o que perderam. Tornam-se próximas, talvez precisamente por serem vistas aos poucos - pois o que é a vida senão uma sucessão de fragmentos entrelaçados na memória?
Também fascinante é a forma como todos estes pequenos momentos estão escritos, com a brevidade sintética de quem se cinge ao estritamente essencial. Narram-se os factos, expressam-se os pensamentos e os sentimentos como eles são, sem grandes elaborações nem divagações extensas. E, no entanto, este estilo sintético e preciso abre portas a uma mais ampla complexidade: há frases que contém em si mesmas uma verdade tão vasta que é quase incrível que tenham mesmo tão poucas palavras. E essas frases que ficam na memória, associadas aos pedaços de vida que, no seu conjunto, moldam um todo maior que a soma das suas partes, são o que tornam este mundo de peculiaridades tão real - e tão estranhamente familiar.
E há tantas vidas neste livro... Talvez seja também isso que o torna tão marcante. É que, ao acompanhar tantas personagens num livro tão breve, o autor realça precisamente aquilo que as torna únicas - e, ao mesmo tempo, o que nelas mais desperta interesse e empatia e solidariedade. No fundo, todas estas personagens têm algo de estranho - mas do tipo de estranheza que existe nos recantos mais cruéis da realidade. E, sendo certo que a vida não acaba no fim de uma história, também a história destas personagens não acaba: ficam coisas por dizer, futuros possíveis, bons ou maus. E este ponto de equilíbrio onde tudo termina - pondo fim a algumas coisas, mas deixando tantas outras por dizer - faz um estranho sentido nesta história em que todas as vidas são, por natureza, incompletas.
No fim, fica uma imagem intrigante: a de um livro que marca tanto por acontecimentos específicos como pela teia de sensações e de impressões que tece em torno deles. E é isto, aliás, que torna esta leitura tão memorável: um percurso que se faz vida nas pequenas coisas - e que continua no pensamento depois do fim.
Autor: Sandro William Junqueira
Origem: Recebido para crítica
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