É possível que haja algo de inspirado em Whitman nas múltiplas personalidades de Pessoa - até porque as influências que, a dado momento, são negadas, podem num outro instante ser admitidas de outra forma. E, se a influência molda o influenciado, não será também mutável a visão que este tem de quem o influencia? É este talvez um dos aspectos mais curiosos deste livro: pois, lendo Campos, vê-se um Whitman um pouco diferente do que se vê... bem, em Whitman. E, lendo Whitman, vê-se uma influência que talvez não se estenda apenas especificamente a Álvaro de Campos.
Um dos aspectos mais interessantes destes Livros Amarelos, e escusado será dizer que este não é excepção, é a forma como a junção das duas obras põe em evidência relações que, não sendo propriamente óbvias à primeira vista, fazem do livro total uma unidade maior que a soma das suas partes. E isto é particularmente evidente neste livro, já que o poema de Álvaro de Campos tem o autor do Canto de Mim Mesmo como tema central. Será, aliás, esta relação entre as duas obras o aspecto mais memorável do livro, já que, tanto pelos poemas em si, como pelos sucintos e esclarecedores textos que os acompanham, a tal delicada relação de influência sai claramente realçada.
Mas nem só de interacções vive o livro e é preciso considerar cada uma das obras como uma entidade completa e individual. E aqui surgem sentimentos diferentes. A Saudação a Walt Whitman parece traçar o retrato de um ídolo imaginado, de uma influência parcialmente assumida que se entrelaça na voz peculiar do próprio autor (ou, digamos, desta personalidade específica do autor). Por sua vez, Canto de Mim Mesmo, mais longo, mais conjunto que unidade, é um percurso mais amplo, mais diverso, através das múltiplas facetas do mundo. Facetas essas que conseguem, por vezes, ser descritas até à exaustão, deixando o lado lírico para um notório segundo plano e assim distanciando-se um pouco do impacto das visões descritas.
O que me leva novamente à influência - e ao sempre delicado equilíbrio entre influências e identidade própria. Álvaro de Campos pode ser influenciado por Whitman, mas é, ainda e sempre, muito diferente. E, embora este seja um poema em que essa influência se evidencia (ou, pelo menos, até certo ponto, pois o Whitman que Campos descreve não é bem o que emerge do Canto de Mim Mesmo), são também muito claros os traços próprios do poeta. E são esses, afinal, os que realçam a diferença entre as duas partes.
O que fica, então, desta leitura? Para começar, duas obras relevantes e fascinantes, à sua maneira, dois retratos de um mundo traçado segundo uma visão particular. E, principalmente, a imprevista coesão que nasce da união de duas obras tão diferentes (e, contudo, tão próximas) formando um livro que deixa uma marca maior do que qualquer das suas partes lida separadamente. Cativante, inesperado e muito, muito interessante, um belo reforço para os Livros Amarelos.
Título: Saudação a Walt Whitman / Canto de Mim Mesmo
Autores: Álvaro de Campos / Walt Whitman
Origem: Recebido para crítica
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